Pai de uma das vítimas, Nelson Marinho, mostra faixa com os dizeres "Em busca da verdade", usada em protesto em maio de 2010 no Rio de Janeiro - Foto: Henrique Porto/G1
Analisar a história recente de falhas de pilotos pode ser perturbador. Peter Goelz, o ex-diretor do NTSB se lembra de vários episódios durante seu mandato, mas um em particular merece destaque: a queda do vôo 301 da Birgenair, em fevereiro de 1996.
“Tínhamos um Boeing 757 que havia permanecido em solo na República Dominicana durante um mês”, disse ele. A investigação concluiu que “durante esse período, um ninho de insetos se formou dentro de uma das sondas pitot. Bom, a tripulação decolou e voou esse avião direto para dentro do oceano”. Todos os 189 passageiros morreram.
A sonda pitot presente no avião que fazia o voo 447 era ainda mais vulnerável do que a maioria, principalmente nas condições encontradas no Ponto Tasil. Elas foram produzidas por uma empresa francesa, a Thales, e o modelo era conhecido como AA. Nos anos antes da queda do voo 447, a Thales AA havia se mostrado problemática em lugares onde as condições meteorológicas fazem com que a água se comporte de maneira diferente.
Em altitudes elevadas e baixas temperaturas, a água às vezes não congela. Em vez disso, ela praticamente "flutua", suspensa no ar. Mas, assim que algo sólido – como um tubo de pitot – passa através da água, o líquido congela para formar gelo. Até que aquecedores possam derreter o gelo, a sonda pitot fica inativa.
Isso pode acontecer com qualquer tipo de sonda pitot, mas, até o verão de 2009, o problema do congelamento do Thales AA era conhecido por ser muito comum. Por que as sondas ainda estavam sendo utilizadas é uma questão polêmica, mas o que sabemos com certeza é o seguinte: entre 2003 e 2008, houve pelo menos 17 casos em que o Thales AA teve problemas tanto no Airbus 330 quanto na sua aeronave irmã, o A340. Em setembro de 2007, a Airbus emitiu um “boletim de serviço” sugerindo que as companhias aéreas substituíssem os pitots AA por um modelo mais novo, o BA, que disseram funcionar melhor sob gelo.
Em resposta, a política oficial da Air France foi substituir os pitots AA de seus A330 “apenas depois que uma falha ocorresse”. Em agosto de 2008, executivos da Air France pediram à Airbus provas de que os pitots BA funcionavam melhor no gelo e, confrontada pela pergunta, a Airbus declarou que não tinha provas. Por isso, removeu tal afirmação do boletim de serviço. Mais cinco meses se passaram.
Durante esse período, outra companhia aérea, a Air Caraibes, teve dois problemas sérios com o Thales AA em seus Airbus 330. O CEO da empresa ordenou que a peça fosse imediatamente removida de sua frota e alertou os órgãos competentes, que começaram a fazer perguntas.
Em suas conversas com a Airbus, os representantes desses órgãos descobriram 17 casos de congelamento e, analisando outros casos, também descobriram que as falhas pareciam estar ocorrendo com maior frequência (9 das 17 ocorreram em 2008). Nenhuma das falhas parecia dar sinal de perigo imediato, por isso o Thales AA não foi removido de serviço. Os órgãos responsáveis apenas pediram à Airbus que observassem o problema e fizessem um relatório dele dentro de um ano.
A Airbus só entregou os resultados dos testes em abril de 2009, provando que a BA realmente funcionava melhor no gelo. Nessa época, 19 meses já haviam passado desde que o boletim de serviço havia sugerido a mesma coisa, mas agora a Air France já havia feito algumas mudanças. No fim de abril, a companhia aérea encomendou as BAs para suas aeronaves A330. Em 26 de maio a companhia recebeu a primeira leva de sondas.
Cinco dias depois, quando o voo 447 decolou do Rio, as sondas ainda estavam em um depósito da Air France, e nenhuma delas havia sido instalada. Os três pitots no voo 447 eram Thales AA.
O quartel general da Air France é uma imensa caixa branca situada próxima às pistas do aeroporto Charles de Gaulle. Num dia de primavera, visitei os edifícios para conhecer o CEO da empresa, Alain Bassil, em seu escritório com vista para a pista. Bassil é um homem esbelto, de pouco mais de 50 anos, com um sorriso rígido e um bigode tão bem aparado que parece ter sido desenhado a lápis.
Desde o desaparecimento, do vôo 447, alguns familiares passaram a considerar Bassil e os demais executivos da Air France e da Airbus como um bando de vilões corporativos. No Brasil, por exemplo, eu me encontrei com Maarten Van Sluys, um homem de fala suave que perdeu sua irmã, Adriana, no voo, e que agora lidera a associação oficial de famílias brasileiras.
“Existe um acobertamento”, declarou Van Sluys. “Não há dúvida quanto a isso.” Ele argumenta que os investigadores franceses localizaram os destroços há muito tempo, já sabiam da causa do acidente e que estavam escondendo esses fatos para proteger a Air France e a Airbus. “Eles não querem discutir os problemas relacionados ao voo automático”, disse ele.
Isso pode soar exagerado – e não há evidência de acobertamento dos fatos – mas, entre as famílias do voo 447, há diversas opiniões sobre a investigação francesa, e muitas delas expressam uma sensação de frustração. Em Paris, conversei com Gwenola Roger, cujo namorado, Nicolas Toulliou, a pediu em casamento uma semana antes do acidente num passeio iluminado pela luz da lua perto do Louvre. Sentada tranquilamente no apartamento de uma amiga, Gwenola fez um retratado nobre de seu amor por Nicolas e de sua perda – depois abaixou o tom de voz e disse: “Eles ainda não disseram o que sabem. Um dia saberemos a verdade.”
Nos últimos dois anos, o BEA já emitiu dois relatórios encadernados, que incluíram mais de 200 páginas de dados sobre o acidente. Desde a primeira página, cada relatório deixa claro que a “investigação não foi concluída de modo que culpa possa ser atribuída”. Essa é a declaração formal da agência, de quem se espera uma posição acima do conflito, que relate apenas os fatos.
Tudo isso soa muito razoável, a não ser que você seja um membro da família de uma das vítimas, devastado pela dor, dois anos depois do acidente, e segurando o único relatório oficial do acidente, que parece anunciar desde a primeira linha que qualquer negligência será ignorada. “Se você não quer descobrir de quem foi a culpa”, indaga Van Sluys, “por que investigar?”
Em particular, alguns investigadores da BEA concordam que encontraram coisas que os deixaram perturbados. Depois da última comunicação do avião, por exemplo, 11 horas se passaram antes que uma equipe de busca fosse enviada ao Ponto Tasil. Na primeira hora, os controladores de tráfego aéreo geraram um “voo virtual” em seus computadores, como é prática comum, fazendo com que o avião parecesse passar por sua rota.
Durante as próximas duas horas, controladores fizeram checagens periódicas para averiguar se alguém havia visto o avião e, quando um controlador no Brasil perguntou a um controlador no Senegal se o avião havia chegado ao Cabo Verde, o controlador do Senegal disse que Cabo Verde não havia entrado em contato com eles, mas que isso não era motivo para se preocupar; por isso o controlador brasileiro não se incomodou.
Quando a Air France alertou um satélite de busca-e-resgate, 4 horas e vinte minutos haviam se passado, e foram mais duas horas até que alguém avisasse a equipe de busca do BEA. Uma equipe de busca partiu de Dacar 10 horas depois do último contato via rádio e pelos próximos 45 minutos voou em direção a Cabo Verde, onde concluíram que o avião havia caído.
Quando perguntei ao diretor da BEA, Jean-Paul Troadec, se esse era um tempo de resposta adequado, ele quase pulou da cadeira e gritou: “Não! Não é! O alerta deveria ter sido dado muito mais rapidamente!” Ainda assim, os relatórios do gabinete de Troadec não levam a tal conclusão.
Leia a reportagem original publicada neste domingo no New York Times.
Fonte: Wil S. Hylton (New York Times) via G1
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