Em 1970, Marília Guimarães, ao lado dos filhos, embarcou em saga caótica com destino a Cuba.
Entre 1964 e 1985, o período da Ditadura Militar, consumado através de um golpe de Estado, ficou marcado pela aplicação dos Atos Institucionais do marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Estes colocavam em prática a perseguição política, todos os tipos de censura, supressão de direitos constitucionais, a ausência de democracia, fim das eleições diretas e repressão total a todos que fossem contrários ao regime militar.
Foi nesse cenário conturbado que Marília Guimarães, professora de Letras com, então, 22 anos, decidiu não se calar.
Caçada
A guerrilheira – ou terrorista, como a ditadura preferia chamar – integrou o movimento radical de extrema-esquerda chamado Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) junto de seu marido, Fausto Machado.
Na época, a mulher era dona da escola Coelho Neto, localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, perto da comunidade Acari. O colégio tinha cerca de 800 estudantes, em sua maioria bolsistas da comunidade, e passou a ser usado como ponto de encontro para reuniões da VPR. Lá, Marília também fabricou em mimeógrafos vários panfletos que criticavam o regime vigente.
Marília na época do sequestro (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação) |
A sua vida começou a desmoronar quando um dos membros do movimento acabou sendo preso pelos militares durante as férias escolares de 1969. Na casa do homem, eles encontraram o mimeógrafo e diversos materiais de “rebeldia”. Demoraram muito tempo para ligar o equipamento a ela. Seu marido foi levado pelos militares, enquanto ela teve que enfrentar um interrogatório hostil e agressivo de 72 horas.
A professora precisou ir viver com o os dois filhos na clandestinidade, dormindo em um local diferente a cada noite para não ser capturada. “Eu só pensava em Che Guevara. Pedia forças a ele para não fraquejar, para não deixar que os militares vissem a verdade nos meus olhos”, lembra Marília sobre a prisão que sofreu.
A partir do momento em que os militares tiveram certeza de seu envolvimento no movimento, a mulher passou a ser perseguida. Junto de seus dois filhos, Eduardo e Marcelo, então com 3 e 2 anos, Marília viveu escondida de todos por mais de 1 ano, pois qualquer par de olhos poderia significar uma ameaça expressiva para a sua vida.
A família dormia cada noite em um lugar diferente para não correr o risco de ser flagrada, movendo-se por becos e vielas do subúrbio da cidade apenas durante a madrugada. No meio daquele ano, com mais 6 membros do movimento, ela decidiu que isso precisava acabar.
As bases de um plano
Determinados em tirar Marília do Brasil a todo custo, uma vez que o país já não era mais seguro para ela, Cláudio Galeno Linhares, o coordenador da Vanguarda Armada Revolucionária de Palmares, no Rio Grande do Sul, sugeriu que os membros do movimento arquitetassem um plano para sequestrar um voo e desviá-lo para Cuba.
Nas duas semanas que antecederam o sequestro o grupo de guerrilheiros que, além de Marília, incluía Cláudio Galeno de Magalhães Linhares (primeiro marido de Dilma Rousseff), James Allen da Luz, líder da ação, Athos Magno Costa e Silva, Luiz Alberto da Silva e Isolde Sommer.
Naquela época, a prática de sequestro de aviões foi uma ferramenta contra a ditadura, pois incitava o governo a libertar pessoas presas e torturadas, dar fuga aos perseguidos e também chamar atenção do mundo para o que acontecia no país.
O plano era perigoso, mas nada superava o que os militares poderiam fazer a ela e aos meninos se os capturassem. Além disso, o plano forçaria o governo a dar um parecer sobre Fausto Machado e os outros membros do movimento que estavam desaparecidos, tendo que arcar com a responsabilidade da integridade física deles.
Marília e os filhos viajaram de carro para Minas Gerais, depois pegaram um ônibus para Porto Alegre, onde ela se encontrou com cinco membros do movimento VPR, incluindo James Allen da Luz (integrante da Ala Vermelha, vertente radical da organização), que comandaria o sequestro.
Voo 114 — Cruzeiro do Sul
Depois de meses de planejamento, o grupo viajou de carro para Montevidéu, no Uruguai. Foi em 1º de janeiro de 1970 que Marília entrou no Aeroporto Internacional de Carrasco carregando muitos brinquedos, fraldas, os 2 filhos e mais 6 revólveres, que ela distribuiu entre os membros do grupo.
Às 19h32, exatamente, todos embarcaram no voo 114 da companhia aérea Cruzeiro do Sul, na aeronave Caravelle SE210, prefixo PP-PDZ, com destino ao Rio de Janeiro e com escalas em Porto Alegre e São Paulo. Assim que o avião decolou com seus 21 passageiros e 7 tripulantes, James Allen se levantou com a arma em punho e anunciou o sequestro.
Ele fez o piloto desviar para Buenos Aires para reabastecer. Àquela altura, a notícia do sequestro já corria o Brasil todo por ordem dos guerrilheiros. Fotógrafos capturavam os sequestradores e transmitiam por telex para o mundo inteiro, enquanto uma multidão de curiosos se amontoava do lado de fora do aeroporto.
Isolde Sommer é forografada dentro do Caravelle durante escala em Lima (Foto: Divulgação) |
O avião voou para Antofagasta, no Chile, para mais um reabastecimento antes de ir para Lima, no Peru, onde permaneceu fechado com todos a bordo por mais de 24 horas devido a um defeito na bateria do aparelho que causou uma pane elétrica no motor direito. Jornalistas cercaram o avião junto de soldados armados, e Allen deu entrevista pela janela da aeronave.
O general Velasco Alvarado, então presidente do Peru, ordenou aos soldados peruanos que negociassem à exaustão uma rendição. Foi oferecido a Marília e às crianças asilo político em troca dos reféns. “Não aceitei, lógico. Eles invadiriam o avião com meus companheiros lá dentro”, declarou ela.
Na madrugada de 3 de janeiro, sem chegar a um acordo, e com a bateria do avião trocada, eles decolaram para o Panamá.
Repercussão histórica
O segundo oficial de voo Hélio Borges foi interceptado por oficiais brasileiros na Cidade do Panamá quando desceu do Caravelle para comprar combustível. Ele foi coagido pelos militares a voltar com uma arma em punho e atirar em todo mundo, mas se recusou. Também lhe foi oferecido a possibilidade de colocar gás lacrimogêneo na tubulação de ar do avião ou dar comida envenenada aos sequestradores. Ele também se negou a isso.
Cinco horas depois, o Caravelle decolou para Havana, mas pousou 2 horas depois no Aeroporto Internacional José Martí, em Cuba, a 18 km de seu destino, por causa de uma falta de lubrificação nas turbinas.
O Caravelle SE210, prefixo PP-PDZ, da Cruzeiro do Sul envolvido no sequestro |
Com o sequestro terminado, a recepção cubana foi fria, visto que o país não tinha relações diplomáticas com o Brasil. Depois de serem interrogados, fotografados e obrigados a tirar suas impressões digitais, os tripulantes e passageiros foram hospedados em um hotel, enquanto os guerrilheiros foram embora. O Caravelle só voltou para o Brasil depois que pagou milhares de dólares em taxas aeroportuárias, já que não tinha autorização para pousar em Cuba.
“Eu cheguei em Havana quase delirando. Passei a maior parte do tempo sem comer nem beber praticamente nada, por medo de envenenamento”, revelou Marília. Ela ainda não sabia que Carlos Lamarca, um dos chefes da VPR, tinha mandado uma carta para Fidel Castro pedindo que o governo prestasse assistência a ela.
Família retornou ao Brasil apenas em 1980 após a promulgação da Lei da Anistia |
Marília Guimarães viveu em Cuba com os filhos por 10 anos, acabou se formando em Medicina e só voltou ao Brasil em 1980, depois de aprovada a Lei de Anistia. Ela enriqueceu como empresária no ramo de Informática e retratou toda a sua saga em seu livro Nesta terra, neste instante. Até hoje Marília tem os retratos de Che Guevara e Fidel Castro pendurados na parede de sua casa.
Com BBC, Megacurioso e Aventuras na História
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