quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Será que algum dia aviões serão movidos a ar? Companhias aéreas estão apostando nisso

Novas tecnologias, entre elas um combustível extraído da própria atmosfera, podem transformar as viagens aéreas em algo mais sustentável; porém, ainda há muitos desafios e não se sabe quando isso poderia ser possível.


Até a metade deste século, a maioria dos carros e dos ônibus devem ser movidos a combustíveis derivados de energia renovável, enquanto bicicletas, trens elétricos e nossos próprios pés vão continuar a ter pouco impacto no clima. E se a aviação global alcançar a meta traçada no ano passado, então seu voo em 2050 de Nova York para Hong Kong lançará “zero” emissões líquidas de dióxido de carbono na atmosfera.

Não há garantias de que o setor vá conseguir isso, mas as tecnologias sendo desenvolvidas com este objetivo mudarão a aviação, independentemente de a meta ser alcançada ou não.

Nos anos que antecederam a pandemia, a aviação emitiu aproximadamente um bilhão de toneladas métricas de dióxido de carbono por ano, quase o mesmo que todo o continente sul-americano em 2021. E os números estão voltando rapidamente àqueles níveis conforme os passageiros retomam as viagens. Contudo, as principais companhias aéreas, inclusive seis das maiores dos Estados Unidos, comprometeram-se a zerar as emissões líquidas de carbono até 2050, se não antes. Em uma reunião realizada em outubro da Organização Internacional da Aviação Civil (OACI), agência das Nações Unidas dedicada à aviação civil, delegados de 184 países adotaram o objetivo de zerar as emissões líquidas de carbono até 2050 como um “objetivo global ambicioso de longo prazo”.

“Ambicioso” é a palavra-chave. A aviação é vista pelos especialistas como um setor de transição difícil no processo de zerar as emissões líquidas de carbono, pois atualmente não existem tecnologias simples e prontas para o mercado que possam reduzir de forma drástica suas emissões de carbono. E o qualificador “líquidas” que acompanha o objetivo significa que as companhias aéreas podem responder por qualquer CO2 que continuem a emitir, seja recorrendo às tradicionais compensações de carbono, uma prática bastante criticada, ou por meio da captura de dióxido de carbono diretamente da atmosfera.

Aviação emite gases de efeito estufa ao queimar combustível - o principal utilizado é
o querosene, derivado do petróleo (Foto: Toby Melville/Reuters)
Os cientistas também descobriram que as trilhas de condensação – aquelas nuvens ralas e de curta duração que às vezes aparecem como rastro de um avião – afetam a temperatura do planeta, talvez ainda mais do que o dióxido de carbono liberado pelas aeronaves. Tudo isso contribui para um cenário complexo, principalmente levando em consideração que a demanda global da aviação deverá duplicar nos próximos 20 anos.

Mas novas tecnologias estão em desenvolvimento, como as aeronaves movidas a hidrogênio, os aviões totalmente elétricos e o combustível de aviação sintético feito de dióxido de carbono extraído da atmosfera. Várias companhias aéreas já começaram a adicionar uma pequena quantidade de biocombustível de combustão mais limpa – conhecido no setor como combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) – ao seu abastecimento habitual, uma tendência que deve se intensificar. Muitas empresas estão se adiantando às regulamentações governamentais, investindo em melhorias na eficiência para diminuir as emissões e, em alguns casos, fazendo grandes apostas em inovações que são tiros no escuro, mas poderiam reduzir drasticamente as emissões no futuro.

“Temos que começar agora”, disse Steven Barrett, professor de aeronáutica e astronáutica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e diretor do Laboratório de Aviação e Meio Ambiente da instituição. “Há uma inércia tão grande no sistema que é preciso de verdade começar por conta própria décadas antes.”

Mas a mudança não está acontecendo tão depressa quanto poderia, disse Pedro Piris-Cabezas, diretor sênior de transporte global e economista-chefe do Fundo de Defesa Ambiental (EDF, na sigla em inglês), um grupo ambientalista sem fins lucrativos com sede em Nova York.

Ele observou que os delegados daquela reunião de outubro da OACI ainda não tinham adotado um plano concreto para alcançar seu objetivo em 2050. “Precisamos que essas metas de curto e médio prazo comecem a se tornar mais rigorosas”, disse Piris-Cabezas.

Rumo aos combustíveis alternativos


As companhias aéreas já estão investindo em melhorias que podem proporcionar vitórias relativamente rápidas: deixar de usar as aeronaves mais antigas, encontrar rotas mais eficientes, fazer com que seus aviões taxiem com apenas um motor ligado. Mas essas medidas têm efeitos limitados.

Outra inovação de curto prazo é o combustível sustentável de aviação, um tipo de biocombustível que costuma ser feito a partir de óleo de cozinha usado e biomassa semelhante. Durante seu ciclo de vida, o SAF produz menos dióxido de carbono que o combustível de aviação convencional, com o qual ele pode ser misturado. No entanto, a produção de SAF continua limitada e tem custo elevado, por isso a adesão a ele pelas companhias aéreas tem sido lenta, com elas misturando pequenas quantidades dele ao seu estoque de combustível convencional em locais específicos.

Contudo, o entusiasmo dentro do setor é grande. “Nós amamos o SAF como uma indústria”, disse Sara Bogdan, chefe de sustentabilidade e governança ambiental e social da JetBlue Airways. Ela disse que o SAF é adicionado ao combustível convencional no abastecimento das aeronaves da JetBlue que partem dos aeroportos internacionais de São Francisco e Los Angeles. A escolha dos locais não é aleatória: um dos poucos grandes fornecedores de SAF tem uma instalação de produção na Califórnia, além disso, o estado aprovou uma lei para combustíveis com baixa emissão de carbono que incentiva o SAF e outras alternativas.

Setor busca alternativas para se descarbonizar (Foto: Daniel Teixeira/Estadão)
A United Airlines também concentrou o uso do SAF em alguns de seus voos na Califórnia. Lauren Riley, diretora de sustentabilidade da empresa, disse que o SAF era misturado ao combustível de todos os aviões da United que partiam do Aeroporto Internacional de Los Angeles, desde 2016, e do Aeroporto de Schiphol, em Amsterdam, desde o ano passado. A United também reuniu um grupo de empresas – entre elas a Deloitte, a Nike e a Siemens – que pagam para ajudar a companhia aérea a cobrir os custos adicionais com o SAF em suas viagens de negócios.

“Comprar combustível sustentável de aviação por conta própria seria de duas a quatro vezes mais caro do que o custo do combustível de aviação convencional”, disse Lauren. “Não podemos arcar com isso sozinhos.”

Lauren acrescentou que, em qualquer ano, o SAF representa menos de 0,1% do fornecimento total de combustível da United – um valor que vale para todo o setor. A United e a JetBlue estão entre as mais de vinte companhias aéreas que participam de uma aliança, liderada pelo Fórum Econômico Mundial, que se comprometeu a tornar o SAF responsável por 10% do abastecimento de combustível da aviação até 2030.

Mas Piris-Cabezas advertiu que é fundamental se proteger contra o risco de, por exemplo, o óleo de cozinha supostamente usado na produção do SAF não ser de fato óleo de palma fresco que nunca entrou numa cozinha. Em uma situação como essa, afirmou, o SAF feito a partir de biomassa poderia, na verdade, ter um impacto negativo, promovendo o desmatamento de florestas para plantações de monoculturas.

“É extremamente importante garantir que tenhamos um sistema robusto, com rastreabilidade e que incentive apenas combustíveis de confiança que não terão esses impactos negativos nas florestas”, disse Piris-Cabezas, que classificou o SAF em circulação hoje como “não transparente” e observou que os consumidores poderiam pressionar as companhias aéreas por uma maior transparência.

Combustível da atmosfera


Transparência à parte, há um empecilho importante para a produção de grandes volumes de SAF, disse Andreas Schäfer, diretor do Laboratório de Sistemas de Transporte Aéreo da Universidade College London: não temos óleo de cozinha usado o suficiente ou resíduos de biomassa semelhantes para produzir algo próximo da quantidade de combustível que a aviação requer. (Schäfer também disse que combustível sustentável de aviação não é um nome adequado: “Deveria ser combustível mais sustentável de aviação”, afirmou, porque a alternativa ainda emite dióxido de carbono.)

Os cientistas estão pesquisando fontes alternativas de carbono para o SAF, incluindo algas, restos de gramas cortadas e resíduos alimentares. Mas talvez a possível fonte mais intrigante seja o ar que respiramos, que, naturalmente, está repleto de dióxido de carbono.

Os pesquisadores já desenvolveram a tecnologia para este processo, conhecida como “power to liquid” (energia para líquidos, em tradução livre). Ela usa ventiladores enormes para remover o dióxido de carbono da atmosfera e, em seguida, extrair o carbono da molécula de CO2 antes de combiná-lo com o hidrogênio produzido a partir de eletrólise da água, que acontece usando energia renovável. O resultado é um hidrocarboneto que pode ser usado como combustível para um avião.

“É promissor”, disse Schäfer, “porque houve um desenvolvimento bastante rápido nesta área. O principal desafio é o custo elevado”.

Esse custo deve-se principalmente à enorme quantidade de energia limpa necessária para produzir o combustível em volumes consideráveis. Porém, o custo da eletricidade de fonte renovável está caindo tão depressa que, até 2035, as tecnologias que convertem eletricidade em combustível sintético com emissão neutra de carbono poderiam ser mais baratas de se produzir do que a maioria dos SAF feitos com biomassa.

Outra inovação tem estado no radar desde, pelo menos, a Guerra Fria: os aviões movidos a hidrogênio. Mas os desafios de engenharia nesse caso são consideráveis. Por ser um gás, o hidrogênio é volumoso demais para ser armazenado em quantidades adequadas a bordo de um avião, então precisa ser resfriado até -253 °C, a temperatura na qual o hidrogênio se condensa num líquido. Também seria necessário construir infraestruturas criogênicas para abastecimento e armazenamento nos aeroportos de todo o mundo.

Entretanto, a tecnologia existe: a NASA e a Agência Espacial Europeia a utilizam com sucesso há muito tempo, e os pesquisadores de empresas como a Airbus e a Rolls-Royce estão trabalhando para adaptar a tecnologia à aviação comercial.

“Com o hidrogênio, é possível realmente chegar ao ponto em que não há emissões de carbono”, disse Lahiru Ranasinghe, gestora sênior de sustentabilidade da easyJet, companhia aérea europeia de baixo custo que está investindo na tecnologia a base de hidrogênio.

Aeronaves movidas a eletricidade são outra opção com baixa emissão de carbono. Devido às limitações atuais de baterias para acionar seus motores, as aeronaves totalmente elétricas não têm força suficiente para voos de longa duração, mas poderiam oferecer uma solução para aviões menores voarem rotas mais curtas. Nesta área, a Noruega parece estar abrindo o caminho. De acordo com a Avinor, a operadora aeroportuária norueguesa, todas as aeronaves usadas em voos domésticos no país devem ser totalmente elétricas até 2040. A Wideroe, companhia aérea norueguesa com destaque na região, planeja ter sua primeira aeronave totalmente elétrica em serviço até 2026.

Um inimigo ralo e congelante do clima


O setor de aviação tem focado em cortar as emissões de carbono, mas muitos estudiosos dizem que há uma missão mais simples em termos de redução do impacto dos voos no clima. Descobriu-se que as trilhas de condensação têm um efeito enorme na temperatura do planeta.

“Sabemos há mais de 20 anos que, em um grau muito elevado, o aquecimento provocado pelas trilhas de condensação tem sido bastante significativo – e comparável ao causado pelo CO2″, disse Barrett, do MIT.

A ciência por trás disso não é simples, disse Barrett, porque o efeito do rastro depende da hora do dia em que ele é lançado na atmosfera. À noite, as trilhas de condensação conservam o calor irradiado pela superfície terrestre, levando a um aquecimento adicional. Mas durante o dia, os rastros também irradiam a energia do sol de volta para a atmosfera e podem, na verdade, causar um efeito de resfriamento. Entretanto, estudos mostram que o impacto global no geral é um aquecimento considerável – algo em torno de metade a três vezes o efeito das emissões de dióxido de carbono do setor de aviação.

Barrett está trabalhando em parceria com a Delta Air Lines para analisar como fazer pequenas mudanças nas rotas de voo poderia ajudar. Ele diz que há potencial para conquistas simples: os rastros se formam apenas em condições específicas (quando está frio e úmido) e em faixas limitadas de altitude. Isso significa que é relativamente fácil – e barato – para as companhias aéreas redirecionar seus aviões e evitá-los.

“Acabar com as trilhas de condensação é uma ação importante para mitigar o impacto da aviação no clima”, disse ele.

David Victor, codiretor da Deep Decarbonization Initiative (Iniciativa de Descarbonização Profunda) da Universidade da Califórnia em San Diego, fez coro sobre a importância de abordar os impactos do aquecimento provocado pelos rastros, assim como Schäfer, da Universidade College London.

Mas em relação às iniciativas do setor para cortar as emissões de carbono, Victor argumentou que, num mundo ideal, o mercado de compensação de carbono estaria fora de cogitação.

“O histórico de demonstrar virtudes é tão atroz”, disse Victor a respeito das tradicionais compensações de carbono. “Você tem essa enxurrada de compensações de lixo no mercado. Isso tem feito cair o preço como um todo, assim como a qualidade.”

Ele sugeriu que os viajantes preocupados com o tema poderiam usar uma calculadora on-line de pegada de carbono para ver como seus hábitos de voo se enquadram no impacto geral no clima. Mas frisou que as decisões individuais só vão fazer diferença nas margens; o sistema todo precisa de uma mudança radical, afirmou.

“Se fizermos tudo isso de uma forma que nos torne infelizes, então não é sustentável”, disse Victor. “Tem que ser algo que toda a sociedade vai fazer.”

Via Paige McClanahan - Tradução: Romina Cácia (Estadão)

Nenhum comentário: