Durante quase 12h, trabalhos no local incluíram atos de solidariedade, coincidências geográficas e envolvimentos emocionais. Primeiras pessoas a chegarem na área descrevem cenário.
Área onde avião caiu, nas proximidades da Fatec, em Piracicaba (Foto: Drone César Cocco) |
O relógio marcava 8h30 do dia 14 de setembro de 2021 quando Flávio Castellari ouviu um barulho incomum de aceleração de avião sobre sua sala no Parque Tecnológico Engenheiro Agrônomo Emílio Bruno Germek, unidade onde é diretor executivo, no Jardim Santa Rosa, em Piracicaba (SP).
“Na hora que eu escutei o barulho, eu pensei: ‘nossa, esse avião está caindo’. E na hora que eu saí da minha sala, aconteceu a explosão. Na hora que eu vi a explosão, eu já saí correndo do prédio e fui direto ao local do acidente”, recorda.
Flávio foi o primeiro a chegar ao local onde o avião caiu, 15 segundos após decolar do Aeroporto Comendador Pedro Morganti com destino ao Pará, em uma área de vegetação a 150 metros do Parque Tecnológico e em frente à Fatec, às margens da Rua Cezira Giovanoni Moretti.
O diretor do parque ainda não sabia naquele momento, mas na aeronave estavam sete pessoas e nenhuma delas sobreviveu. Também não sabia, ainda, que conhecia seis das vítimas da tragédia aérea, que nesta quarta-feira (14) completa um ano.
“Eu liguei para o Marcelo e falei: ‘Marcelo, onde você está? Caiu um avião aqui na frente do prédio do parque. Eu estou aqui, olhando o fogo’. Aí ele me contou que era a família Silveira Mello”, conta Flávio. Ele se refere a Marcelo Kraide, diretor do aeroporto de Piracicaba, de onde o avião tinha partido. Já as vítimas eram o empresário acionista da Raízen, Celso Silveira Mello Filho, a esposa e os três filhos, além do piloto e co-piloto da aeronave.
Enquanto Flávio viu a explosão causada pela queda, Marcelo, que diariamente passa pelo local da queda em seu trajeto até o aeroporto, viu a aeronave decolando.
“Por eu trabalhar no aeroporto, a gente sempre fica reparando quando decola algum avião ou helicóptero. E, exatamente naquele dia, eu vi o avião decolando e logo eu não tive mais visão. Aí logo em seguida eu vi uma coluna de fumaça, mas no ano passado nessa época estava tendo muito incêndio na cidade e até imaginei que fosse uma queimada. E aí o vigilante [do aeroporto] me ligou desesperado e falou: ‘o avião do doutor Celso caiu’”.
Em poucos minutos, a rua estava tomada de viaturas e de pessoas buscando saber o que tinha acontecido.
“É uma região que circula muita gente diariamente. Nesse horário estava todo mundo [circulando]. Tinha o pessoal começando a chegar para o trabalho. No começo, [a reação] foi de susto, ninguém sabia direito o que tinha acontecido, então, a primeira reação foi começar a chegar gente. Tem um loteamento ali próximo de onde o pessoal viu acontecer. E já veio correndo pra tentar entender o que estava acontecendo. Juntou muita gente”, recorda Flávio.
Por ser diretor do aeroporto e um dos primeiros a chegar no local, Marcelo logo se tornou referência sobre os protocolos a se adotar.
"Veio todo mundo perguntando: 'O que a gente faz? Onde vai? Quem a gente aciona?' Falei: 'vamos com calma gente, vamos ver o protocolo'. Aí um funcionário meu já ligou, já estava com a listagem no computador, e falou: 'Vamos fazer isso, isso e isso'".
Uma das principais medidas tomadas naquele momento foi acionar o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), da Força Aérea Brasileira (FAB), que é responsável pela apuração desse tipo de ocorrência.
Trabalhos em local da queda do avião em Piracicaba (Foto: Paulo Ricardo / Estadão Conteúdo) |
Trajeto diário de comandante
Coincidentemente, o responsável pelo comando das operações do Corpo de Bombeiros naquele dia também passava próximo ao local do acidente diariamente, no trajeto entre Limeira (SP), onde mora, e Piracicaba.
“Era no caminho e foi mais ou menos no horário que eu estava me deslocando [para o serviço]. Eu cheguei praticamente junto com a primeira equipe que chegou e a gente se deparou com uma cena horrível, porque o avião se chocou contra a colina, tinha muito combustível, esse combustível se espalhou pelas redondezas da colina e tudo aquilo pegava fogo”, relembra o capitão Bruno Gobbo, do Corpo de Bombeiros.
Ele explica que logo na primeira análise do local foi descartado o risco de explosão, já que ela tinha ocorrido no momento do impacto da aeronave com o solo. “Ficou evidente que o avião se chocou, não fez um pouso de emergência”. Ele lembra que nas proximidades havia prédios de empresas e instituições de ensino.
"Por sorte não atingiu outra edificação que fizesse outras vítimas que não os do próprio avião, o que aumentaria ainda mais a tristeza e a tragédia".
Após identificar que não houve sobreviventes, as ações dos bombeiros no local passaram a ser identificar e remover as vítimas, extinguir o incêndio e retirar os destroços do avião, o que se estenderia por todo o dia e parte da noite, até por volta das 20h.
Tudo acompanhado por Marcelo e Flávio, que auxiliaram com ações como isolar a área, mobilizar caminhões-pipa de empresas vizinhas e comida para quem trabalhava na operação, além de acionar o Cenipa.
“Na hora a gente não pensa nada. Só pensava se tinha alguma coisa pra fazer pra ajudar quem estava lá”, conta Flávio.
17 ligações em espera e bombeira exausta
Por ser o diretor do aeroporto da cidade, Marcelo não apenas acompanhou e auxiliou os trabalhos do início ao fim como se tornou uma referência para muitas pessoas que queriam saber o que estava acontecendo.
“Chegou num determinado momento, acho que era umas 10h, eu nunca tinha visto isso, eu tinha 17 ligações em espera. Aparecia no meu celular e eu falava: ‘meu Deus do céu, o que é isso?’. Mas eu não conseguia [atender todas]. Quando você desliga [uma delas] você se pergunta: ‘quem eu atendo primeiro?’”.
Outras cenas que ficaram na memória de Marcelo foram os trabalhos incansáveis de bombeiros, polícias Civil e Militar e agentes de outros órgãos, como Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes (Semuttran).
“Uma imagem que me marcou muito, logo depois do almoço, tinha uma bombeira com aquela ‘capona’, ela estava destruída deitada no morro, suando em bicas, praticamente desfalecendo de tanto esforço que ela fez. Aquelas imagem que a gente viu, guardadas as proporções, no World Trade Center, bombeiros cheios de fuligem, a roupa toda suja de queimado. Quase uma triste coincidência né”, afirma, em relação à proximidade das datas, já que as torres gêmeas do World Trade Center caíram em 11 de setembro.
Amigo de parte das vítimas, Flávio diz que o momento mais marcante foi a chegada dos familiares ao local.
“Estavam lá no aeroporto vendo o avião decolar. Eles viram que o avião tinha caído de lá. Não sabiam o que tinha acontecido, só viram a explosão. Foi quando o pessoal da família chegou pra ver o que tinha acontecido [...] Juntou muita gente para tentar confortar a família”, relembra.
Capitão Gobbo relata que é inevitável que haja um impacto também nos profissionais que atuam em ocorrências como a daquele dia mas que, pelos mais de 20 anos de experiência na profissão, isso não interfere no desempenho durante os trabalhos.
“Você sente por aquelas vidas que se perderam. Era uma família inteira mais os pilotos, que também têm suas famílias [...] A gente percebe como as pessoas que foram lá, os familiares, que eles ficam sem chão. Sempre quando eu vejo um acidente desse jeito, seja de automóvel ou um acidente aéreo como esse, você fica pensando: segundos antes daquela tragédia estava todo mundo bem”.
Equipes trabalham em área onde avião caiu, em Piracicaba (Foto: Edijan Del Santo/ EPTV) |
Falta de apetite, insônia e troca de roupas
Marcelo lembra que durante as quase 12 horas que ficou prestando auxílio no local com Flávio sequer almoçaram ou comeram qualquer coisa. “Primeiro porque não tinha fome, e segundo porque fomos acompanhando tudo até tirarem todos os pedaços do avião”, explica.
Ele se lembra que “a ficha caiu” sobre o que tinha acontecido de verdade quando chegou em casa para tomar banho. “Você não dorme, acorda pensando que está sonhando, mas não está sonhando. Isso foi por alguns dias para mim”, diz Marcelo.
“Não tem nem jeito de você passar na frente e não lembrar. Uma tragédia grande, há pouco tempo, vai ficar marcado para sempre pra gente. Dentro do parque, com pessoas conhecidas, na frente do meu escritório”, diz Flávio.
Gobbo revela que um de seus procedimentos pessoais para lidar melhor com casos como o daquele dia é se trocar no quartel, tirar o uniforme e colocar sua roupa pessoal para voltar para casa.
“Para ir para casa com uma outra energia, entendeu, principalmente quando a gente atende esse tipo de ocorrência. É uma coisa que faz parte da profissão, nós estamos acostumados, mas nunca vai ser uma coisa normal. A gente está acostumado a lidar com isso, mas existem algumas [tragédias] que têm um impacto maior”.
Ele também tem como escolha pessoal não acompanhar os desdobramentos do caso após ter feito sua parte, que envolve os procedimentos de urgência e emergência. “É uma questão pessoal. Eu guardo isso para mim e penso: ‘A minha parte até aqui eu fiz e fiz o meu melhor. E eu quero na próxima vez fazer o meu melhor de novo’".
“Foi muito emocionante ver a comoção de todos. Todo mundo unido na mesma causa e simplesmente lamentando que não pudemos fazer nada [para salvar as vítimas], mas todo mundo buscou fazer o máximo possível”, acrescenta Marcelo.
Memorial foi criado em área onde ocorreu queda de avião em Piracicaba (Foto: Rodrigo Pereira/ g1) |
O acidente foi a tragédia aérea com o maior número de óbitos nos últimos dez anos na região de Piracicaba, período de toda a série histórica do banco de dados do Cenipa.
A investigação sobre a causa da queda da aeronave ainda não foi concluída. Ela tinha dois anos de fabricação, tinha acabado de passar por revisão e era do modelo King Air B200, considerado de alta qualidade e excelente versatilidade por especialistas.
O local onde a aeronave caiu foi transformado em um memorial em homenagem às vítimas, com um jardim que circula o ponto zero da colisão. No centro, uma árvore foi plantada.
Jardim com árvore no centro compõe memorial em homenagem a vítimas de queda de avião em Piracicaba (Foto: Rodrigo Pereira/ g1) |
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Via g1
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