Voar no Brasil ou no exterior significava mais do que ir de um lugar a outro: era um evento luxuoso.
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Primeira classe a bordo de um 747, conhecido como Jumbo, avião de grande porte que fez sucesso também nas décadas de 1970 e 1980 (Foto: Getty Images) |
Houve um tempo em que viajar de avião era sinônimo de requinte e glamour, evento digno de ser vivido com vestidos caros para elas e ternos de grife para eles desfilarem pelos corredores das aeronaves, inclusive na classe econômica. Cigarros eram permitidos. Um cardápio recheado de comidas, bebidas e sobremesas da mais alta gastronomia satisfazia a todos. As poltronas, por sua vez, eram espaçosas e localizadas em espaços amplos e com confortável folga entre uma e outra – em alguns modelos de aviões, havia até um lounge.
Com as viagens de avião ainda pouco recomendadas por conta da pandemia da Covid-19, descrever um cenário destes pode até parecer coisa de filme à la Prenda-me Se For Capaz. Porém, no final nas décadas de 1970 e 1980, a aviação no Brasil viveu tempos áureos, de glamour no espaço aéreo comercial. Com a dianteira da Varig, companhia conhecida pela excelência no passado, outras empresas brasileiras também primavam pelo conforto e serviço de bordo, como a Transbrasil e a Vasp – todas já extintas.
“A primeira classe da Varig era como um restaurante cinco estrelas mundial. Na época do (avião) 707, que fazia Rio-Nova York, por exemplo, a primeira classe era extensa, chegou a ter 32 poltronas, separadas por cortinas da classe econômica”, relembra Claudia Vasconcelos, que foi comissária de bordo da empresa por 30 anos. Ex-aeromoça, ela é a autora de Estrela Brasileira, livro de memórias sobre sua trajetória na companhia aérea, que chegou a ser uma grande vitrine do país e de padrões a bordo.
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Propaganda da Vasp sobre o One-Eleven, conhecido como “jatão”, que ingressou na frota da empresa a partir de 1968 (Foto: reprodução) |
As propagandas da época exaltavam o que havia de melhor na aviação e nos serviços de bordo, como os talheres de prata e os banquetes. Os comerciais da Vasp eram alegres, mostrando a diversidade do povo brasileiro e a modernidade de sua frota. Uma das propagandas na televisão na década de 1970, por exemplo, celebrava o serviço de bordo de “categoria internacional” do BAC 1-11, jato de curto alcance que tinha música, ar condicionado e canapés com caviar. A Transbrasil, por sua vez, exaltava seus funcionários e a novidade do cinema a bordo do Boeing 767, descrito como avião do “século 21”.
Em uma das campanhas na TV, a experiência de voar com a Varig era descrita como um “ágape do luxo”, o que levou a empresa a receber o prêmio de melhor serviço de bordo em 1979 pela revista norte-americana Air Transport World. “Tínhamos todos os itens necessários: conforto, segurança, delicadeza no trato e comprometimento com o cliente”, define Claudia.
Ao lado: Propaganda da Pan Am do 747, o “jumbo”, que tinha 16 lugares na primeira classe (Foto: reprodução)
Ex-professora do ensino médio de uma rede privada do interior de São Paulo, Mariza Ferreira Pinto, de 72 anos, recorda que sua primeira viagem internacional, em 1973, foi recheada de glamour na classe econômica da Pan Am com destino a Buenos Aires.
“Foi um luxo só. O avião era bastante espaçoso, as pessoas eram elegantíssimas. Lembro que fui de terninho e meu marido, na época, foi de calça social e camisa de manga comprida. O talher era de aço inoxidável, bem pesado. Tinha cardápio, prato de porcelana, aperitivos, sobremesas, vinho”, resume, saudosa aos contrapontos das viagens de hoje em dia.
Banquete nos ares
As refeições servidas a bordo nos dias de hoje são cada vez mais compartimentadas e com opções limitadas aos passageiros. Porém nada se compara ao que era oferecido antigamente.
A Transbrasil, que operou entre 1955 e 2002, chegou a servir feijoada em seus voos, um símbolo da gastronomia brasileira, e as louças coloridas usadas na primeira classe ficaram conhecidas país afora. Enquanto isso, a Vasp oferecia as mais diversas bebidas alcoólicas até na ponte aérea Rio-São Paulo.
A Varig, por sua vez, caprichava na primeira classe. Claudia Vasconcelos relembra os mínimos detalhes dos tratamentos dados aos passageiros. De acordo com ela, logo no embarque, eram servidos suco de laranja e champanhe Moet Chandon. Após a decolagem, toalhinhas quentes em barquetes de madeira eram entregues para que então os menus com cartas de vinhos e opções de refeições, com desenhos assinados pelo artista brasileiro Nelson Jungbluth, fossem distribuídos.
Canapés frios e quentes antecediam as refeições, como torradinhas cobertas com pasta de roquefort, ovas de salmão com maionese, foie gras e pequenas bolinhas de caviar com uma mini fatia de limão e palitos de churrasquinho.
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Serviço de bordo de antigamente era farto, como o da Varig, que continha várias etapas (Foto: reprodução) |
Cremes de palmito e de aspargos com croutons e pequenas lascas de panqueca no fundo da xícara, além de saladas com ingredientes frescos e vários tipos de molho faziam parte das entradas. Um dos pratos mais aguardados e celebrados na época era o de caviar, chamado de “sensação”: ele levava uma lagosta na parte superior, assim como uma concha em forma de ostra, tudo rodeado de gelo.
E tem mais: pratos quentes, como tábua de churrasco e filés argentinos ladeados por espetos de camarões gigantes fritos no alho e óleo, eram servidos como opções de refeições principais junto de arroz à grega. “A gente forrava as mesas com toalhas de linho e guardanapos do mesmo tecido”, diz Claudia. A louça da primeira classe era japonesa. Tinha o carrinho de sobremesa, carro de licor, café e, por fim, caixas de chocolate suíço davam conta de satisfazer os passageiros. Alguns dos serviços não eram restritos apenas à primeira classe, como certas refeições, pratos de porcelana, talheres e entretenimento a bordo, repetidos com excelência em toda a aeronave.
O carrinho de bebidas era de fazer inveja a qualquer bartender: de um lado, garrafas de Jhonnie Walker, Chivas, Ballentine’s, Campari, gim, Carpano, cachaça Nêga Fulô e balde de gelo com champanhe. Do outro, cervejas de vários países, suco de tomate, refrigerantes e águas. O chopp era um sucesso em trechos nacionais em Santa Catarina e no nordeste.
Até o fim da década de 1990, fumar dentro das aeronaves ainda era permitido. A fumaça andava pelos corredores e os cinzeiros eram repassados entre os passageiros. “Éramos convidados eventualmente para passarmos na área de manutenção e a quantidade de nicotina que ficava agarrada nos dutos do ar condicionado era uma coisa impressionante”, relembra Claudia.
Conforto levado a sério
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Lockheed L-188 Electra da Varig, que tinha uma espécie de sala de estar confortável (Foto: Wikimedia Commons) |
Hoje, os aviões são projetados para carregar cada vez mais passageiros de forma leve e econômica, o que enxugou os assentos da primeira classe e da executiva, aumentando os números de lugares na econômica. Por consequência, diminui-se os espaços físicos entre uma poltrona e outra. Não raro os passageiros reclamam de dores nas costas e desconforto.
“É quase difícil sentar-se nos aviões de hoje em dia. A espuma entre o alumínio e o passageiro é mínima. Os outros aviões da época tinham um conforto absoluto, além de ter descanso para os pés, que você sentava e ficava numa posição praticamente horizontal”, relembra Claudia Vasconcelos.
Como tudo na aviação comercial de antigamente era superlativo, os espaços eram maiores e acomodavam muito bem os indivíduos. Uma das aeronaves que mais bem traduzia isso era o Lockheed L-188 Electra, parte da malha das principais aéreas brasileiras a partir da década de 1960. Acomodando até 90 pessoas, havia um lounge em seu interior, uma espécie de sala de estar que fazia sucesso entre os passageiros como um local confortável e sociável. As pessoas ficavam em círculo e havia até obras de arte nas paredes. O avião foi símbolo da ponte aérea Rio-São Paulo e foi usado pela Varig até na rota da Amizade – que ligava o Brasil a Portugal. Seu último voo foi em 1991.
Ao lado: Kit viagem da Varig, que continha produtos franceses, chinelos e outros produtos para conforto pessoal (Foto: acervo pessoal)
Para a maior comodidade, revistas e jornais do mundo todo eram distribuídos antes mesmo antes da decolagem. Em voos mais longos, como os internacionais da Varig, necessaires de couro com repartições internas eram dadas aos passageiros, que continham colônias francesas e loções corporais.
Par de chinelos e fones de ouvido também estavam na lista de conforto pessoal. Nos bolsões das poltronas havia mapas, papel de cartas e caneta.
Código de vestimenta formal
Mesmo não sendo uma regra, o código de vestimenta nas viagens esbarrava em indumentárias extravagantes e chiques. As aeromoças eram conhecidas pela beleza e elegância, arrematadas com salto palito, lencinhos no pescoço e boinas.
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A ex-aeromoça Claudia Vasconcelos pronta para o trabalho. Uniformes da Varig chegaram a vir da França (Foto: acervo pessoal) |
O estilista brasileiro Clodovil (1937-2009) foi o responsável pela criação dos modelitos dos tripulantes da Vasp por dez anos, a partir de 1963. Até essa época, os uniformes da tripulação da Varig eram originários da França.
“As pessoas compravam roupa especial para viajar porque era um evento. As mulheres vestiam os melhores casacos de pele, era uma coisa maravilhosa, todo mundo elegantérrimo”, narra a ex-aeromoça da Varig Claudia Vasconcelos.
Toda essa experiência nos ares, claro, tinha um preço alto. Era um tempo em que viajar de avião não era acessível para todos, com o valor das passagens mais condizente à realidade da elite. A aviação por aqui serviu setores de maior poder aquisitivo, virando um meio de transporte de luxo, como defende Volney Aparecido de Gouveia, professor e gestor do curso de aeronáutica da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).
“Nossa indústria nunca esteve tão preocupada mais diretamente com a questão do acesso ao transporte aéreo. A preocupação era oferecer um serviço de alta qualidade”, afirma o professor, que já trabalhou na Varig e na Tam. Os custos das operações, incluindo aí os serviços de bordo e as comodidades nas alturas, eram imediatamente repassados para os preços das passagens, deixando-as bem mais salgadas que atualmente.
O cenário glamouroso dos voos começou a mudar já a partir dos anos 1970. Os serviços de status luxuosos se modificaram ao longo do tempo, refletindo um fenômeno internacional. E a partir dos anos 1980 a aviação mundial foi perdendo gradativamente essa característica, seguindo uma mudança de paradigma. Assentos ficaram mais apertados, comidas passaram a ser servidas em menores quantidades e a louça deu lugar aos descartáveis.
A chegada de negócios low fare low cost (baixa tarifa, baixo custo) no mercado começou a abalar as estruturas do setor, abarcando uma diversidade maior de passageiros, o que levou as companhias a se readequarem e “nivelar por baixo a qualidade do serviço por uma questão de sobrevivência”, como avalia Volney. “As empresas que surgiram depois já nasceram entendendo que essa aviação baseada no glamour não permite a elas expandirem suas operações e presença nos mercados”, afirma.
Para se ter uma ideia, de acordo com a pesquisa Transporte Aéreo de Passageiros da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o valor médio de comercialização das passagens em 2002 era de R$580,58. Em 2014, o valor passou para R$330,25, representando uma queda de 43,1% em 12 anos. Na décadas de 1970, este valor poderia ser até três vezes maior. Seguindo essa tendência do mercado, a pesquisa também aponta que entre 2000 e 2014 houve um crescimento de 210,8% no número de passageiros transportados, uma vez que em 2000 esse contingente correspondia a 32,92 milhões e em 2014 chegou a 102,32 milhões de passageiros – bem diferente da pequena porcentagem da população que voava antigamente.
Via Viagem e Gastronomia/CNN