Combustíveis sustentáveis podem diminuir até 80% da pegada ecológica na aviação. Mas abastecem apenas 2% dos voos. Diante da emergência para diminuir os impactos ambientais, o que fazer para melhorar esse cenário?
Uma equipe de estudantes da AeroDelft monta o protótipo Phoenix, a primeira aeronave de célula de combustível de hidrogênio líquido do mundo, em um hangar (Foto: Davide Monteleone) |
A Organização Internacional da Aviação Civil (Icao), uma das agências das Nações Unidas, estima que o setor aéreo seja responsável por 2,5% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE), o equivalente a mais de 900 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2). O fator principal para o impacto ecológico é o uso de querosene de aviação, produto que é derivado do petróleo.
A Icao, em conjunto com as empresas aéreas, estudam soluções para diminuir a pegada de carbono das viagens. Em 2021, a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) delimitou um compromisso para as 290 companhias aéreas de 120 países que fazem parte da associação pensando em reduzir gradualmente a emissão líquida de CO2 da aviação comercial até 2050, quando os voos deverão ser neutros em carbono.
Para isso, um dos caminhos mais promissores é o uso de combustíveis sustentáveis, os chamados SAF (Sustainable Aviation Fuel, na sigla em inglês). De acordo com Laís Forti Thomaz, pesquisadora da Rede Brasileira de Bioquerosene e Hidrocarbonetos Renováveis para Aviação (RBQAV), os SAF têm potencial para diminuir em até 80% as emissões de GEE dos aviões.
Entretanto, apenas 2% dos voos comerciais utilizam combustíveis sustentáveis atualmente. De acordo com dados da Icao e da Iata, dos mais de 22,2 milhões de voos anuais (total de 2021), pouco mais de 400 mil são abastecidos com SAF.
Apesar de pouco, a pesquisadora esclarece que não é uma quantidade insignificante. “Combustíveis para aviação são muito delicados e a tecnologia dos SAF é relativamente nova. Entraves como escala de produção e custo ainda limitam o setor”, relata.
Mesmo assim, para Thomaz ainda há um longo caminho de investimentos necessários para alcançar as metas internacionais para viagens sustentáveis até 2050.
O que são combustíveis sustentáveis de aviação
A principal diferença entre os SAF e os combustíveis convencionais é a matéria-prima. Enquanto o querosene é um derivado do petróleo, assim como a gasolina, os SAF podem ser produzidos a partir de biomassa, como plantas, resíduos florestais, óleos vegetais e açúcares.
Segundo o Grupo de Ação do Transporte Aéreo (ATAG, na sigla em inglês), os SAF tem as mesmas qualidades e características químicas do combustível de aviação convencional, porém contém menos impurezas e apresenta uma densidade energética mais alta.
No geral, o querosene convencional é composto por aproximadamente 70% de carbono, 25% de lubrificantes ou aromáticos e 5% de partículas contaminantes, como óxidos de enxofre e óxidos de nitrogênio. Já os combustíveis sustentáveis não contam com esses elementos em sua composição.
Isso é o que explica Alejandro Ríos Galvan, diretor do Consórcio de Pesquisa em Bioenergia Sustentável da Universidade Khalifa (Abu Dhabi). “Nos convencionais, os aromáticos são necessários para o bom funcionamento do motor e, em relação às partículas contaminantes, elas só não são retiradas por conta do custo dessa operação”, diz.
“Já os SAF são compostos praticamente de 100% carbono o que resulta em mais potência e eficiência para as aeronaves”, comenta Galvan. Segundo ele, estudos determinaram que os sustentáveis têm até 4% mais energia do que os convencionais, o que significa mais tempo de voo com a mesma quantidade de combustível.
Os limites dos combustíveis sustentáveis
Apesar de carregar as mesmas qualidades químicas e funcionar tão bem – ou até melhor – do que o querosene convencional de aviação, nenhum voo comercial usa 100% de combustível sustentável.
Isso porque, segundo explica Galvan, os SAF devem ser adequados para uma enorme gama de motores de aeronaves, alguns que datam de mais de 30 anos atrás. “Certos componentes químicos, como o enxofre, são necessários em motores mais antigos para que funcionem sem que haja falhas ou vazamentos. Em aviões mais novos isso já não é um problema.”
Portanto, para que o SAF possa ser usado comercialmente em toda a frota aérea, ele deve ser misturado com combustível de aviação convencional. Atualmente, a Sociedade Americana de Testes e Materiais (ASTM na sigla em inglês), permite misturas com que variam de 10% até 50% de combustíveis sustentáveis, mas a porcentagem depende do tipo de SAF utilizado.
De acordo com a Icao, existem sete diferentes processos tecnológicos aprovados internacionalmente pelos quais o SAF pode ser produzido atualmente. O mais utilizado é o processo de Fischer-Tropsch (FT-SPK), em que o biodiesel é produzido a partir de biomassa, como resíduos florestais, gramíneas e resíduos sólidos urbanos (restos de alimentos e podas). Para esse processo, a ASTM permite misturas de até 50% com combustível convencional de aviação.
Segundo Laís Thomaz, as companhias aéreas estão investindo em aeronaves que possam utilizar 100% de SAF durante suas operações. Por exemplo, em julho de 2022, a Embraer, empresa brasileira de jatos comerciais, realizou um teste em parceria com a companhia americana Pratt & Whitney, que atua no ramo de motores de aviões. A aeronave testada realizou um voo bem sucedido de 70 minutos abastecida 100% com SAF.
Um homem reabastece um avião usado por biólogos para procurar lobos pelo Projeto Lobo do Parque Nacional de Yellowstone (Foto: David Guttenfelder) |
O que falta para aumentar o uso de combustíveis sustentáveis na aviação?
Para que a meta de emissão zero proposta pela Iata seja alcançada até 2050, a associação prevê que serão necessários 449 bilhões de litros de combustíveis sustentáveis para suprir a demanda total. No entanto, é aqui que os desafios começam.
Também segundo a associação, a demanda de combustível atual do setor gira em torno de 390 bilhões de litros. Porém, a capacidade de produção de SAF mundial é de apenas 14 milhões de litros, ou seja, 0,003% da demanda total.
“As tecnologias de produção de SAF ainda estão engatinhando. Atualmente, elas não têm maturidade para ganhar a escala comercial necessária para atender a demanda do mercado”, afirma Thomaz.
Além da capacidade de produção, o desafio para aumentar o uso de SAF é a logística. Segundo explica Thomaz, a sustentabilidade também deve ser levada em conta no transporte desse combustível, então, considerar onde ele está sendo produzido e onde vai ser consumido é importante.
“Se a produção ocorre na Europa, por exemplo, e o combustível vai ser utilizado em um voo que sai do Brasil, as emissões desse transporte devem ser levadas em conta”, diz a pesquisadora.
Segundo ela, as propostas para lidar com esse problemas é aumentar a capacidade e geografia da produção. Atualmente, segundo a Icao, apenas 57 aeroportos no mundo têm abastecimento e distribuição contínua de SAF. A grande maioria está nos Estados Unidos e Europa, um no Japão e um na Austrália. Nenhum aeroporto da América Latina aparece no levantamento da organização.
“A resolução desses desafios não será feita apenas pelo setor de aviação. É necessário muito investimento e vontade política para incentivar a produção, fomentar pesquisas e desenvolver projetos na área”, ressalta Thomaz.
A pesquisadora menciona, como exemplo, o Programa Nacional de Bioquerosene estabelecido em 2021 pelo governo brasileiro. O projeto prevê o estímulo à pesquisa, à produção, à comercialização e ao uso do bioquerosene por meio de incentivos fiscais e destinação de recursos federais.
Por fim, o cenário atual prova que viagens mais sustentáveis já são uma possibilidade. Mas ainda há muito o que fazer para que a aviação deixe de ser um problema para o aquecimento global.
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