Passava pouco das 11h30 da noite de 6 de fevereiro de 1996 quando os motores Rolls-Royce RB211-535E4 do Boeing 757-200 da empresa turca Birgenair foram acionados. Os dois reatores encheram de som o até então sonolento terminal. Em mais de 8 dias, era a primeira vez que eles giravam. O jato havia passado mais de uma semana parado no aeroporto, desde que havia trazido um grupo de turistas alemães para o sol e as praias imaculadas de Puerto Plata, República Dominicana. Os pilotos tinham uma jornada longa pela frente: iriam cumprir o vôo Birgenair 301 unindo Puerto Plata-Gander-Berlin-Frankfurt. O serviço era oficialmente operado em nome da empresa dominicana Alas Nacionales, que no entanto não dispunha de aeronaves apropriadas para estas etapas e tinha, portanto, de sub-arrendar o jato.
Depois de preparativos absolutamente corriqueiros, o Boeing 757-225 matrícula TC-GEN foi considerado apto para realizar o vôo. A tripulação estava relaxada e bem disposta. Como seus passageiros alemães, os tri[ulantes turcos haviam passado os últimos dias descansando sob o sol caribenho. Doze horas depois, todos estariam desembarcando de volta rumo aos seus lares, bronzeados e revigorados para enfrentar o inclemente inverno europeu.
Naquela noite, o 757 seria o ultimo vôo a deixar o Gregorio Luperón International Airport (IATA: POP, ICAO: MDPP). O taxi foi curto. A aeronave logo pedia autorização para a torre local para decolar até Gander, Terra Nova, Canadá, onde o 757 faria uma escala de reabastecimento antes de seguir para Frankfurt, onde 73 dos 176 passageiros iriam desembarcar. Eles haviam comprado um pacote da agência Öger Tours, que era proprietária da Birgenair e havia cedido o equipamento para essa operação.
O Boeing taxiou normalmente para a pista 08, de 3.081m de comprimento, e pediu autorização para decolar, recebendo de imediato a confirmação da torre. Chovia quando o 757 alinhou na pista. A potência foi aplicada e os motores reagiram normalmente. O comandante soltou os freios e o 757 iniciou sua corrida. Hora de entrarmos em sua cabine de comando e acompanharmos os acontecimentos.
Cap: comandante do vôo 301.
F/O: primeiro-oficial
F/O-RDO: transmissão de rádio do primeiro-oficial
CTR: Controle de santo Domingo.
PNF - (Pilot Not Flying): piloto sentado na cabine, mas não envolvido diretamente na operação.
CAM: sons captados pelo microfone de cabine.
23h41:40 - F/O: Grato, torre, decolagem autorizada.
23h42:08 - CAM: som de motores acelerando ao máximo.
23h42:09 - CAP: EPR selecionado.
23h42:00 - F/O: EPR.
23h42:16 - F/O: potência selecionada.
23h42:18 - CAP: okay, checado.
23h42:23 - F/O: oitenta nós.
Ao passar pela velocidade de cheque de velocímetros (80 nós, aproximadamente150 km/h) o comandante notou que seu air speed indicator (ASI) não funcionava corretamente, embora o do primeiro oficial funcionasse sem problemas.
23h42:24 - CAP: checado.
23h42:26 - CAP: ah... Meu indicador de velocidade não está funcionando.
23h42:28 - F/O: sim.
23h42:32 - F/O: ok, senhor.
23h42:33 - CAP: você me diga as velocidades.
23h42:35 - F/O: V-1.
23h42:36 - F/O: Rotate!
23h42:43 - CAP: positive climb, trem em cima.
23h42:43 - F/O: positive climb.
23h42:44 - CAM: som da alavanca de comando do trem de pouso sendo acionada.
23h42:46 - F/O: trem de pouso em cima.
23h42:50 - F/O: LNAV?
23h42:51 - CAP: sim, por favor.
23h42:52 - F/O: LNAV.
23h42:59 - CAP: Ok.
23h43:00 - F/O: Ah, começou a operar.
23h43:02 - CAP: daria para desligar os limpadores de para-brisa?
23h43:03 - F/O: ok, limpadores de para-brisa desligados.
23h43:08 - CAP: potência de subida (climb thrust).
23h43:09 - F/O: potência de subida.
23h43:16 - F/O: okay, flap speed.
23h43:17 - CAP: flaps cinco.
23h43:24 - CAP: flaps um.
23h43:25 - F/O: flaps em um.
23h43:30 - CAP: trem travado e checado.
23h43:32 - F/O: travado e checado.
23h43:33 - CAP: flaps recolhidos.
23h43:34 - F/O: flaps recolhidos.
23h43:36 - CAP: after takeoff checklist.
23h43:38 - F/O: after takeoff checklist, trem de pouso recolhido e travado, flaps em cima e checados, altímetros depois, after takeoff completo.
23h43:47 - CAP: okay.
23h44:07 - CAP: Acionar piloto automático central.
23h44:08 - F/O: piloto automático central no comando.
23h44:10 - CAP: obrigado.
23h44:12 - CAP: uno zero uno três.
23h44:13 - F/O: uno zero uno três.
23h44:25 - CAP: alarme de rudder ratio, alarme de velocidade.
23h44:28 - CAP: tem alguma coisa errada aí, temos algum problema.
23h44:40 - CTR: Birgenair 301, voe diretona proa de Pokeg.
23h44:43 - F/O-RDO: proa direto para Pokeg.
Nesse momento, o Boeing 757 continuava subindo, e cruzava a marca de 4,700 pés (1.400 m) quando começou a soar o alarme de excesso de velocidade. O velocímetro do comandante indicava 350 nós e comandava a atuação do piloto automático, acionado pouco menos de 30 segundos antes. O piloto automático simplesmente entrou em operação, tratando de atuar de maneira a diminuir a velocidade que o velocímetro faltoso indicava, acima de 350 nós. Para tanto, ele aumentou o ângulo de subida da aeronave, ao mesmo tempo que reduzia automaticamente a potência dos motores. Era noite, o tempo estava ruim, não havia referências visuais externas. Os tripulantes não tinham como checar externamente a linha do horizonte, de modo a verificar a atitude da aeronave em relação ao horizonte. Dependiam apenas de instrumentos que davam indicações conflitantes.
O jato na prática voava a 220 nós, com o nariz subindo e a velocidade caindo. Em segundos, não teria mais condições aerodinâmicas para continuar voando. No entanto, os tripulantes estavam confusos, observando as indicações conflitantes dos instrumentos e tentando descobrir a causa dessas anomalisas, como o diálogo seguinte deixa claro:
23h44:44 - CAP: okay, tem alguma coisa errada aí, você está vendo?
23h44:46 - F/O: tem alguma coisa maluca aí, está mostrando 200 nós o meu velocímetro e diminuindo, comandante.
23h44:52 - CAP: então os dois velocímetros estão errados. O que podemos fazer?
23h44:54 - CAP: vamos checar os dois disjuntores.
23h44:55 - F/O: sim.
23h44:57 - CAP: o alternado está correto.
23h44:59 - F/O: alternado está correto.
23h45:04 - CAP: como se o avião ainda estivesse no solo ou algo parecido...
23h45:07 - CAP: dando indicações como assimetria nos elevadores ou coisas assim.
23h45:11 - CAP: não acredito nessa indicação.
23h45:23 - PNF: vamos religar os disjuntores?
23h45:24 - CAP: sim, religue.
23h45:25 - PNF: para entendermos a razão?
23h45:27 - CAP: sim.
23h45:28 - PNF: okay... Voltaram... Não faz sentido.
23h45:39 - CAP: diminua a velocidade, você vai ver.
23h45:39 - CAM: (alarme de excesso de velocidade deixa de soar)
23h45:40 - F/O: então, agora temos menos de 350 nós.
23h45:47 - CAP: vamos fazer então assim.
Quando o velocímetro do co-piloto, que funcionava normalmente, passou pela marca de 200 nós e decrescendo, os dois pilotos ficaram completamente confusos. Afinal, segundos antes o alarme de excesso de velocidade havia soado. A conclusão dos pilotos foi de que os dois velocímetros estavam funcionando de forma errada, quando na prática apenas o do comandante é que tinha problemas. Os motores foram reduzidos. O 757 na verdade, agora voava a menos de 200 nós. Os pilotos, confusos, acreditavam que a aeronave desenvolvia mais do velocidade suficiente para voar, até mesmo ultrapassando a máxima velocidade operacional (VNE) quando, na verdade, o 757 encontrava-se já à beira de estolar, devido à baixa velocidade aerodinâmica. Isso ficaria claro nos segundos seguintes.
23h45:50 - CAM: som de quatro alertas sonoros.
23h45:52 - CAM: som do início da ativação do stick-shaker, que permaneceria ativado até o fim da gravação.
23h45:56 - CAM: som de quatro alertas sonoros.
Os instrumentos agora dão claros sinais de que a aeronave está estolando, o que deixa a tripulação ainda mais confusa e já desesperada. No Segundo seguinte, o jato efetivamente estola. Sua asa direita perde sustentação, o nariz aponta para o oceano, o Boeing inicia um mergulho.
23h45:56 - CAP: ah, ***.
23h45:57 - F/O: ***... Comandante.
23h46:00 - PNF: a atitude...
23h46:05 - CAP: ***.
23h46:07 - F/O: nariz para baixo!
23h46:19 - F/O: ***.
23h46:22 - PNF: mas... Agora... Que diabos...
23h46:23 - F/O: potência!
23h46:25 - CAP: disconectar o piloto automático. Ele está disconectado?
23h46:27 - F/O: está!
23h46:39 - CAP: como, não estamos subindo? O que eu posso fazer?
23h46:43 - F/O: nivele, a altitude está okay, estou selecionando o altitude hold, comandante.
23h46:47 - CAP: selecione, selecione!
23h46:48 - F/O: altitude hold.
23h46:51 - F/O: okay, cinco mil pés.
23h46:52 - CAP: manetes de potência, dê potência, dê potência, dê potência, dê potência!
O comandante manda aplicar potência manualmente. No entanto, os motores levam alguns segundos para reagir e o jato continuava despencando rumo ao Oceano Atlântico, que agora encontrava-se apenas algumas centenas de metros abaixo da aeronave. Faltavam poucos segundos para o trágico desfecho do Birgenair 301.
23h46:54 - F/O: retardar.
23h46:54 - CAP: dê potência, não retarde, não retarde, não retarde, não retarde!
23h46:56 - F/O: okay, dando potência, dando potência!
23h46:57 - CAP: não retarde, por favor, não retarde!
23h46:59 - F/O: manete aberta, comandante, manete aberta!
23h47:01 - F/O: ***!
23h47:02 - PNF: comandante, puxe, levante o nariz!
23h47:03 - CAP: o que está acontecendo!?
23h47:05 - F/O: oh, o que está acontecendo!?
23h47:09 - PNF: ***!
23h47:09 - CAM: (GPWS) Pull Up! Too Low! Too Low! Pull Up.
23h47:13 - F/O: vamos tentar fazer assim.
23h47:14 - PNF: ah, meu Deus.
23h47:17 - Fim da gravação.
O 757 bateu no mar com enorme violência, desintegrando-se instantaneamente e matando todos os seus ocupantes, 13 tripulantes e 176 passageiros numa fração de segundo. Nos dias seguintes, as Guardas costeiras da Marinha dos Estados Unidos e da República Dominicana engendraram enormes esforços para recuperar os destroços do jato, em águas profundas e infestadas de tubarões. Embora boa parte da estrutura do jato tivesse sido recuperada, a peça-chave para elucidar a tragédia, o tubo de pitot que alimentava os instrumentos do comandante, jamais foi encontrada.
Investigadores descobriram que, nos dias anteriores ao acidente, o 757 permaneceu estacionado com o tubo pitot descoberto, isto é, sem proteção alguma. Embora não possoa ser comprovada, a tese mais proveavel é que insetos, provavelmente vespas da espécie Sceliphron caementarium, comuns na ilha, teriam adentrado pela abertura do pitot, tratando de construir um ninho na parte interna do tubo e entupindo o mesmo. Sem deixar qualquer sinal externo aparente, essa é uma possibilidade concreta e que explicaria o mau funcionamento do sistema e as falsas indicações ao velocímetro do comandante. Seja o que quer que tenha causado o entupimento do pitot, o fato é que a Birgenair não teve o devido cuidado de proteger a sensível entrada estática. Um pequeno deslize, um detalhe que custou 189 vidas inocentes naquela trágica noite na República Dominicana.
Memorial às vítimas da tragédia, em Puerto Plata |
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