Na quarta-feira, 12 de abril de 1972, o NAMC YS-11A-211 “Samurai”, prefixo PP-SMI, da VASP, decolou do Aeroporto de Congonhas às 20h30min com destino ao Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro.
Transportava 19 passageiros e seis tripulantes sob a responsabilidade do comandante Zenóbio Torres, de 29 anos, há seis anos na Vasp, empresa na qual acumulava 6.517 horas de voo. O copiloto Carlos Alberto de Abreu Valença, de 28 anos, com 3.462 horas de voo, recentemente concluíra o curso de adaptação ao YS-11.
Também integravam a tripulação do PP-SMI os comissários Edite Martins, de 24 anos, e Josemar Jacome da Costa, de 19 anos. Viajavam como tripulantes extras o comandante Pedro Bartolo, de 41 anos, instrutor de rota do equipamento YS-11, e o comandante de Viscount Leonel de Mattos Rocha, de 36 anos.
Alguns dos ocupantes do avião (Imagem: Jornal do Brasil) |
Entre os passageiros encontravam-se o Brigadeiro Mario Calmon Eppinghaus, comandante da Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guarda (EOEIG) da Aeronáutica, e Aarão Knijnik, diretor-executivo da Shell do Brasil, sobrevivente do incêndio que destruíra o Edifício Andrauss, em São Paulo, alguns anos antes.
O tempo bom fazia prever um voo de rotina. O PP-SMI subiu para 10 mil pés de altitude e prosseguiu pela aerovia Âmbar Meia (A-6), mão única no sentido de São Paulo ao Rio de Janeiro, na época balizada pelos radiofaróis (NDB) de Mogi Guaçu, Santa Cruz, Afonsos e Quebec, este último situado na Ilha dos Ferros. O tempo estimado de voo era de uma hora, e a chegada ao Rio estava prevista para as 21h30min.
Às 21h15min, o PP-SMI chamou o controle de aproximação (APP) do Rio, informando que passava a posição “Cará”, fixo de entrada do terminal (TMA) do Rio – área circular de cem quilômetros de raio com centro nas proximidades do Aeroporto do Galeão.
Naquele momento, o Samurai voava a dez mil pés (3.300 metros) de altitude. A partir daí, o APP orientou o PP-SMI a descer para 7 mil pés na proa do NDB de Santa Cruz, devendo informar no bloqueio daquele radiofarol. Minutos mais tarde, o PP-SMI acusou no bloqueio de Santa Cruz, sendo autorizado a prosseguir descendo para cinco mil pés na proa do NDB de Afonsos.
Às 21h24min, o Samurai da Vasp informou o bloqueio do NDB de Afonsos a cinco mil pés, sendo liberado para três mil pés na proa do NDB Q (Quebec), devendo reportar o bloqueio daquele auxílio. Esta foi a última transmissão do Samurai.
Jornal do Brasil, 14.04.1972 |
Na tarde do dia seguinte, seus destroços foram localizados em Muriqui, distrito de Secretário, município de Petrópolis, a 46 km do Campo dos Afonsos e a 64 km do Aeroporto Santos Dumont.
Com exceção de algumas poucas nuvens esparsas, as condições meteorológicas na TMA RJ eram excelentes. O teto e a visibilidade eram praticamente ilimitados, e todos os auxílios à navegação e aproximação funcionavam normalmente.
A cauda e o leme estavam quase intactos, mas toda a fuselagem, exceto a cabine do piloto, pegou fogo com o impacto |
Os dois minutos transcorridos entre a última mensagem transmitida pelo piloto do Samurai, informando o bloqueio de Afonsos, e o momento do impacto com a Serra Maria Comprida evidenciaram que o avião jamais chegou realmente a bloquear o radiofarol do Campo dos Afonsos, posição possivelmente informada com base apenas em navegação estimada.
Uma linha reta unindo o Aeroporto de Congonhas ao local do acidente formava um ângulo de oito graus com a rota que o PP-SMI deveria ter percorrido. O vento em altitude, que soprava no quadrante sul, poderia ter concorrido para o desvio, porém os pilotos contavam com vários auxílios eletrônicos de navegação para corrigi-lo.
Na TMA RJ estavam disponíveis os VORs de Piraí, Caxias, Itaipu Açu, além dos radiofaróis de Santa Cruz, Nova Iguaçu, Afonsos, Galeão, Santos Dumont, Ilha dos Ferros (Quebec) e Ilha Rasa. Os investigadores teriam que procurar as respostas para suas dúvidas na cabine de comando do Samurai.
A Serra Maria Comprida, em Petrópolis, o local do acidente (Foto: Trilhas de Petropolis) |
Há muito se sabe que o nível de alerta dos pilotos varia em razão direta ao grau de dificuldade do voo.
Naquela noite, o céu era ‘de brigadeiro’, e o voo até o Rio tão fácil quanto voltar para casa dirigindo o próprio carro após um dia de trabalho. O Samurai estava com 30 por cento de sua capacidade e havia dois comandantes voando como ‘extras’. É possível que ao menos um deles estivesse na cabine de comando, o que pode ter ensejado uma conversação descontraída entre colegas de profissão.
Após o través de Ubatuba, o próximo ‘fixo compulsório’ (posição a ser informada ao órgão de controle de tráfego aéreo) da A-6 era ‘Cará’, entrada da TMA RJ, posição virtual estabelecida pela marcação magnética 092 graus do radiofarol de Santa Cruz e por determinada radial do VOR de Barra do Piraí.
É provável que o primeiro elo da cadeia de eventos que conduziu ao acidente tenha sido gerado quando o VOR de Piraí foi sintonizado para determinar a posição ‘Cará’. Possivelmente por alguma falha de operação (o copiloto talvez ainda não estivesse bem familiarizado com todas as peculiaridades do Samurai), o VOR de Piraí tenha sido inadvertidamente selecionado como ‘fixo ativo de navegação’, fazendo com que o piloto automático tomasse a proa de Piraí em vez da proa de Santa Cruz, manobra discreta que pode ter passado despercebida aos pilotos.
Provavelmente o Samurai passou à esquerda de Santa Cruz e ainda mais à esquerda do Campo dos Afonsos, tendo o bloqueio desses dois NDB sido equivocadamente informado com base apenas em navegação estimada.
Provavelmente, os pilotos não perceberam que o avião tomara a proa de Piraí. Talvez distraídos pela conversa com os ‘extras’, imaginavam que o Samurai continuava no rumo do Rio. Na hipótese de terem observado que os ponteiros dos ADF indicavam Santa Cruz e Afonsos ligeiramente à direita, podem ter acreditado tratar-se de pequeno desvio, que não inspirava maiores cuidados.
A percepção de que havia algo de muito errado com o voo deve ter-lhes assaltado ao sintonizarem o NDB Q (Quebec), auxílio básico de procedimento de descida que deveriam executar. Em vez do ponteiro ADF indicar a proa, apontou a lateral direita, levando Torres e Valença a desconfiarem da correção dos sinais recebidos daquele radiofarol. Há indícios de que tentaram sintonizar um dos VORs do Rio quando o avião se chocou contra a encosta da serra.
Folha de S.Paulo, 14.04.1972 |
Somente alguns anos após o acidente os VORs instalados no Brasil passaram a ser equipados com DME (equipamento medidor de distância), que informa a distância em milhas náuticas a que o avião se encontra do auxílio sintonizado. Como, na época, o APP RJ não dispunha de radar, o controlador não “enxergava” o avião e, portanto, não tinha como detectar eventuais erros de posição geográfica dos pilotos.
A investigação concluiu que a causa provável do acidente foi a baixa qualidade da navegação que vinha sendo realizada pelos pilotos e o procedimento inadequado dos mesmos com relação ao voo por instrumentos.
O acidente foi atribuído a erro de pilotagem pela falta de correção da deriva e pelo fato de os pilotos terem determinado o bloqueio fixo da aerovia, à noite, valendo-se apenas da navegação estimada.
A segurança de voo se fundamenta em elevado nível de alerta. Não é por outra razão que a maioria dos acidentes ocorre em casa, lugar onde as pessoas sentem-se seguras, imunes aos perigos do mundo exterior. Por sentirem-se assim, tendem a se expor a perigos inusitados que, na melhor das hipóteses, redundam em ossos quebrados e temporadas em hospitais.
Por paradoxal que possa parecer, a facilidade do voo talvez tenha concorrido para o acidente. Uma conversa informal na cabine de comando com os tripulantes extras pode ter distraído os pilotos.
É possível que a pouca familiarização de Valença com algumas das peculiaridades do sistema diretor de voo do Samurai tenha originado o erro operacional que levou o bimotor na direção das montanhas que circundam Piraí.
A partir da década de 1970, o sistema de controle de tráfego aéreo brasileiro foi sendo progressivamente dotado de radares.
Atualmente, todos os aviões que percorrem nosso espaço aéreo são permanentemente vigiados e controlados. Tudo isso, somado à introdução de sistemas independentes de navegação inercial e por satélite, reduziu drasticamente o risco de voltarem a acontecer acidentes causados por erro de posição geográfica dos pilotos, como o que destruiu o Samurai PP-SMI da Vasp naquela noite de outono.
Na ocasião do acidente, chegou a ser desprezada a versão oficial que apontava falha de navegação. Eram muitos os pontos contraditórios: pilotos muito experientes que faziam ao menos quatro voos diários pela ponte-aérea; a noite estava clara com luar e sem nuvens; e a torre do aeroporto Santos Dumont não registrou nenhuma indicação de anomalia no nesse voo.
Um único ponto pode se apontar como negativo: naquela época, os passageiros não eram vistoriados nos embarques, como acontece hoje em qualquer lugar do mundo. Isso possibilitava a um passageiro embarcar armado se assim o desejasse.
Com todos esses ingredientes, a imprensa da época passou a especular a possibilidade de que poderia ter havido um tumulto a bordo, causando o misterioso acidente.
Claro que ninguém sobreviveu para contar o motivo que levou a aeronave de fabricação japonesa, o YS-11 (Samurai) a se chocar com a serra, assim como o Rio de Janeiro – por ser uma cidade de grandes proporções – não pode ser confundida, muito menos por uma tripulação experiente, que a cruzou sem se dar conta disso.
Na verdade o YS-11, nunca foi visto com bons olhos pelos passageiros que costumavam usar com certa regularidade a Ponte Aérea RJ/SP, que viam com certa apreensão quando esse equipamento estava designado para o horário, causando um desconforto geral.
A partir desse acidente, o Electra II passou a ser o avião exclusivo da ponte-aérea.
Sem caixa-preta para “contar a história”, a causa real desse acidente tornou-se um mistério insolúvel.
Relato de Ângelo Teixeira de Branco, um passageiro que não pôde embarcar no voo que se acidentou
"Estava de mudança do Rio e, no dia 12/04/1972, estava em São Paulo providenciando a compra de um imóvel.
Porém, faltava um documento para conseguir o financiamento na CEF - Caixa Econômica Federal. Teria que ir com urgência ao Rio para buscá-lo. Precisava chegar ao Rio, ir até a Tijuca, pegar a chave do apto da Muda, pegar o documento na Muda, voltar a Tijuca para deixar a chave do apartamento da Muda, dar um beijo na esposa e filho, ir até a rodoviária pegar ônibus para São Paulo e... chegar na CEF às 10 horas da manhã seguinte.
Nesse dia 12, cheguei em Congonhas por volta das 19:30h. Fui ao guichê comprar passagem e havia uma pessoa na minha frente comprando a sua. Tocou o telefone, a moça do caixa conversou com alguém, desligou e acabou de atender o comprador.
Chegou a minha vez. Iria pegar o voo da ponte aérea, o próximo voo com destino ao Rio de Janeiro.
- Uma passagem para o próximo voo.
- Próximo voo apenas às 20:30h. – disse a moça.
- Mas você acabou de vender uma passagem para as 20 hs! Os passageiros estão ali esperando para embarcar – disse eu apontando para a área de embarque.
- Infelizmente já informei o número de passageiros e não posso mais vender passagem para esse voo. Agora só para as 20,30h.
- Tudo bem, fazer o quê?
Embarquei às 20:30 hs. Voo tranquilo. Devido a minha pressa, desci do avião e, correndo para pegar um Táxi, fui o primeiro a chegar ao saguão do aeroporto.
Havia pessoas esperando no desembarque, homens, meninos, mulheres (esposas?), etc... Antigamente as pessoas da família iam buscar os entes queridos nos aeroportos.
Fui praticamente barrado no saguão:
- Esse voo é o das 20 hs? – perguntaram as pessoas que estavam na espera.
- Não. Esse é o das 20:30 hs – disse e continuei andando, homens e mulheres atrás de mim insistindo:
- O Senhor tem certeza?
Para cessar o assédio, quase no ponto de Táxi, mostrei minha passagem.
O avião YS-11 da VASP, o Samurai, havia caído sem deixar sobreviventes. Acho que foi o último Samurai.
É uma sensação horrível você se dar conta que aquele avião que saiu antes não chegou, olhar a expressão no rosto daquelas pessoas... a reação é uma coisa indescritível.
Toda vez que tenho notícia de queda de avião começa na minha mente aquele filme do saguão do aeroporto. É muito triste..."
No aeroporto, as lágrimas depois de quinze horas de esperanças impossíveis |
Ficha técnica
- Data: 12.04.1972
- Hora: 21h26min
- Aeronave: NAMC YS-11A-211 “Samurai”
- Operadora: VASP - Viação Aérea São Paulo
- Prefixo: PP-SMI
- Número de Série: 2059
- Primeiro voo: 1968
- Tripulantes: 6
- Passageiros: 19
- Partida: Aeroporto de Congonhas (CGH/SBSP), São Paulo, SP
- Destino: Aeroporto Santos Dumont (SDU/SBRJ), Rio de Janeiro, RJ
- Local da ocorrência: Petrópolis, RJ
- Fatalidades: os 25 ocupantes: 6 tripulantes e 19 passageiros
O 'Samurai'
Dois 'Samurai's': um da Vasp e outro da Cruzeiro do Sul (Foto: wetwing.com) |
O NAMC YS-11 é um avião turbo-hélice construído por um consórcio japonês, o Nippon Aircraft Manufacturing Corporation. O programa foi iniciado em 1954 pelo MITI - Ministry of International Trade and Industry (Ministério de Comércio Internacional e Indústria).
Seu primeiro voo foi em 1962, e sua produção terminou em 1974. As variantes YS-11A-211 e YS-11A-212, com incremento na capacidade de peso, foram adquiridas pela Vasp.
Edição de texto e imagens por Jorge Tadeu
(Com informações do livro “O Rastro da Bruxa”, de Carlos Ari César Germano da Silva e do Blog Hideo in japan - Fotos do local do acidente: Revista Veja, edição 189, de 19 de abril de 1972)
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