Ninguém coloca uma aeronave na pista de qualquer aeroporto sem plena certeza do destino e objetivo do voo. Muito menos quando o país inteiro está de olho, na expectativa de uma solução para a maior crise sanitária já vista.
A primeira notícia veiculada sobre o assunto no site do Ministério da Saúde, divulgada pelo Twitter, atesta a convicção. Na noite do dia 13 de janeiro, o órgão anunciou em suas redes oficiais: “O voo da empresa aérea Azul será antecipado e sairá do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), às 13h desta quinta-feira (14) com destino ao Recife (PE), onde partirá direto para a cidade indiana de Mumbai. As vacinas estão previstas para chegar ao Brasil no próximo sábado (16) pelo Aeroporto do Galeão (RJ)”.
O texto da assessoria do Governo Federal assegura, portanto, um destino certo para o voo e presume que a entrega das vacinas já está certa – o que, bem sabemos, não veio a se confirmar tão cedo. A informação do parágrafo seguinte da notícia, no entanto, afirma categoricamente que a compra foi realizada e faz parte um cronograma aparentemente assegurado de vacinação: “As doses foram produzidas pelo laboratório indiano Serum e compradas pelo Ministério da Saúde. A vacina da AstraZeneca/Oxford será distribuída aos estados em até cinco dias após o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para, assim, dar início à imunização em todo o país, de forma simultânea e gratuita”.
Essa foi a informação básica veiculada no espaço oficial do Ministério da Saúde, da Agência Brasil e demais canais de informação estatal do Governo Federal sobre a transação. Para não deixar dúvidas, o final do texto reforça: “O sucesso da aquisição das doses junto à matriz britânica e à produtora indiana da vacina demonstra o excelente momento das relações Brasil-Reino Unido e Brasil-Índia e a solidez dos relacionamentos estratégicos que mantemos com esses dois países”.
Uma semana depois, notou-se que exatamente esse último ponto era um impeditivo para a plena aquisição das vacinas em solo asiático. Diversas fontes da saúde (várias ouvidas pela jornalista Renata Lo Prete no Podcast O Assunto) contestaram exatamente aquilo que a nota oficial dá como certo e factual — o “excelente momento” da relação entre os três países. É onde o texto da assessoria desliza para o ramo dos panfletos ideológicos, por assim dizer.
Retornemos ao episódio. No dia 14 de janeiro, as informações oficiais dão prosseguimento ao périplo da aeronave – detalhes ‘logísticos’ habituais dignos de atenção, dada a particularidade da carga que o avião estaria indo buscar. Em momento algum a comunicação oficial menciona a hipótese da compra não ser entregue ou de não haver pleno acordo entre as partes na operação internacional.
No início da tarde daquele dia, as publicações do Ministério da Saúde reforçam: “o avião da empresa aérea Azul decolou do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), para buscar na Índia dois milhões de doses da vacina contra a Covid-19 da AstraZeneca/Oxford. O imunizante foi adquirido pela pasta junto ao laboratório indiano Serum Institute para garantir o início da vacinação dos brasileiros de forma simultânea e gratuita”.
O texto estabelece como dado factual a compra já realizada pelo governo brasileiro. Restaria alguma dúvida tão somente sobre a data exata de retorno da aeronave (e não da entrega da mercadoria!) em função de negociações com a empresa aérea Azul e não com o governo do país asiático: “A data de retorno do avião ao Brasil, com a carga de vacinas estimada em 15 toneladas, ainda está sendo avaliada de acordo com o andamento dos trâmites da operação de logística feita pelo Governo Federal em parceria com a Azul. O pouso está previsto para ocorrer no Aeroporto Internacional do Galeão (RJ).”
O realismo jornalístico começa a desmoronar, como ato falho, ao final do texto: “O Ministério das Relações Exteriores, por meio da Embaixada em Nova Delhi, está em contato constante com as autoridades indianas, em seguimento à carta do Presidente Jair Bolsonaro ao Primeiro-Ministro Narendra Modi, de 8 de janeiro, para assegurar que a chegada da aeronave seja autorizada e que a licença de exportação da carga seja concedida sem percalços.”
Tudo isso viria a ser desmentido a seguir pela simples realidade. O Brasil sequer constava na lista de países para quem a Índia exportaria vacinas, ao menos num primeiro momento. Como hoje se sabe, o avião não apenas atrasou — surgiu então a justificativa aparentemente técnica de “questão logística internacional”, replicada em espaços jornalísticos como explicação plausível para o atraso — como sequer decolou rumo à Índia, uma vez que a entrega da compra não estava certa e que eram inúmeros os problemas diplomáticos (escondidos pelo Governo e silenciados pelas notícias oficiais).
Após ampla repercussão do assunto ainda no dia 13 é que o texto oficial inclui ‘de forma escondida no texto’, como se diz, a necessidade de uma licença. Sendo que o avião já estava adesivado naquele momento e na pista em solo brasileiro.
Em outras palavras, significa que o site oficial do Governo Federal, chancelado pela assessoria do Ministério da Saúde, utilizado para consulta e apuração de inúmeros órgãos jornalísticos nacionais e internacionais num momento de pandemia, veiculou informação enganosa como se fosse certeira e verificada. A notícia atestou que a compra estava não apenas feita como na fase final de entrega, bastando o ajuste de ‘detalhes logísticos’.
No entanto, o Governo Federal sabia desde o início que não havia nada já resolvido com o referido laboratório asiático. Ainda assim, colocou o avião na pista, como isca, e tentou criar um cenário, dizendo ter feito aquilo que não fez — para depois sair como vítima, dizendo-se surpreso com os impasses. Sem falar que tudo isso (do avião a entrega de vacinas) envolve recursos públicos, cuja transparência está prevista em lei.
Artigo completo em Observatório da Imprensa
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