segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

História: Como nasceu e fracassou a invasão da Baía dos Porcos em Cuba há 60 anos


Johnny López de la Cruz sente que está sufocado. Trancado em um caminhão com mais de 100 prisioneiros, ele mal consegue respirar.

Dentro do contêiner, os presos se desesperam. Começam a suar. Vários desmaiam.

Alguns arrancam as fivelas do cinto militar para perfurar o teto e deixar entrar um pouco de ar.

Eles ganham tempo, mas a maioria acha que eles vão ser fuzilados assim que chegarem a Havana.

A viagem termina sete horas depois. Os militares castristas abrem as portas. Vários corpos inertes caem no asfalto. Nove prisioneiros morreram no trajeto.

Quando chega a vez de Johnny sair, ele mal consegue saltar do caminhão.

No "caminhão da morte", eles não são os únicos prisioneiros. No total, distribuídos por diversos veículos, há cerca de 1,1 mil capturados.

São os sobreviventes da Brigada 2506, um exército de 1,4 mil jovens que poucas horas antes fracassou na tentativa de invadir Cuba, derrotados na Praia Girón pelas tropas de Fidel Castro.

Exaustos, sem munição e encurralados na praia. Assim terminou a Brigada 2506
Exaustos, sem munição e encurralados na praia. Assim terminou a Brigada 2506, 72 horas após o desembarque na ilha

A maioria são cubanos exilados que, após o triunfo da revolução, foram recrutados e treinados pela CIA para derrubar o governo revolucionário na ilha.

Fidel Castro havia chegado ao poder dois anos antes, ao vencer em 1º de janeiro de 1959 o governo golpista de Fulgêncio Batista, a quem acusavam de autoritário e corrupto.

Mas, apesar do grande apoio popular, muitos outros cubanos não compartilhavam das ideias revolucionárias de Castro e se exilaram.

O ataque à Baía dos Porcos de 1961, no entanto, estava condenado ao fracasso antes mesmo do primeiro disparo. E a Brigada ainda responsabiliza Washington.

Da Casa Branca, o então presidente John Fitzgerald Kennedy cancelou na última hora os ataques aéreos que iriam neutralizar as aeronaves castristas.

Isso aconteceu porque os Estados Unidos não podiam figurar como a força motriz por trás da invasão. Não só prejudicava sua imagem internacional, como também dava uma desculpa à União Soviética, que se consolidava como aliada-chave de Castro, para retaliar e provocar um conflito nuclear sem precedentes.

Assim, os jovens determinados, mas também inexperientes, que sonhavam em "libertar Cuba do castrismo", resistiram menos de 72 horas.

Muitas das feridas deixadas pela invasão da Baía dos Porcos permanecem abertas e
definem posições políticas tanto em Cuba quanto nos Estados Unidos
Eles desembarcaram na madrugada de 17 de abril de 1961. Na tarde de 19 de abril, já haviam sido derrotados.

Os sobreviventes da Brigada 2506 foram libertados após intensas negociações no Natal de 1962, um ano e meio depois.

Os brigadistas que ainda estão vivos seguem aguardando no exílio a queda do governo socialista cubano.

Enquanto isso, Cuba comemora todo dia 19 de abril como uma pequena nação derrotou um exército de "mercenários" financiados pelo país mais poderoso do mundo.

Já passaram 60 anos


Esta é a história de como a invasão foi concebida, por que fracassou e o quanto marcou seus protagonistas.

Por que deixei de apoiar Fidel e me juntei à invasão


Retrato de Johnny López de la Cruz quando jovem
Johnny López de la Cruz, hoje com 80 anos, é o atual presidente da Associação de Veteranos da Brigada 2506. Ele fez parte do batalhão de paraquedistas da invasão da Baía dos Porcos. Ele conta como se exilou e se juntou à Brigada:

Abri meus olhos em relação a Castro no dia em que mataram o sargento Benítez.

O sargento Benítez era da polícia de Batista, um bom amigo da família que nunca saiu de Cuba por considerar que não havia feito nada de errado.

Eu apoiava Castro no início. Ele nunca disse ser comunista. Do contrário, ninguém em Cuba teria aceitado.

Mas logo começaram a fuzilar as pessoas, confiscar propriedades, estatizar e tirar terras.

Um dia, dois homens de Castro apareceram e levaram Benítez para ser julgado. Eu estava lá para apoiá-lo.

Durou menos de meia hora. Não o deixaram nem depor. Ele e outros quatro réus foram considerados culpados e levados para um cemitério abandonado fora da cidade.

Foram fuzilados e jogados em uma cova.

Acordei. Não entendia como era possível fuzilar alguém sem defesa. Aquilo era abuso de autoridade.

Comecei então a participar de atividades contrarrevolucionárias. Distribuíamos manifestos e escrevíamos 'Abaixo Fidel' nas paredes.

Mas eles prenderam dois do meu grupo. E pessoas próximas disseram que eu era o próximo.

Foi assim que três companheiros e eu fomos para Havana e voamos para Miami com documentos falsos.

Quando cheguei aos Estados Unidos em 1960, já sabia que outros exilados estavam sendo treinados pela CIA na Guatemala para invadir Cuba. Fui para lá alguns dias depois.

Exército de 1,4 mil exilados

Entre 1959 e 1960, milhares de jovens anticastristas, como López de la Cruz, chegaram à conclusão que a única saída era o exílio ou o pegar em armas.

A maioria foi para os Estados Unidos, um país disposto a financiar a queda de Castro.

As estatizações de indústrias e negócios americanos e o fortalecimento dos laços comerciais e militares com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) logo colocaram Cuba na posição de desafeto dos Estados Unidos.

Fidel Castro, cercado pelo Movimento Revolucionário 26 de julho, falando sobre a
Revolução Cubana em 4 de janeiro de 1959
Castro havia se tornado uma ameaça real à influência regional do país mais poderoso do mundo.

A CIA, agência de inteligência americana, o Pentágono e a Casa Branca, sob o governo de Dwight Eisenhower, se propuseram a acabar com o líder revolucionário.

E encontraram em um grupo de cubanos exilados o exército perfeito para executar o plano.

No total, foram recrutados cerca de 1,4 mil homens.

Cuba, enquanto isso, se preparava diante das suspeitas de uma invasão iminente.

"Herói da Pátria"


Retrato de Jorge Ortega Delgado quando jovem
Jorge Ortega Delgado lutou do lado fidelista durante a invasão. E quando se lembra disso, um brilho ofusca seus olhos. Sentado no terraço de sua casa em Havana, aos 77 anos, ele contou à BBC como se juntou às milícias:

Venho de uma família operária muito humilde. Quando a revolução triunfou, eu tinha 15 anos e me juntei imediatamente às atividades revolucionárias.

Os Estados Unidos começaram a intervir e a tentar atacar Cuba e, em outubro de 1959, foram fundadas as milícias nacionais revolucionárias.

Me alistei e participei de todos os treinamentos durante 1959 e 1960.

No fim de outubro de 1960, Fidel Castro, o comandante-chefe, apareceu no treinamento.

Fidel pediu para reunir todos os milicianos. Éramos quase 1,5 mil.

E, naquela ocasião, pediu aos jovens com menos de 20 anos que se juntassem à artilharia antiaérea.

Naquela tarde, pedi permissão aos meus pais para poder me apresentar. Eles concordaram.

Entramos para a bateria 30. Foi quando nosso treinamento em artilharia antiaérea começou.

O plano


O plano original da CIA e do governo Eisenhower era que os exilados partissem de Puerto Cabezas, na Nicarágua, e desembarcassem perto da cidade de Trinidad, no sul de Cuba.

O objetivo principal era ocupar a região e resistir por tempo suficiente para estabelecer um governo de oposição de líderes no exílio que logo seria apoiado pelos Estados Unidos.

Trinidad fica perto das montanhas do Escambray , onde já havia membros da resistência anticastrista que se juntariam às tropas invasoras e organizariam, se necessário, uma guerra de guerrilhas semelhante à que Fidel Castro saiu vitorioso na Sierra Maestra poucos anos antes.

Para facilitar o desembarque,16 aviões bombardeariam previamente os principais aeródromos de Castro , inutilizando sua força aérea e ganhando assim vantagem no céu cubano.

Mas o roteiro mudou radicalmente quando Kennedy se tornou presidente em janeiro de 1961.

Kennedy modificou o plano original de invasão logo após chegar à Casa Branca em 1961
Ele concordou em continuar com o plano, mas não sob essas condições. Invadir Trinidad em plena luz do dia parecia estrondoso demais.

"Kennedy queria negar qualquer envolvimento na invasão. Tinha que ser encoberta. Desembarcar em Trinidad durante o dia demonstrava muito poderio, que os EUA estavam por trás", explica à BBC News Mundo Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação de Cuba do Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

"A operação tinha que ser o mais secreta possível, e Kennedy deu à CIA três dias para refazer um plano que havia sido tramado durante um ano inteiro", acrescenta o especialista, que conseguiu divulgar o relatório do fracasso que se manteve em sigilo por 37 anos.


Kennedy reduziu os aviões de 16 para oito e instou a CIA a mudar o local e o horário de desembarque.

O lugar escolhido se revelou mais tarde um dos piores possíveis: a Baía dos Porcos, uma enseada de difícil acesso também no sul da ilha.

Nesta área, a costa é hostil.

É uma área pantanosa, com muitos manguezais intransponíveis e "dentes de cachorro", como são conhecidas as concentrações de recifes em Cuba, afiados.

Um cenário difícil para desembarcar em sigilo e com fluidez.

Perto da Baía dos Porcos havia um aeroporto, essencial para que os aviões invasores pudessem reabastecer.

15 de abril - O bombardeio 


Jorge Ortega Delgado completa seu primeiro treinamento em canhões antiaéreos e aguarda ansioso em 15 de abril para dar uma volta. São vários meses de formação militar.

Mas naquela mesma manhã o alarme de combate toca. Aviões invasores bombardearam dois aeroportos em Havana e outro em Santiago de Cuba.

"Saímos imediatamente, nos mandaram pegar os canhões e nos colocaram numa praia. Quando chegamos, nos contaram que, ao amanhecer de 15 de abril, aviões mercenários atacaram nossos aeroportos e mataram sete do nosso lado", lembra Ortega.

Jorge Ortega era integrante da bateria 30 da artilharia castrista e diz ter sentido
total repúdio ao saber da invasão de Cuba
"Todos os jovens sentiram um repúdio completo. Não podíamos acreditar. Estávamos dispostos a fazer o que fosse necessário para defender a pátria", acrescenta o ex-combatente, ainda com fervor na voz.

O bombardeio de 15 de abril de 1961 era o primeiro dos que Kennedy havia autorizado para inutilizar os aviões de Castro antes do desembarque, previsto para 17 de abril.

Os oito aviões decolaram na madrugada de 15 de abril da base de Puerto Cabezas, na Nicarágua, e lançaram granadas sobre os aeródromos de Santiago de Cuba, no leste do país, e Ciudad Libertad e San Antonio de los Baños, ambos em Havana.


Apesar de ter deixado sete mortos, apenas poucas aeronaves cubanas foram danificadas, algumas já imprestáveis.

A força aérea castrista ficou praticamente intacta e, além disso, conseguiu abater um dos aviões invasores.

Após o bombardeio, um avião se passando por cubano pousou em Key West, na Flórida. O piloto alegou ser um desertor das forças armadas de Castro.

O bombardeio de 15 de abril mal danificou ​​as aeronaves da frota castrista,
   que conseguiu continuar a se defender e conter todos os outros ataques
Na verdade, era parte do plano da CIA para não envolver os Estados Unidos no ataque.

Dessa forma, pareceria que havia eclodido uma rebelião interna anticastrista em Cuba, em vez de uma ação promovida pelo alto comando dos Estados Unidos.

"Mas a história do desertor durou apenas algumas horas. Embora os Estados Unidos negassem, todo mundo ficou sabendo que os aviões eram americanos e que pretendiam fingir que o ataque fora perpetrado por desertores cubanos", explica Kornbluh.

Com a suspeita de envolvimento dos Estados Unidos, Kennedy cancelou o restante dos ataques. Um golpe decisivo contra as aspirações da Brigada 2506, que não teria apoio aéreo suficiente.

"Sempre digo que a guerra estava perdida antes de começar", lamenta López de la Cruz.

Mas, naquele momento, nenhum dos invasores sabia.

17 de abril - O desembarque 


1h da manhã. As lanchas com invasores se aproximam da Praia Larga, no final da estreita Baía dos Porcos.

Eles não querem fazer barulho. Surpreender é parte essencial do plano.

Mas Castro pressente há meses um ataque. Ele sabe que uma guerra contra os Estados Unidos é como uma batalha de Davi contra Golias — e se preparou bem.

"Ele tinha milícias patrulhando praticamente todas as praias da ilha", explica Kornbluh.

Uma dessas patrulhas escuta ruídos. E abre fogo.

Os invasores respondem. Conseguem capturar alguns dos patrulheiros, que haviam tido tempo de dar o alerta. O elemento surpresa havia ido por água abaixo.

As tropas de Castro já estão se mobilizando para conter a invasão, e ainda faltam muitos para desembarcar.


"Barcos de papel"


Retrato de Humberto López Saldaña quando jovem
Humberto López Saldaña tem 83 anos. Em 1960, deixou Cuba e se exilou com a família em Miami, onde logo se juntou à Brigada. Ele estava em um dessas lanchas invasoras e contou à BBC News Mundo como foi o desembarque:

Tivemos muitas dificuldades. Começamos a combater cedo demais. Isso atrasou o desembarque.

Além disso, nossas lanchas eram muito pequenas. Cada vez que se chocavam contra os recifes, ficavam praticamente destruídas. Muitas afundaram.

O desembarque durou até as primeiras horas da manhã. Esperamos a maré baixar para ter uma visão melhor e evitar os recifes. Da costa, nos jogaram uma corda para chegar à terra firme.

Por volta das 6h da manhã apareceu a força aérea castrista. As bombas caíam do lado. Nossos barcos cambaleavam como se fossem de papel.

Os barcos invasores foram avariados ao colidir contra recifes na área de desembarque
Pouco depois, um foguete atingiu meu barco, o Houston.

O pânico se instalou. Vários companheiros morreram. O capitão jogou o Houston contra os recifes para facilitar o acesso dos demais à terra.

Além de inutilizar o Houston, os aviões de Castro também afundaram o Rio Escondido. Nessas embarcações tínhamos muita munição e toneladas de gasolina de aviação. Perdemos tudo.

"Quando você começa a disparar, se exalta e perde o medo"

Jorge Ortega e sua bateria chegaram à província de Matanzas, onde fica a Baía dos Porcos, no dia 17 de abril por volta das 5h da tarde.

Lá soube que lutaria contra os 1,2 mil homens que haviam conseguido desembarcar, além do batalhão de paraquedistas que foi lançado em outras áreas próximas.


Ortega se lembra de ouvir os milicianos, a explosão de tanques e morteiros.

"No dia 16 de abril, ouvimos com atenção o discurso de Fidel em homenagem aos nossos sete compatriotas que morreram nos bombardeios. No caminho para Havana, o povo saía com bandeiras às ruas nos pedindo para derrotar o inimigo", recorda Ortega sobre as horas antes de se posicionar atrás do canhão.

Foi nesse discurso que Castro declarou pela primeira vez o caráter socialista da revolução e exortou o povo a expulsar os mercenários.

Foi assim que a televisão cubana transmitiu parte do discurso de Fidel Castro em 16 de abril de 1961

Na manhã de 18 de abril, Ortega avistou aviões inimigos. Foi a primeira vez que ele disparou um canhão.

"Você se sente inibido. Todos nós sentimos medo. Quem diz que não, está mentindo. Mas você olha para o lado e vê o resto firme e determinado. Quando você começa a disparar, se exalta e perde o medo", conta Ortega.

Nesse mesmo dia, sua bateria entrou com mais tropas nas imediações de Praia Larga, já cercando grande parte do exército de exilados.

"Ao amanhecer de 19 de abril, vimos cair no mar um dos aviões que derrubou nossa bateria. Outro avião caiu em um canavial. O copiloto morreu carbonizado, mas o piloto saltou de paraquedas e tentou fugir. Morreu lutando cercado por nossas tropas", relata o ex-combatente.

Com os ataques prévios ao desembarque cancelados, os aviões B-26 que acompanharam a invasão foram presas fáceis diante da frota praticamente intacta de Castro.

Os barcos que transportavam o combustível foram perdidos, e os aviões invasores não podiam usar o aeroporto próximo à Praia Girón como pretendiam.

Para reabastecer, eram necessárias quatro horas de voo de ida e volta até a base da Nicarágua. Cada vez que voltavam a Cuba, tinham menos de uma hora para bombardear.

As metralhadoras traseiras foram removidas para deixá-los mais leves — e isso os tornou mais vulneráveis.

Mal haviam se passado 24 horas desde o desembarque na madrugada de 17 de abril, e os invasores já haviam perdido dois dos seis barcos e metade da frota aérea.

Sem o apoio aéreo dos EUA, os bombardeiros B-26 estavam mais vulneráveis
O restante das embarcações partiu para alto mar para evitar maiores danos diante da reação de Castro.

Em 19 de abril, quatro instrutores de voo americanos que aguardavam na Nicarágua foram acudir os brigadistas que combatiam sozinhos, mas as forças fidelistas os derrubaram.

"Não era a hora deles morrerem, mas sentiram que deveriam nos apoiar. Foi um grande gesto", lamenta López de la Cruz.

19 de abril - Fracasso consumado


Castro conhece as dificuldades do inimigo. Por isso se apressa e avança com tudo para encurralá-los na costa e impedir que escapem.

Suas tropas chegam em ondas: caminhões com mais homens, tanques blindados, morteiros, aviões.

Castro conhecia as dificuldades do inimigo e aproveitou para encurralar os invasores na Praia Girón
No terceiro dia, os invasores não têm mais munição, tampouco aviões ou rota de fuga. Eles se rendem por volta das 17h30 da tarde de 19 de abril.

É complicado fornecer dados exatos sobre o número de mortos do lado invasor.

"Havia o pessoal da marinha nos barcos que afundaram e ali perdemos a contabilidade exata", explica De la Cruz.

O presidente da Associação de Veteranos estima que houve 103 mortos e outros 100 feridos.

Ele considera que as baixas foram mínimas levando em conta que não pararam de lutar durante três dias.

Do lado cubano, um dos comandantes que liderou a resistência, José Ramón Fernández, estimou o saldo em 176 mortos, 300 feridos e 50 incapacitados em um livro sobre a invasão que escreveu com Fidel Castro.

Milícia cubana com um corpo. É difícil saber o número exato de mortes do lado invasor

"Um ato de arrogância"


"A invasão da Baía dos Porcos foi um erro de cálculo tremendamente arrogante por parte da CIA", avalia Kornbluh.

O alto comando estava convencido de que a revolução de Castro era impopular e que bastava uma invasão militar de opositores para que o povo se voltasse contra ele.

"Mas a verdade é que Castro era muito popular nessa região. Havia levado eletricidade e apoio agrícola. A CIA confiou em suposições falsas e pobres para armar a invasão."

"Também não era difícil imaginar que dezenas de milhares de militares cubanos derrotariam rapidamente 1,4 mil invasores", diz Kornbluh.

Prisioneiros rendidos caminhando um após o outro. Cerca de 1,1 mil homens da Brigada 2506 foram capturados e levados para prisões em Havana

A prisão


Humberto López Saldaña conta à BBC News Mundo o que aconteceu após ser capturado:

Antes de sermos transferidos para a prisão, Che Guevara chegou. Nos perguntou o que fazíamos antes de deixar Cuba. Parecia muito calmo, mas sempre pensei que a qualquer momento poderia levar um tiro.

Nos transportaram em vários caminhões. Um estava muito cheio. Fechado hermeticamente. Nesse, morreram nove companheiros.

O meu foi com as portas abertas. Enquanto estávamos sendo transferidos, as pessoas gritavam na rua: "Mercenários, traidores da pátria, vamos fuzilar vocês!"

Depois, em Havana, nos trancaram na prisão de Castillo del Príncipe. Lá o tratamento não foi bom.

Algumas celas estavam superlotadas e você tinha que dormir no chão.

Se nossos familiares nos mandavam algo, os guardas jogavam no chão. As pessoas brigavam para pegar. Tínhamos que nos organizar e repartir as coisas.

Conseguir charutos era muito difícil. Alguns prisioneiros fumavam até casca de laranja.

Quando saíamos para caminhar no pátio, um guarda nos cutucava com baionetas se não andássemos rápido.

Uma coisa bem tétrica é que éramos cerca de 150 por galeria e só havia um banheiro.

Nos ofereciam um café com leite que, na verdade, era água suja — e, muitas vezes, cuspiam nele antes de entregar. O pão que nos davam era duro como pedra. Jogavam no chão e não acontecia nada com ele. Você tinha que molhar para poder comer. A comida era muito escassa.

A troca


López de la Cruz passou mais de três meses em uma cela solitária porque tentou escapar e passou a integrar a categoria de presos perigosos.

Por isso, foi colocado no último avião que mandou os prisioneiros livres de volta a Miami.

Era Natal de 1962.

Kennedy havia enviado um famoso advogado para negociar com Castro.

Era James B. Donovan, que em fevereiro de 1962 havia conduzido uma troca de prisioneiros entre os Estados Unidos e a União Soviética.

Familiares dos prisioneiros e o procurador-geral do Estado contrataram o
famoso advogado James B. Donovan para conduzir as negociações
Ele viajou pela primeira vez a Havana em 30 de agosto de 1962 e, no dia seguinte, se reuniu por quatro horas com Fidel Castro.

Nos meses seguintes, Donovan se encontrou várias vezes com o líder cubano.

As negociações foram tratadas como um processo de "indenização", mais do que uma troca humanitária, "algo que Castro exigiu desde o início porque queria que Cuba fosse compensada pelos custos da invasão", explica Kornbluh.

Meses antes da libertação, os prisioneiros haviam sido julgados publicamente por traição à pátria.

Julgamento dos prisioneiros, Havana, 1962: Os prisioneiros testemunharam em um julgamento público televisionado, em que relataram o envolvimento da CIA na operação
Muitos acreditavam que acabariam sendo fuzilados, mas foram condenados a 30 anos de prisão e impuseram uma fiança no valor total de US$ 62 milhões.

No fim de dezembro de 1962, Donovan acordou com Castro que os presos seriam libertados em troca de US$ 53 milhões em remédios e alimentos que seriam distribuídos ao povo cubano.

Quando os primeiros carregamentos de mantimentos chegaram em 23 de dezembro, os aviões da Pan American Airlines estavam transferindo os prisioneiros para Miami, onde uma recepção com 10 mil pessoas os aguardava no agora extinto auditório Dinner Key.

Os prisioneiros foram recebidos com comoção por familiares e amigos em Miami na véspera e no dia de Natal de 1962
Enquanto isso, em Cuba, era celebrada a "segunda vitória de Girón", por terem vencido "a batalha pela indenização".

No último avião da Pan Am, López de la Cruz lembra de olhar pela janela e pensar que seria muito difícil voltar ao seu país.

"As pessoas dizem que nos trocaram por latas de compota, mas não nos sentimos humilhados. Pela nossa libertação, Cuba recebeu muitas roupas, alimentos e remédios que o governo distribuiu à sua maneira", diz López Saldaña.

Nenhum dos dois exilados voltou a pisar em Cuba.

Jorge Ortega: "Sempre serão nossos inimigos"


Se um dia eu poderia sentar com um deles e tomar um rum? Para mim, parece muito difícil depois dos companheiros que morreram ou acabaram mutilados.

Conversar, sim, Cuba está sempre disposta a dialogar. Mas precisa haver igualdade de condições. Enquanto houver um embargo, não é possível.

Retrato atual de Jorge Ortega
Sessenta anos após a invasão, Jorge Ortega conversou com a BBC. Até hoje, ele acha difícil ter um relacionamento amigável com integrantes da Brigada 2506

Os integrantes da Brigada são mercenários porque se venderam a um país que os contratou.

Eles sempre serão nossos inimigos. Nunca deixaram de ser e, de Miami, continuam influenciando e apoiando este bloqueio contra nosso país.

É verdade que Obama esteve recentemente em Cuba e pediu a retomada do diálogo.

Mas ele também pediu para esquecer a história. A história não se esquece. Sempre a temos presente.

Heróis em Miami


A invasão da Baía dos Porcos é vista em Cuba como um ataque de traidores da pátria vendidos aos Estados Unidos.

Todo dia 19 de abril, é comemorado com marchas e paradas militares o que o governo cubano considera a "primeira grande derrota do imperialismo na América Latina".

Todo mês de abril, os cubanos que vivem na ilha celebram a vitória de Praia Girón,
 ‘o triunfo sobre um exército de mercenários e traidores'
A 145 quilômetros, no entanto, o sentimento é muito diferente.

Pelas ruas de Miami, ecoa a nostalgia do que poderia ter sido. Monumentos, museus e parques homenageiam os heróis da Brigada 2506.

Os sobreviventes não gostam de falar hoje, 60 anos depois, sobre quantos cubanos do outro lado mataram durante a invasão.

"A verdade é que prefiro não dizer. Sabíamos que íamos para a guerra, mas ninguém jamais vai dizer que gostamos de matar pessoas. No fundo, éramos todos irmãos ", diz López de la Cruz.

"Alguém vai matar ou ser morto. Hoje parece diferente, é verdade que éramos todos cubanos. Mas naquela época estávamos simplesmente pensando em libertar Cuba de todo o horror que estava acontecendo", reflete López Saldaña.

Os veteranos da Brigada ainda sonham em testemunhar em vida a queda do governo cubano.

Há dois presidentes americanos na história que eles têm dificuldade em perdoar: Kennedy e Obama.

"Kennedy não estava à altura. Foi uma estupidez porque, embora ele quisesse proteger os Estados Unidos, estava claro que eles estavam envolvidos. Com o passar dos anos, entendi sua decisão, mas é verdade que muita gente se sente traída e decepcionada com o que ele fez", diz López de la Cruz à BBC News Mundo.

‘A verdade é que prefiro não dizer. Nós sabíamos que íamos para a guerra, mas ninguém jamais
dirá que gostamos de matar pessoas. No fundo, éramos todos irmão' , diz López de la Cruz
Os veteranos são ainda mais críticos em relação a Obama.

"Ele quis cair nas graças do regime de Castro e negociar, mas foi ingênuo. Cuba abriu as portas para eles sem mudar nada. Foi uma política desastrosa ", diz López Saldaña.

Grande parte da comunidade cubana exilada na Flórida continua a apoiar uma política linha dura contra a ilha e venera ex-brigadistas como heróis no exílio.

"Temos uma satisfação tremenda. Cumprimos nosso dever, embora não tenhamos alcançado o objetivo. Aqui em Miami somos muito respeitados. O próprio Donald Trump se encontrou conosco várias vezes. Em setembro de 2020, na verdade, ele nos convidou para ir à Casa Branca. Estamos muito orgulhosos", reafirma López Saldaña.

Via BBC - Créditos: Pesquisa e reportagem: José Carlos Cueto / Edição: Daniel Garcia Marco e Liliet Heredero / Design e ilustração: Cecilia Tombesi / Programação: Catherine Hooper / Com a colaboração de Will Grant, Adam Allen e Sally Morales / Projeto liderado por Liliet Heredero e Carol Olona.

Acompanhe nos próximos dias, sempre às 17 horas, nova matéria sobres
"Os 60 anos da invasão da Baía dos Porcos"

História: A queda de avião que transformou viagem de lua de mel em aventura pela selva amazônica

O marido de Holly, Fitz, em frente ao avião acidentado na selva peruana — o 1º incidente da lua de mel do casal
Quando o avião em que estavam fez um pouso forçado em meio à selva peruana em fevereiro de 1973, a lua de mel dos sonhos de Holly Fitzgerald e do marido Fitz pela América do Sul logo ganharia ares de tormento.

Era o início de uma aventura que culminaria com os dois "ilhados" em uma balsa improvisada, por quase um mês, no rio Madre de Dios, à mercê de tempestades, piranhas e jacarés.

Sem nada para comer, a não ser lesmas e sapos, Fitz chegou a ficar à beira da morte. O relacionamento, a sanidade mental e a força física do casal seriam testados ao limite absoluto.

Em entrevista ao programa de rádio Outlook, da BBC, Holly conta como eles sobreviveram a tamanha provação.

Holly Fitzgerald e o marido Gerald, mais conhecido como Fitz, estavam casados havia menos de dois anos quando partiram em uma viagem de lua de mel de um ano ao redor do mundo, que tinha como ponto de partida a América do Sul.

Era início da década de 1970, e o casal americano tinha pouco mais de 20 anos na época — ambos estavam perdidamente apaixonados e em busca de aventura. "Estávamos muito animados. Economizamos durante um ano. Nós dois trabalhávamos, ele era repórter de um jornal e eu era assistente social", relembra Holly.

Fitz havia combinado com o editor do jornal que escreveria artigos semanais sobre a viagem, enquanto Holly seria responsável pelas fotos.

No fim do ano de 1972, eles haviam juntado dinheiro suficiente e estavam prontos para embarcar. No entanto, só após quatro meses viajando pela América do Sul, a verdadeira aventura do casal começaria de fato.

Holly e Fitz no topo de uma montanha perto de Cusco
Eles estavam na cidade peruana de Pucallpa, quando decidiram conhecer a Bacia Amazônica. Para isso, o plano era voar até Puerto Maldonado, também no Peru, onde pegariam um barco comercial para descer até Riberalta, na Bolívia. De lá, seguiriam de carona para o Brasil.

Mas estavam com o cronograma apertado: tinham dez dias para chegar a tempo de pegar a embarcação, só haveria outra três meses depois.

Pouso forçado


Eles decolaram então em um avião bimotor militar antigo, modelo DC-3, rumo à Bolívia. "Estávamos muito longe da civilização, não havia casas lá embaixo, apenas árvores sobre árvores, uma ondulação de árvores, quase como um oceano verde", descreve Holly.

Mas a contemplação da vista aérea da floresta logo seria interrompida: "O avião ia fazer uma parada em uma aldeia no caminho do nosso destino e, à medida que descia, começou a tremer, a balançar... estava descendo muito rápido. Eu perguntei: 'Fitz, esse avião não está indo rápido demais?'"

A aeronave, com 13 pessoas a bordo, acabou fazendo um pouso forçado no meio da selva.

"Quando o avião bateu no solo, era tudo lama, uma grama lamacenta, e ele parecia não conseguir frear. Havia uma península de água em volta, e ele colidiu nas árvores da floresta."

"A asa quebrou, e o trem de pouso ficou todo amassado", acrescenta. A foto no início desta reportagem, tirada por Holly, retrata o momento logo após o acidente.

"Foi muito assustador, mas eu estava com minha câmera e pensei: 'Preciso tirar uma foto porque ninguém vai acreditar nisso'."

"Eu recuei um pouco e disse: 'Fitz, para um minuto, vou tirar uma foto'. E ele falou: 'Não, isso pode explodir a qualquer momento, temos que ir embora'. Mas ele parou, e parece bem atordoado, chocado na foto."

Colônia penal


Naquela época, não havia telefone celular, tampouco internet. Só restava a eles seguirem então os outros passageiros em busca de ajuda, embora não tivessem a menor ideia para onde estavam indo.

"Atravessamos um riacho em um barco a motor, quatro pessoas de cada vez, e começamos a caminhar por uma trilha no meio da selva, uma trilha lamacenta, porque era estação de chuva."

"Pensamos que íamos para uma aldeia, mas acabou que era uma colônia penal", revela. Era a Colônia Penal Agrícola del Sepa, localizada em meio à selva peruana. "Os guardas foram muito simpáticos, deixaram a gente dormir no alojamento deles."

"Era um campo aberto, como um campo de futebol, e eles diziam que os presos não tinham para onde fugir. Portanto, não havia grades, tampouco muros", relata.

O plano era esperar alguns dias até a grama secar para pegar então outro avião até Puerto Maldonado.

Quando a lama secou, eles prosseguiram viagem um tanto quanto apreensivos. Mas, desta vez, sem surpresas no voo.

"Quando pousamos, todos aplaudiram, porque estávamos muito felizes por estar no chão novamente.

A jangada


No entanto, haviam chegado tarde demais para pegar o barco — e o próximo só passaria três meses depois.

"Ficamos arrasados. Estávamos naquela cidade pequena, era estação de cheia, tinha lama até meu tornozelo, simplesmente não era onde queríamos ficar por meses esperando um barco."

Até que um morador local deu uma alternativa: "Ele disse: 'Vocês poderiam pegar uma jangada, que é o que as pessoas aqui fazem. Todos nós aqui usamos jangadas'."


Holly logo se entusiasmou com a ideia, mas Fitz estava reticente. "Nós não conhecemos esse cara. Por que deveríamos confiar no que ele disse?", questionou.

Holly batizando a jangada 'The Pink Palace'
Não demorou muito, no entanto, para ela convencer o marido. Eles construíram então uma jangada, a qual batizaram de Pink Palace (Palácio Rosa), uma plataforma com quatro toras de madeira amarradas e uma tenda de plástico rosa em cima.

E zarparam pelo rio Madre de Dios, que vai do Peru até a Bolívia, em direção à cidade de Riberalta, a cerca de 800 quilômetros de distância. Uma viagem prevista para durar cinco dias e cinco noites.

A princípio, parecia que seria um passeio idílico. "Era lindo e relaxante. É claro que, no fundo havia aquele pensamento: Uau, não há absolutamente ninguém por aqui. Mas também tinha uma parte maravilhosa e encantadora de borboletas chegando e pousando na gente, o chilrear dos pássaros..."

Para se distrair, Holly conta que eles chegaram a dançar sobre a jangada.

Tempestade


Mas a calmaria estava prestes a acabar. No meio da quarta noite, eles foram atingidos por uma forte tempestade de raios e trovão. "Era muito alto e assustador. Eu acordei e gritei: 'Fitz, tempestade, tempestade'", relembra.

"Ele acordou e olhou para fora da tenda, claro que estava escuro, mas com os relâmpagos você podia ver que a água estava turbulenta."

A jangada 'The Pink Palace' que Holly e Fitz construíram para descer o rio
De repente, uma árvore caiu sobre a embarcação. Não só rasgou o plástico da tenda, permitindo que a água entrasse, como deixou Holly presa embaixo do tronco.

Se não bastasse, ela ainda foi picada por uma legião de formigas-lava-pé que estavam na árvore e subiram sobre seu corpo. "Parece que você está pegando fogo", descreve.

"Eu gritava para Fitz me ajudar a sair. Meu cabelo estava todo emaranhado nas raízes da árvore."

"E ele dizia: 'Você consegue, você consegue'. Fui capaz de me libertar das raízes, e nós dois tivemos que empurrar aquele tronco enorme para fora da jangada porque estava afundando o barco."

Luta pela sobrevivência


Na manhã seguinte, a tempestade deu lugar a um lindo dia de sol. Mas com o novo dia, veio também uma terrível constatação: a maior parte da comida que tinham havia caído no rio em meio ao temporal. "Não havia sobrado quase nada."

"Só tínhamos agora uma caixa com uma lata de atum, um pouco de sopa de ervilha em pó, um pouco de açúcar e café instantâneo. Era isso", enumera.

E, infelizmente, agora eles não podiam mais simplesmente continuar navegando rio abaixo conforme haviam planejado.

A tempestade havia mudado o curso da jangada para um afluente do rio — e eles estavam "encalhados" em uma planície alagada, sem terra à vista.

Era basicamente um pântano, sem qualquer corrente para levá-los de volta. Nadar no rio infestado de piranhas e jacarés tampouco parecia uma opção.

Sem ter para onde ir, se tornaram alvos fáceis para os animais selvagens que viviam na floresta.

"A gente podia ouvir os animais, principalmente durante noite. Havia rugidos, alguns rugidos pareciam de onça. E, embora a terra estivesse submersa, sabíamos que elas podiam subir pelas árvores."

"Sabíamos que havia ainda anacondas e jacarés."

Fitz a bordo do 'Pink Palace' no rio Madre de Dios
Holly e Fitz fizeram uma tentativa de escapar do pântano tentando remar de volta para o rio principal. Mas uma tempestade os impediu, além do fato de que a jangada era grande demais para navegar entre as árvores alagadas.

Com o passar dos dias sem comer, eles começaram a perder peso rapidamente, e a ficar cada vez mais fracos.

"Foi assustador ver o quão rápido isso poderia acontecer com a pessoa que eu amava", diz Holly.

O objetivo de chegar à Amazônia brasileira deu lugar a uma verdadeira luta pela sobrevivência. E, contrariando o conselho dos moradores locais para não entrar na água, eles não tiveram escolha a não ser tentar nadar para fora do pântano.

"Cada um de nós tinha um pedaço de madeira, e nós nadamos o mais longe que conseguimos."

"Nadamos o dia todo, do amanhecer ao anoitecer. Éramos jovens e fortes, mas não comíamos fazia quase duas semanas, estávamos realmente ficando fracos... e não havia terra para descansar, foi horrível", recorda.

Eles estavam à beira do limite físico e psicológico. "Num dado momento, Fitz começou a gritar com Deus. Ele estava com o punho levantado, apenas gritava... E eu pensei: Meu Deus, ele está desmoronando."

"Ele estava furioso e dizia: 'Por que você me deixou sobreviver ao Vietnã? Fui ferido duas vezes, por que sobrevivi à meningite no quartel? Quase morri. E agora estamos aqui. Vamos morrer nesta selva abandonados por Deus. Por que isso está acontecendo? Por que você está deixando isso acontecer'?"

Foi quando decidiram voltar para a jangada e começar a procurar comida, o que não haviam feito até então. E foram pequenos sapos, caracóis e lesmas que não deixariam o casal morrer de fome.

Por volta do 23º dia, Holly teve uma epifania. 

"Eu acordei e pensei: Céus, eu quero ter um filho. Acordei Fitz, e contei para ele. Não sei se ele achou que era meio fora de hora, então eu disse: 'Não aqui, mas no futuro. Vejo que teremos uma família'. E ele disse: 'Ah, isso seria maravilhoso, claro'."

"E aquilo simplesmente deu um novo significado, renovou a esperança de que sairíamos dali. Mal conseguíamos nos mover, apenas engatinhávamos pelas toras, e ainda assim seguiríamos em frente porque queríamos aquele bebê", afirma.

Mas, no 31º dia, Holly enfrentaria mais uma provação. Quando acordou, ela não conseguiu despertar o marido — e receou que ele tivesse morrido enquanto dormia.

"Ele estava deitado tão imóvel, que eu não conseguia vê-lo respirar. Ele estava muito frágil. Eu chamava: 'Fitz, Fitz'. E ele não respondia."

"E então, quando ele atendeu, eu comecei a chorar. Estava tão aliviada. Ele estava vivo!"

O resgate


O que eles ainda não sabiam é que aquele também seria o último dia do martírio.

Pouco tempo depois do susto, Fitz avistou dois homens em uma canoa — e usou a pouca força que lhe restava para gritar por socorro.

"Descobrimos que (os dois homens) eram de uma tribo local e se chamavam Rocque e Silveiro. Duas pessoas maravilhosas, eles salvaram nossas vidas."

Os indígenas colocaram o casal na canoa em que estavam, e os levaram até sua aldeia.

Holly e Fitz com seus heróis, Rocque e Silveiro
"Demorou algumas horas, eles cortaram caminho pela mata, o que a gente não conseguia fazer com a jangada, mas com a canoa dava para navegar pela floresta inundada, e eles iam cortando a vegetação com um facão" diz ela.

Quando menos esperavam, estavam finalmente de volta ao rio Madre de Dios.

"Eu pensava: Eu vou beijar aquele rio se voltar a vê-lo, então é claro que eu beijei. Levantei um pouco de água com a mão e dei um beijo."

Ao chegar na aldeia, a primeira providência dos nativos foi alimentar o casal. "Primeiro, comemos laranjas maravilhosas, chamadas laranjas de Santo Domingo."

"Mas quando a professora apareceu, ela tirou a laranja da gente e jogou num saco, presumo eu por causa da acidez, é claro que nosso estômago não aguentaria."

"Ela fez então uma canja de galinha, peixe e um pouco de arroz..."

A condição física do casal era alarmante — ambos haviam perdido muito peso, estavam extremamente desnutridos e desidratados.

"O médico que nos atendeu disse que Fitz talvez não tivesse nem um dia de vida, eu talvez tivesse alguns dias."

Os dois precisaram ficar hospitalizados por 17 dias até se recuperarem totalmente.

"Depois de alguns dias, eu conseguia andar até o quarto dele", diz Holly, que estava na enfermaria feminina, e Fitz na masculina.

"Antes disso, nós trocávamos mensagens por intermédio das auxiliares de enfermagem que levavam nossos bilhetes junto com a comida, para lá e para cá."

Após receberem alta, eles decidiram voltar para casa, em Connecticut, nos EUA, onde foram recebidos pela família no aeroporto. 

"Demoramos alguns meses para fazer um balanço de tudo que havíamos passado."

"Víamos que ninguém conseguia compreender, até tentavam entender, mas era muito difícil de explicar. E a gente tentava explicar de uma forma um pouco mais divertida, mais leve, porque era tão doloroso, não só para as pessoas ouvirem, como para a gente contar", desabafa.

Uma parceria de 50 anos


Atualmente, Holly vive com Fitz no Estado americano de Massachusetts. Eles têm duas filhas — e cinco netos.

Holly e Fitz atualmente. O casal completa 50 anos juntos
E todos os anos, desde que foram resgatados, eles celebram uma tradição um tanto quanto original, que envolve laranja, peixe e arroz.

"Fazemos essa refeição até hoje todo dia 16 de março , porque foi neste dia que Rocque e Silveiro nos salvaram. Chamamos de dia da jangada. É um agradecimento."

Você pode se perguntar como Holly consegue se lembrar de tantos detalhes depois de tanto tempo. É porque ela escreveu um diário durante toda temporada na floresta. Mas levou muitos anos para fazer algo com ele.

Finalmente, em 2017, ela escreveu um livro para contar a experiência na selva, chamado "Ruthless River" ("Rio Implacável", em tradução livre).

Em dezembro deste ano, o casal vai completar 50 anos juntos, uma relação que saiu fortalecida da provação pela qual passaram na floresta.

"Eu diria, da minha parte, que (a aventura na selva) serve sempre de comparação para outras coisas que vivemos: 'Bom, ele sobreviveu à jangada, então podemos lidar com essa doença ou com o que quer que aconteça'", avalia.

"Lembramos que passamos por isso juntos, e podemos passar por outras coisas."