Na noite de terça-feira, 31 de outubro de 2000, as condições meteorológicas no aeroporto Chiang Kai Shek em Taipei, Taiwan (Formosa) eram típicas do período de Monções, quando chove torrencialmente no sudeste asiático. Na verdade, o tufão Xangsane aproxima-se da ilha de Taiwan vindo ao mar da China, deixando as condições cada vez piores: ventos em fortíssimas rajadas e chuvas torrenciais eram enfrentadas pelas aeronaves que operavam em Taiwan naquela noite.
Terça-feira é um dos dias de menor movimento na aviação comercial. Isso seria um fator atenuante para uma tragédia que começava a se desenhar. O protagonista era o Boeing 747-412 de prefixo 9V-SPK, orgulho máximo da frota da Singapore Airlines. (Adornado com um maravilhoso esquema promocional de pintura, o 9V-SPK era um dos dois únicos Boeing 747-400 da frota escolhidos para promover um novo padrão de serviço de bordo, nas três classes, que a empresa lançara meses antes. Vale lembrar que esta que é, talvez, a melhor companhia aérea do mundo. Entre outras razões, porque até aquela data, a Singapore era também uma das mais seguras companhias aéreas do planeta: até 31 de outubro de 2000, a Singapore Airlines nunca havia sofrido um acidente fatal.
Nada levaria a crer, nem mesmo as miseráveis condições de tempo reinantes em Taipei, que esse invejável recorde seria desafiado naquela noite de tempestade. Afinal, embora as condições fossem bastante adversas, muitas outras aeronaves partiam e chegavam, em segurança, ao aeroporto Chiang Kai Shek.
O desastre com o Voo 006 da Singapore Airlines
O voo 006 havia partido de Cingapura com destino à Los Angeles via Taipei. O horário publicado de sua partida em Taipei era 22h55. O 747 deixou o portão B-5 e iniciou seu táxi pela pista de taxi NP, paralela às pistas 05R e 05L. Ao chegar ao final da taxiway NP, o 747 ingressou na taxiway N1 e deveria ter prosseguido nela até a pista 05L (esquerda). Ao invés disso, o Boeing virou à direita numa curva de180º, imediatamente adentrando na pista 05R (direita). Agora você vai entrar dentro da cabine do 747 e ver as consequências desse trágico engano.
Cap - Comandante (assento da esquerda)
F/O - Primeiro oficial (assento da direita)
RDO - Comunicação de rádio do primeiro oficial aos controles (solo e torre)
F/O-PA- Comunicação interna do Primeiro oficial aos passageiros e tripulantes
PNF - Piloto extra / Observador (Pilot Not Flying)
TWR - Frequência da Torre de Controle de Taipei
GND - Frequência de solo de Taipei
CAM - Sons gravados pelos microfones instalados na cabine de comando
23h08:27 - Cap: Hong Kong está fechado. É por isso que não aceitam ninguém.
23h08:29 - F/O: Ah, entendo.
23h08:30 - Cap: Por isso muita gente poderia ter alternado lá.
23h08:40 - F/O: Sim.
23h08:47 - Cap: O RVR da pista 05 esquerda já estava em 200 (metros) já checamos há pouco.
23h08:50 - PNF: RVR é, duzentos.
23h08:50 - Cap: Correto, duzentos metros, ah, ok.
23h08:55 - Cap: Ok homem, before takeoff checklist.
23h08:56 - F/O: Sim senhor.
23h08:58 - F/O: Before takeoff check: flaps.
23h09:02 - Cap: Vinte, verdes.
23h09:03 - F/O: Vinte, verdes.
23h09:06 - F/O: Controles de voo.
23h09:07 - Cap: Cheque.
23h09:07 - F/O: Cheque.
23h09:08 - F/O: EPR e velocidades.
23h09:09 - Cap: Ok, EPR um ponto cinco dois. Ah, V-1, uno quatro dois, V-R uno cinco meia e V-2 uno meia nove, selecionadas.
23:09:15 - F/O: Ok, EPR um ponto cinco dois. Ah, V-1, uno quatro dois, V-R uno cinco meia e V-2 uno meia nove, selecionadas.
23:09:22 - F/O: velocidades selecionadas.
23:09:24 - F/O: Navegação.
23:09:25 - Cap: Ok, ah, Taipei pista zero seis esquerda.
23:09:27 - F/O: Zero cinco esquerda.
23:09:29 - Cap: Zero cinco esquerda.
23:09:29 - PNF: Zero cinco esquerda.
23:09:31 - Cap: E nós temos a saída por instrumentos ANPU Três, transição Kikit.
23:09:38 - Cap: Parece que chegou a nossa vez.
23:09:40 - F/O: Os próximos somos nós.
23:09:41 - Cap: É, vire a direita aqui, até cruzar a oeste e... Vire à direita aqui.
23:09:46 - F/O: Pista em uso zero cinco esquerda, transição Kikit, inicialmente duzentos ah, para nivelar.
Transponder 2657, estaremos no nível 290 no fixo Bulan.
23:09:58 - Cap: Vai precisar de muito leme aqui, homem. O vento de través...
23:10:01 - PNF: Vento cruzado forte, hem?
23:10:02 - Cap: Muito.
23:10:03 - F/O: Transponder set, checks ok.
23:10:06 - Cap: Ok, obrigado.
23:10:14 - Cap: Todo mundo esperando para decolar, hem.
23:10:18 - Cap: Todo mundo e mais aquele chato ali.
23:10:21 - PNF: Quanto mais nos seguram, mais o pessoal parece querer atrasar.
23:10:23 - Cap: Pior ainda para quem decola. Olha, vou bem devagar aqui, que está muito escorregadio aí fora.
23:10:24 - F/O: Ok, nove nós. (de velocidade de taxiamento)
23:10:33 - PNF: Ok, até alinhar no vento.
23:10:35 - F/O: É muita umidade no ar.
23:10:41 - F/O: Virando a esquerda eu derrapo. Virando a direita eu também derrapo.
23:10:42 - PNF: O radar meteorológico deve estar todo vermelhinho.
O 747 prossegue taxiando em meio às rajadas de vento, que desestabilizam a aeronave. O tráfego é intenso e as condições, longe de serem ideais, provocam comentários que mostram mais do que simples cautela por parte dos pilotos da Singapore: mostram mesmo preocupação.
23h11:12 - Cap: Para a decolagem, é melhor usar o piloto automático, ok?
23h11:22 - Cap: É o tufão. Amanhã, o pessoal chagando aqui vai todo mundo sentir o terror.
23:11:28 - PNF: É, todo mundo, inclusive o Singapore 005.
23:11:49 - Cap: O cinco já partiu... me... melho... melhorou a visibilidade para 500 metros.
23h11:55 - PNF: Na cinco esquerda. ah, melhorou.
23:11:56 - Cap: É, o (controle de) solo disse que ia melhorar.
23:11:59 - PNF: Está 450 agora. (450 metros de visibilidade)
23:12:07 - Cap: Ok, até o final e curva à esquerda.
23:12:10 - F/O: Esquerda, ah.
23:12:10 - Cap: Sim.
23:12:17 - F/O: Frequência uno dois cinco uno para a saída.
23:12:22 - Cap: Ok, primeira à esquerda.
23:12:23 - F/O: Afirmativo, primeira à esquerda.
23:12:24 - Cap: Esquerda.
23:12:25 - F/O: Esquerda.
23:12:26 - PNF: O último QNH é uno zero zero uno.
23:12:58 - GND: Singapore 6 contate torre uno dois nove ponto três, tenha um bom dia.
23:13:02 - RDO: Uno dois nove ponto três, Singapore 6, um bom dia para você.
23:13:13 - F/O: Uno zero zero uno, uno dois nove ponto três e ah... ok.
23:13:25 - RDO: Torre Taipei bom dia, Singapore 6.
23:13:28 - TWR: Singapore 6, boa noite, Torre Taipei, aguarde antes da pista zero cinco esquerda.
23:13:33 - RDO: Aguardará antes da pista zero cinco esquerda, Singapore 6.
23:13:38 - TWR: Singapore 6, para sua informação, vento de superfície 020 (direção) com 24 (intensidade), rajadas de 43 nós, confirme sua intenção.
23:13:44 - Cap: Rajadas de 43 nós, ah.
23:13:46 - RDO: Obrigado senhor, Singapore 6.
23:13:47 - Cap: Ok, ok, melhor menos, hem.
23:13:48 - PNF: Menos, menos fortes.
23:13:54 - Cap: Zero dois zero pela esquerda.
23:13:56 - PNF: Vinte e quatro com rajadas de 43.
23:14:05 - F/O: Zero dois zero.
23:14:08 - Cap: Ok este vai ser por aqui.
23:14:18 - Cap: Zero dois zero.
23:14:20 - PNF: Sim, pela esquerda.
23:14:21 - Cap: Vá à direita para o final da pista, à direita no final da pista e então vire, ok?
23:14:31 - PNF: Vai usar bastante aileron na decolagem.
23:14:35 - F/O: OK.
23:14:40 - F/O: Na próxima.
23:14:41 - F/O: A próxima é a (taxiway) November One.
23:14:42 - Cap: Ok, na segunda direita.
23:14:44 - F/O: Segunda à direita, é essa.
23:14:53 - Cap: O melhor é dizer segunda direita ah, segunda direita e primeira direita.
23:14:55 - F/O: Livrando aquela antena de Satvoice.
23:14:58 - Cap: Pode avisar que estamos prontos.
23:15:02 - RDO: Singapore 6 pronto.
23:15:04 - TWR: Singapore 6, pista zero cinco esquerda, taxi para a posição e aguarde.
23:15:08 - RDO: Taxi para a posição e aguarde, Singapore 6.
Nesse momento, o Boeing deixa a taxiway NP e ingressa na taxiway N1. No entanto, ao invés de executar uma curva de 90º e ingressar na N1, que deveria levar o 747 à cabeceira da pista 05L, o comandante do 747 executa uma curva de 180º e começa a alinhar na pista 05R (direita).
Nenhum dos dois tripulantes na cabine, nem o piloto observador nem o primeiro oficial, questionam a curva de 180º. A aeronave também não pode ser vista pela torre de controle, pois a visibilidade, de menos de 500m naquele momento, impedia que o Boeing fosse visto pelos controladores - e fosse salvo do que enfrentaria a seguir.
23:15:12 - F/O: Eu aviso a tripulação para sentar.
23:15:12 - Cap: Ok, pode avisar.
23:15:15 - F/O-PA: Tripulação de cabine aos seus lugares, prontos para decolagem.
23:15:22 - TWR: Singapore 6, pista 05 esquerda, vento 020 (direção) com 28 (intensidade), rajadas de 50 nós, livre decolagem.
23:15:30 - RDO: Livre para decolagem, pista 05 esquerda, Singapore 6.
23:15:31 - Cap: OK, homem.
23:15:34 - F/O: OK, cheques de cabine anunciados.
23:15:37 - F/O: Packs. (desligamento do ar condicionado)
23:15:38 - Cap: Ok, normal, eh.
23:15:39 - F/O: Normal.
23:15:40 - F/O: Luzes estroboscópicas ligadas, luzes de pouso ligadas.
23:15:44 - F/O: Autorização de subida.
23:15:45 - Cap: Obtida.
23:15:46 - F/O: Obtida, senhor.
23:15:47 - Cap: OK, obrigado.
23:15:48 - F/O: Before takeoff checklist completado.
23:15:50 - F/O: OK, luzes verdes.
23:15:52 - Cap: Está muito escorregadio, vou devagar agora aqui, hem.
23:15:53 - F/O: Girando agora.
23:16:07 - F/O: E pelo PVD (Para-Visual Display - painel de visualização) ainda não alinhou.
23:16:10 - Cap: Temos que alinhar primeiro.
23:16:12 - PNF: Temos que girar 45 graus.
23:16:15 - F/O: Ah, sim, excelente, homem.
23:16:16 - Cap: Ok.
23:16:23 - Cap: Não tenho o PVD, eh. Ok, não está tão ruim assim, consigo ver a pista, não tão mal. Ok, vou ligar os limpadores (de para-brisa) ao máximo. Eh, prontos, Ok.
O microfone de cabine capta o som dos limpadores de para-brisa acionados na máxima velocidade. Preocupados com as difíceis condições de pilotagem, os três pilotos não verificam se estão alinhados na pista correta. Eles simplesmente acreditam que estão, mas não verificam sua posição.
23:16:27 - F/O: Ok.
23:16:31 - F/O: Pronto, senhor, zero dois zero é o vento, ok.
23:16:33 - Cap: Asa esquerda o aileron, aileron esquerdo no vento. Uh, OK, Cabine avisada?
23:16:37 - PNF: Cabine avisada, ok.
23:16:37 - Cap: Ok obrigado.
23:16:37 - F/O: Obrigado.
23:16:43 - PNF: Ok - potência TOGA (Take-Off / Go-Around, a máxima potência disponível).
23:16:43 - F/O: Potência TOGA, TOGA.
23:16:44 - Cap: Ok - Potência TOGA, TOGA.
23:16:44 - O microfone de cabine capta o som dos quatro motores acelerando ao máximo. O Boeing começa a correr na pista molhada de Taipei, sacudido por rajadas de ventos de quase 50 nós. A concentração necessária para manter o gigantesco Boeing alinhado com a pista é total. A visibilidade externa é de pouco mais de 450 metros e a chuva e os ventos estão cada vez mais fortes, com a iminente chegada do tufão.
23:16:54 - PNF: Segure (as manetes de potência na posição TOGA).
23:16:54 - F/O: Segurando.
23:16:54 - Cap: Ok.
23:16:55 - PNF: Oitenta nós.
23:16:55 - F/O: Oitenta nós.
23:16:56 - Cap: Ok, tenho o controle.
23:17:13 - F/O: V-1.
23:17:13 - PNF: V-1.
Nesse exato instante, o Boeing atinge a V-1 (Vee-One), ponto a partir do qual a decolagem deve prosseguir, mesmo em caso de perda de um ou mais motores. Até atingir a V-1, uma aeronave tem condições de parar com segurança na pista, caso surja alguma pane instantânea. Ao atingir e depois de ultrapassar a V-1, a aeronave tem de prosseguir na decolagem, mesmo que sofra uma pane, pois já não tem mais condições de abortar a decolagem com segurança na pista. Por isso mesmo a V-1 também é conhecida como "Point of No Return". A V-1 é calculada antes de cada decolagem, e sofre influência de fatores como peso, balanceamento, configuração de flaps e slats, temperatura externa, etc.
Menos de três segundos depois de ultrapassada a V-1, o comandante do Boeing da Singapore vê, em meio à forte chuva que desaba sobre Taipei, uma visão tão inesperada quanto assustadora.
As fortes luzes de decolagem iluminam algo à frente do 747. Havia algo bem à frente do Boeing, ao invés de uma pista aberta e desimpedida: barreiras de concreto, máquinas retro-escavadeiras e outros equipamentos de construção.
Sem saber, o 747 da Singapore havia alinhado na pista 05 Direita e não esquerda. Desde 31 de agosto de 2000, circulava o NOTAM A0606 (NOTice to Air Men), um comunicado amplamente divulgado e de circulação irrestrita para aeronautas, que informava que essa pista encontraria-se fechada para obras entre 13 de setembro e 22 de Novembro. Apesar de ter sido apresentado à tripulação da Singapore no briefing de operação feito ainda em solo, o NOTAM A0606 não é discutido em nenhum momento na cabine.
O fato é que esse descuido sairia muito caro. Voltamos agora ao cockpit do 747, que está à alguns segundos de atingir a V-R de 288 km/h, velocidade suficiente para que o manche seja puxado e a aeronave erga-se do solo. Mas tempo é algo que não resta mais para os infelizes ocupantes do Singapore 006. Numa fração de segundo, um Boeing 747-400 de quase 400 toneladas vai perder o confronto contra máquinas que estavam em seu caminho.
23h17:16 - Cap: (assustado) Merda, tem alguma coisa aí!
No segundo seguinte, o microfone de cabine capta o som do impacto inicial do 747 contra as máquinas. Com mais um segundo, um grito curto e alto é captado pelos microfones. Entre 23h17:18 e 23h17:22, uma série de sons captados mostram a sequência de impactos que o Boeing sofreu após colidir com as máquinas.
Nesse exato instante, a fuselagem rompeu-se e a caixa-preta do 747 parou de gravar. Nos segundos seguintes, o portentoso jato despedaçou-se em várias partes, muitas das quais pegaram fogo imediatamente. A fuselagem partiu-se ao meio, e continuou desgovernada arrastando-se por mais de 700 metros até parar e ser envolta em chamas, originárias do rompimento dos tanques cheios do 747, que tem capacidade para 216.847 litros de JET A-1.
No meio da tempestade, agora rugia o fogo incontrolável, a princípio, do inferno provocado pelo impacto do 747 contra as máquinas. Os bombeiros não demoraram muito a chegar ao inferno, mas o desastre já estava consumado: dos 179 ocupantes, 20 tripulantes e 159 passageiros, 83 deles (sendo 4 tripulantes) perderam a vida nos segundos seguintes ao impacto ou, em alguns casos, em leitos de hospitais de Taipei, depois de lutar contra terríveis queimaduras e poli-traumatismos por semanas.
Os três pilotos sobreviveram ao desastre e ajudaram nas investigações, que foram iniciadas no dias seguinte à tragédia. A investigação oficial levou meses e chegou à conclusão que houve imperícia e negligência por parte dos pilotos da Singapore. O Ministério de Transportes de Cingapura (MOT, Singapore Ministry of Transport) questionou o resultado oficial da investigação, abrindo uma investigação própria em paralelo. Segundo o MOT, o acidente não teria ocorrido se a pista em obras tivesse sido visualmente interditada como, segundo afirma o MOT, é de praxe e segundo padrões oficiais. Seja como for, o fato é que o Singapore 006 entrou para a história da melhor empresa aérea do mundo justamente como o seu pior momento.
* Este relato foi extraído do extinto site Jetsite.
Fontes: acidentesdesastresaereos.blogspot.com / ASN / baaa-acro.com / Wikipedia