terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Dia do Abate - Parte 4

Famílias dos jovens mortos no Morro dos Macacos tentam reconstruir a vida

Rita Fernandes está vazia por dentro. Maria da Costa carrega no peito um câncer alimentado por silêncio e dor. Suas vidas quebraram-se às 2h30m de 17 de outubro de 2009. Seus filhos e enteados - Marcelo da Costa Ferreira Gomes, Leonardo Fernandes Paulino, Francisco Hailton Vieira da Silva e Alcinei de Oliveira Justino - foram quatro vítimas inocentes da guerra no Morro dos Macacos. Não eram policiais ou bandidos. Morreram por estarem na Rua Petrocochino, uma das entradas da favela, no momento da invasão.

- Era aniversário do meu neto no dia seguinte. O Leo foi buscar os enfeites. O painel da festa (o tema era "Os Incríveis") foi metralhado. E ele perguntava: "Vó, e a minha festa"? O que podia falar? Ele viu o pai coberto por um pano. Estou morta, só não fui enterrada. Perdi 20 quilos. Perdi tudo. É uma tortura passar todos os dias por cima de onde meu filho morreu - desabafa Rita.

Leo havia saído com os irmãos Francisco Hailton e Francisco Halailton e o primo Marcelo no recém-comprado Peugeot 206 preto. Na volta para casa, encontraram o bonde do tráfico onde estariam os traficantes FB e Mica. Não tiveram tempo para erguer as mãos, sinal de paz. O carro, jamais periciado, ficou por 15 dias numa garagem até ser consertado e vendido.

Com 26 anos, experiente em departamento pessoal e técnico em informática, Leo viu que a violência não era algo virtual. Pai de um menino de 6 anos, ex-funcionário dos hospitais Amiu e São Victor e da Caixa Econômica Federal, ele era um homem dócil, agarrado à família e ao Botafogo, seu clube de coração. Amante do futebol, brilhou em campeonatos no Clube da Light, a pouco mais de um quilômetro do local onde morreu.

- Olho para o céu e pergunto se meu filho está me vendo... Quando quero beijá-lo, beijo meu neto - conta Rita. - Dizia a ele para matar a barata. Ele a pegava pelas patas e jogava pela janela. Não matava. Tinha pena. Esse era meu filho.

Vizinha de porta da prima Maria da Costa, Rita compartilha com a mãe de Marcelo o sofrimento e o tratamento psiquiátrico para síndrome do pânico e depressão. Maria tem dias em que mal consegue falar. Vítima de um câncer, retirou a mama. O que não sai da cabeça é a lembrança do dia em que o filho, vascaíno brincalhão, saiu para não mais voltar. A lata de leite condensado que ele usou para o último brigadeiro da vida ainda está em casa. A toalha com a qual a mãe limpou o rosto do filho morto ainda carrega o cheiro da cebola do cachorro-quente que ele amava. Procurada pelo EXTRA em quatro oportunidades, ela se derramava em lágrimas a ponto de não conseguir mais falar.

- Foram quarenta minutos entre sair vivo e ser morto. Ele dizia que queria morrer antes de mim. E foi... Outro dia, fui no INSS resolver a pensão, me fizeram exigências que eu olhei para a passarela e pensei em tirar a vida. Já tentei me enforcar - desespera-se Maria.

Além da morte do filho Marcelo, auxiliar de mecânico que investia seu dinheiro na ambição de ser enfermeiro, Maria da Rocha divide o sofrimento com o marido José Vieira do Nascimento, pai de Francisco Hailton e Francisco Halailton, o único sobrevivente do Peugeot, que carrega as marcas das violência física e emocional. Atingido por dois tiros de fuzil, o braço esquerdo está mais curto. De lá para cá, Halailton ouve com dificuldade. Assombrado pelo trauma, vive trocando de residência.

- É muito sofrimento - narra Maria.

Irmã de Alcinei Justino, de 22 anos, Marinéia Justino contou aos policiais da 20 DP que o irmão sofria de problemas mentais e epilepsia. Na Escola Municipal Rodrigo Melo Franco Andrade, no Andaraí, Alcinei tropeçava nos estudos. Vivia como ajudante de obras. Naquela noite, assustado com os tiros, tentou subir as escadas para a casa da irmã. Mas foi visto por bandidos e alvejado. Na contabilidade da Polícia Militar, Alcinei ainda consta como marginal morto.

- O que importa é a consciência da família - afirma Érica Justino, outra irmã de Alcinei.

Sem o bem mais precioso, os filhos, Maria e Rita buscam indenização do Estado para amparar pais e netos e, mais do que isso, poder comprar uma gaveta para guardarem os ossos dos rapazes.

- Não queremos largar os ossos dos nossos filhos em qualquer lugar. Uma gaveta custa R$ 3 mil ou 4 mil - clamam.

Fonte: Fernando Torres, Guilherme Amado e Guto Seabra (Extra) - Fotos: Gustavo Azeredo / Álbum de família / Reprodução / Gustavo Azeredo

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