O ministro francês de Transportes, Thierry Marianai, e o diretor do BEA, Jean-Paul Troadec, durante entrevista conjunta em 2 de fevereiro em Paris sobre o caso do 447 - Foto: AFP
Quando perguntei a outro investigador da BEA, Olivier Ferrante, se é difícil escrever relatórios sem apontar falhas, ele reconheceu que é uma questão de técnica. “Isso requer disciplina na redação de relatórios”, disse ele. “Por exemplo, não queremos usar a palavra 'culpa'. Preferimos 'erro', que tem conotações mais pró-ativas.”
Os investigadores de acidentes aéreos do NTSB afirmam que a abordagem dos americanos é muito diferente. Jim Hall, ex presidente do órgão me disse que os investigadores dos EUA na mesma posição não teriam problemas em reconhecer caso uma equipe de busca levasse muito tempo para agir ou se um avião estivesse voando com peças defeituosas. “Isso não seria um problema para o NTSB", disse ele.
“Se o conselho encontrasse uma peça que precisasse de recall, faria essa recomendação.” Hall explicou que a diferença em relação à França é em grande parte sistêmica: cada acidente deve envolver duas investigações paralelas, uma do BEA para reunir dados técnicos e outra do juiz, para considerar a culpabilidade. Mas, quando o inquérito judicial leva 22 meses para ser aberto, como ocorreu no caso do voo 447, o meio-escopo do trabalho da BEA fica isolado e incompleto.
Hall me disse que a abordagem francesa é “um erro”. Goelz foi menos diplomático. “Sempre houve política envolvida no BEA”, disse ele, lembrando-se do acidente do Air France 4590, que pegou fogo logo depois da decolagem no Charles de Gaulle em 2000. Depois de uma investigação de quatro anos, o BEA concluiu que o acidente não foi causado por nada no avião francês, mas por uma fina peça metálica que caíra de um voo da Continental minutos antes. Na opinião de Goelz, “desde o início eles queriam encontrar alguém [que não a Air France] para apontar como culpado, por isso a Continental se tornou o alvo”.
O governo francês não apenas investiga a Air France e a Airbus, mas também é um dos principais investidores em ambas. Na verdade, o governo da França, que nacionalizou a Air France em 1945, é hoje proprietário de 16% da Air France-KLM, ações que valem cerca de US$ 830 milhões, e além disso controla 3 das 15 posições na diretoria da empresa. O governo também possui cerca de 15% da empresa matriz da Airbus, que vale mais US$ 3,8 milhões.
É claro que outros países também têm dinheiro investido em suas companhias aéreas e não há provas de que a investigação da BEA tenha sido comprometida. Mas um governo investigar a própria empresa da qual é dono é a definição perfeita de “conflito de interesses”.
E a busca submarina realizada na primavera foi totalmente financiada pela Air France e pela Airbus – como declarou um executivo da Air France a mim, diretamente e “em dinheiro”. (A Air France declarou que não controlava a investigação e que não deu instrução alguma àequipe de busca e isso foi confirmado pelo pessoal do Woods Hole).
Um dia, durante a busca, perguntei a Troadec o que aconteceria se a equipe de Woods Hole pedisse fundos adicionais para algo que as empresas não estavam dispostas a fazer. Troadec disse que “qualquer problema desse tipo deveria ser resolvido de boa fé”. Quando perguntei a Goelz se a NTSB permitira que o alvo de uma investigação controlasse os fundos necessários a ela, ele riu. “Não, não, não”, disse ele. “Nós cobraríamos as partes envolvidas pelas buscas submarinas, mas controlaríamos o dinheiro.”
Na falta de um exame público mais crítico, a Air France fez sua própria avaliação de segurança e implementou suas próprias melhorias, apesar de não ter explicado o que foi descoberto nem o que está mudando ou o motivo.
Isso não significa que a companhia aérea não tenha tido autocrítica. Em dezembro de 2009, cinco meses depois do acidente, a Air France encomendou uma revisão interna de quase todos os aspectos das operações. Mas, quando perguntei a Bassil se outros dois executivos Etienne Lichtenberger, o diretor de segurança de voo e Bertrand Lebel, um vice presidente executivo – poderia explicar as lições que a Air France tirou do acidente, eles declinaram de responder.
“Sem problema”, disse Bassil, “é que ainda não sabemos o que aconteceu”.
“Não sabemos certos fatos”, disse eu.
“Existem poucos fatos”, disse Lebel.
“Existem dois relatórios interinos cheios de fatos”, disse eu.
“Não podemos tirar nenhuma conclusão”, disse Lebel.
“Vocês não chegaram a conclusão alguma?”, perguntei.
“Estamos chegando a conclusões”, disse ele. "E elas serão explicadas.”
Bassil se inclinou para a frente. “Não estamos em posição de dizer mais nada”.
“Pode explicar por que não?”
“Porque não temos mais nada a dizer”, disse ele.
Eu repeti as perguntas sobre as sondas pitot, os boletins de serviço e os atrasos nas buscas, eles responderam ou com tópicos que já haviam preparado ou dizendo que não fariam comentários.
No dia 18 de março, quatro dias antes de o Alucia partir, um magistrado francês finalmente começou a exigir uma investigação judicial do caso. Ao mesmo tempo em que essa investigação era encaminhada ao tribunal, juntaram-se a ele quase uma dúzia de processos civis abertos por familiares das vítimas. Talvez, à medida em que o processo seja levado adiante e os dados das caixas pretas sejam encontrados, uma nova luz seja lançada sobre os processos regulatórios e as decisões corporativas que precederam o acidente.
Nesse meio tempo, um dos únicos lugares nos relatórios do BEA que oferece um pouco de crítica aponta o necrotério brasileiro, para onde os 50 passageiros foram levados para serem identificados.
“Nesta altura da investigação”, diz o relatório, “o BEA ainda não teve acesso aos dados da autópsia".
Numa manhã de domingo, em meados de março, encontrei com o médico Francisco Sarmento, encarregado das autópsias do voo 447. O momento acabou sendo estranho para uma visita. Dois dias antes de eu encontrar com Sarmento, o necrotério onde as autópsias foram realizadas havia sido fechado por inspetores devido a “sangue nas paredes”, “corpos empilhados uns sobre os outros nas gavetas e no chão”, um”forte odor de putrefação” e um desfile de outros horrores, como “um corpo sendo arrastado pelo chão por dois funcionários”. (Desde então, o local já foi reaberto.)
O escritório de Sarmento no Recife era um pouco mais apresentável. O chão era feito de plástico fino que enrugava sob os pés enquanto eu andava, e as janelas exteriores estavam tão fortemente tapadas que era difícil ver o lado de fora, mas o calor tropical entrava pelos locais onde o vidro estava quebrado ou faltando, causando o efeito de uma gigantesca estufa. Era fácil imaginar que tal lugar, uma instalação com fundos insuficientes numa parte pobre do mundo, teria problemas em manter padrões.
Sarmento é um homem alto, de cerca de um metro e noventa e levemente corcunda, com um rosto volumoso e triste, marcado pela preocupação. A crise em seu necrotério o tem impedido de dormir e ele sorriu tristemente ao me oferecer sua mão. Nos acomodamos diante de uma mesa em seu escritório e ele começou a explicar a crise de dois anos antes, quando ocorreu a queda do voo 447.
“Quando ficamos sabendo, tivemos medo”, disse ele. “Não tínhamos espaço para 228 corpos. Havia 33 nacionalidades a bordo, por isso tivemos de cooperar com outros países. Precisávamos de impressões digitais, registros dentários, fotos de tatuagens. Contatamos a Interpol imediatamente e eles nos enviaram duas pessoas para trabalhar aqui e fazer a conexão com os demais países.” Neste momento, Sarmento ergue um dedo com ar de irritação. “Depois de uma semana”, disse ele, “o governo francês ligou e pediu para enviar um representante para observar as autópsias.” Grande parte do trabalho de medicina legal foi feito no em outro local, mas os exames finais dos corpos foram realizados no Recife.
“Quando eles chegaram aqui”, continuou Sarmento, “eram 20 especialistas que queriam fazer a autópsia eles mesmo. Só eles. Mas não íamos permitir isso. Por isso deixei que uma pessoa da Interpol ficasse na sala de autópsia e uma pessoa do governo francês também. É claro que isso virou uma questão diplomática.”
Ele alcançou um grande projetor que havia na mesa e o ligou. O aparelhou começou a zumbir. A parede mais afastada se acendeu e começamos a ver imagens das autópsias. “Tiramos fotos de tudo”, diz Sarmento, passando por fotos de relógios, colares, brincos e anéis ainda conectados a pulsos e pescoços azul-esverdeados. “Pudemos fazer todas as identificações.”
Enquanto as imagens passavam, ele acrescentou. “Todas as autópsias foram observadas pelos franceses e pela Interpol. Nenhum país, nenhuma família reclamou das identificações.”
Depois de algum tempo, Sarmento desligou o projetor e se afastou da mesa. “90% dos passageiros tinham fraturas nas pernas e braços”, disse ele. “Muitos tinham trauma no peito, no abdôme, no crânio. Não achamos ninguém queimado.” Ele se inclinou para frente em seu assento e passou os braços em volta dos joelhos. “Eles estavam assim”, disse ele, imitando a posição dos passageiros e olhando no meus olhos. Depois, ele se sentou rapidamente e estendeu sua mão na mesa.
“Quando eles colidiram”, disse ele, batendo na mesa, “houve fraturas. Acredito que os pilotos tentaram aterrissar na água. Isso faz sentido com as fraturas. Mas, quando os corpos chegaram, os pulmões já estavam em decomposição. Não tivemos condições de descobrir se alguém havia se afogado.”
Isso ficou no ar por um instante enquanto eu considerava o que ele estava sugerindo. “Então é possível que alguns deles ainda estivessem vivos?”, perguntei.
Sarmento fez que sim. “A maioria morreu com o impacto”, disse ele. “Alguns podem ter sobrevivido.”
Alguns dias depois,e m Paris, passei no escritório de Alain Bouillard, o principal investigador de acidentes do BEA. Depois de estudar milhares de pedaços dos destroços, Bouillard chegou á mesma conclusão que Sarmento sobre a aterrissagem do avião. Muitos dos itens recuperados, como carrinhos de refeição, foram encontrados com seu conteúdo comprimido a partir do fundo e pedaços da parte de baixo do avião foram achatados como se tivessem recebido um golpe vindo de baixo.
“Há uma alta probabilidade de que a aeronave tenha caído inteira”, disse Bouillard. “Temos uma razoável certeza disso.”
“O exame médico no Brasil não detectou nenhum sinal de explosão”, observei. “Não”, disse Bouillard. “Temos certeza de que não houve nenhuma despressurizarão durante o voo, porque todas as máscaras ainda estavam nas caixas.”
“O exame médico também indicou que é possível que tenham havido outros sobreviventes”, disse eu. “Acha que sim?”
Bouillard ficou em silêncio. "Eu não sei, é impossível dizer."
É claro que alguns passageiros podem ter sobrevivido ao impacto e depois morrido rapidamente, mas também há a possibilidade de terem vivido mais tempo. A superfície da água perto do Ponto Tasil pode ter temperaturas de até cerca de 26 graus Celsius em junho. De acordo com as tabelas hipotérmicas, uma pessoas pode sobreviver até 12 horas nessas condições antes de ficar inconsciente. A busca pelo avião finalmente chegou ao Ponto Tasil, 13 horas após o acidente. Mas o que aconteceu nessas últimas horas talvez não seja um mistério para sempre.
Leia a reportagem original publicada neste domingo no New York Times.
Fonte: Wil S. Hylton (New York Times) via G1
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