Em recente sentença inédita no país, o juiz Paulo Ricardo de Souza Cruz, da 5ªVara Federal do Distrito Federal, julgou que empresas brasileiras prestadoras de serviços aéreos públicos podem ser integralmente detidas por estrangeiros, porquanto o artigo 181 do Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), que limita a participação estrangeira a 20% do capital com direito a voto, estaria revogado pelo artigo 3º da Emenda Constitucional nº 6.
Essa sentença, que confirmou liminar concedida em mandado de segurança, pode ser considerada o início de um novo paradigma da aviação brasileira, porquanto direcionará sólidos mecanismos de investimento na infraestrutura aeronáutica do país. Com razão o magistrado.
Com efeito, o artigo 181 do CBA determina que a concessão para exploração de serviços aéreos públicos somente será outorgada a pessoa jurídica brasileira que tiver sede no Brasil, direção confiada exclusivamente a brasileiros e, por fim, pelo menos 4/5 do capital com direito a voto pertencentes a brasileiros. A mesma regra se aplica às sociedades anônimas que explorem o transporte aéreo não-regular ou de serviços especializados.
Como o artigo 181 do CBA é anterior à Constituição, poder-se-ia entender que ele foi recebido, em parte, pelo artigo 171 desta - porquanto seu comando exigia unicamente o controle efetivo do capital votante pertencente a brasileiros - e não os 4/5 previstos no CBA, que, de forma supostamente protecionista, permitia a atribuição de tratamento jurídico diferenciado para a empresa brasileira de capital nacional em comparação à de capital transnacional. É o que igualmente entende o magistrado acima referido: o dispositivo teria sido inicialmente recepcionado pela Constituição de 1988, já que essa, em seu artigo 171, conceituou a empresa brasileira de capital nacional, permitindo que fosse exigido que determinado setores fossem reservados a essas empresas.
O primeiro ponto que se nota é que o artigo 171 da lei maior eliminou a dicotomia empresa nacional x empresa não-nacional, em discussão infraconstitucional à época, para instituir um novo debate, desta feita acerca da abrangência das definições empresa brasileira x empresa brasileira de capital nacional. Fato inegável é que, ao serem criados novos conceitos em 1988, a matéria foi constitucionalizada, de maneira que se eliminou qualquer possibilidade de a lei ordinária ir além do quanto estabelecido pela Constituição, é dizer, não mais do que o texto constitucional poderia o legislador ordinário.
Contudo, o discrimen outorgado à empresa brasileira de capital nacional parece ter-se mostrado, em pouquíssimo tempo, contrário ao fenômeno jurídico pátrio, de modo que foi expressamente revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995.
Realmente, em bom tempo o poder soberano, por meio do Congresso Nacional, conscientizou-se de que a discriminação do capital estrangeiro não somente deixava de proteger o mercado brasileiro, como o enfraquecia perante o desenvolvimento global e o dinamismo inerente ao sistema econômico mundial. De conseguinte, desde então não é possível ao legislador ordinário estabelecer diferenças de tratamento entre empresas aéreas brasileiras no que tange à origem de seu capital. Iniciou-se uma nova filosofia.
Acrescente-se que o artigo 172 da Constituição não tem o condão de recepcionar o artigo 181 do CBA, uma vez que ele tão somente determina à lei ordinária disciplinar os investimentos de capital estrangeiro no país, mas não restringir sua participação, como o fazem, "exempli gratia", o artigo 192, com relação às instituições que compõem o sistema financeiro nacional, o artigo 190, quanto à aquisição ou arrendamento de propriedade rural, o artigo 199, parágrafo 3º , acerca da assistência à saúde no país, o artigo 222, caput, com relação às empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens e, ainda, o parágrafo 1º desse dispositivo, quanto à participação estrangeira nessas companhias.
Esse mesmo raciocínio é exteriorizado pelo magistrado, ao declinar que é certo que o artigo 172 da Constituição estabelece que "a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros", mas não como admitir que o mesmo possa ser interpretado para permitir restrições a esse capital em setores não explicitamente previstos na Constituição, pois essa interpretação nulificaria, em termos práticos, a revogação do artigo 171 pela Emenda nº 6, de 1995.
E conclui o magistrado: com essa revogação, portanto, caíram todas as discriminações contra empresas brasileiras em virtude da origem do seu capital. Em outras palavras, a lei não mais pode discriminar entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro, ou seja, desde que uma empresa seja brasileira (constituída no Brasil e sujeita às leis brasileiras) a origem do seu capital seria irrelevante. Tal tipo de discriminação, assim, só seria possível, hoje, nos casos previstos na própria Constituição, como ocorre com as empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, objeto de tratamento especial no artigo 222 da Constituição. Assim, tenho que o artigo 181 do CBA não mais está em vigor.
Ora, caso o serviço de transporte aéreo público seja tido por estratégico para a independência, interesse e soberania nacionais, esse serviço deve ser sim disciplinado e fiscalizado, mas não em seu critério subjetivo (relacionado à natureza do capital da pessoa que o exerce), e sim em seu critério objetivo (prestação do serviço público), sob pena de intervenção, ex vi do que preconiza o artigo 188 do CBA.
Outrossim, há de se considerar ainda - ao lado do normativismo legal - que, quanto aos aspectos sociais e econômicos, a revogação do artigo 181 é aplaudida pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, para a qual o aporte de capital estrangeiro em maior grau proporcionaria às empresas acesso a importantes recursos financeiros. A mesma secretaria, já no ano de 2008, descreve que tal limitação se reflete na capacidade de financiamento das empresas nacionais. Em se tratando de um mercado com diversos custos atrelados à moeda estrangeira, a impossibilidade de se obter parceiros estrangeiros com maior acesso aos recursos financeiros se apresenta como uma barreira ao desenvolvimento de novas empresas, ao fortalecimento das atuais e, por conseguinte, do setor. Outro aspecto negativo dessa restrição é a impossibilidade de contar com a experiência internacional na gestão da empresa aérea por parte de um eventual acionista estratégico atuante no setor.
Se a própria ANAC reconhece que as empresas aéreas estrangeiras já transportam mais de 2/3 dos passageiros para ou do país, os respectivos investimentos no setor e, consequentemente, geração de riquezas, continuarão - caso essa situação se perpetue - a ser implementados no exterior ao invés de no Brasil. Se por um lado as empresas aéreas estrangeiras trazem e levam o passageiro, por outro lado os proventos desses serviços ficam em sua grande maioria em solo alienígena.
Por outro lado, reconhecida a revogação do artigo 181 do CBA, os investidores estrangeiros direcionarão seus olhares às empresas aéreas e à infraestrutura aeronáutica do País (muito distante, portanto, do capital especulativo). A concorrência seria instigada e o custo das passagens fatalmente reduzido, com pagamento de tributos locais nas mais diversas atividades secundárias ao negócio principal. Aeronautas, aeroviários e trabalhadores brasileiros em geral seriam, ao lado dos passageiros, claramente favorecidos, combatendo-se a pobreza e os fatores de marginalização e se promovendo, ainda, a integração social dos setores desfavorecidos. Aí estão as reais bases da soberania nacional, que não pode ser hoje encarada enquanto princípio positivo e irretorquível desatrelado do ser e do surgimento de novas formas de interconexão e interdependência entre os povos. Como bem discorreu o magistrado, não desconheço que muitos países importantes impõem restrições ao controle das suas companhias aéreas com base na origem do capital controlador, mas a questão tem de ser solucionada à luz da nossa própria Constituição, que não mais aceita discriminação contra o capital estrangeiro, salvo quando ela mesma dispõe em sentido contrário.
Em que consiste hoje, pois, o artigo 181 do CBA? Ele inexiste. Não pode gerar e não gera quaisquer efeitos.
Fonte: Guilherme Abdalla (advogado e vice-presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil, da seccional de São Paulo) via Diário do Turismo
Essa sentença, que confirmou liminar concedida em mandado de segurança, pode ser considerada o início de um novo paradigma da aviação brasileira, porquanto direcionará sólidos mecanismos de investimento na infraestrutura aeronáutica do país. Com razão o magistrado.
Com efeito, o artigo 181 do CBA determina que a concessão para exploração de serviços aéreos públicos somente será outorgada a pessoa jurídica brasileira que tiver sede no Brasil, direção confiada exclusivamente a brasileiros e, por fim, pelo menos 4/5 do capital com direito a voto pertencentes a brasileiros. A mesma regra se aplica às sociedades anônimas que explorem o transporte aéreo não-regular ou de serviços especializados.
Como o artigo 181 do CBA é anterior à Constituição, poder-se-ia entender que ele foi recebido, em parte, pelo artigo 171 desta - porquanto seu comando exigia unicamente o controle efetivo do capital votante pertencente a brasileiros - e não os 4/5 previstos no CBA, que, de forma supostamente protecionista, permitia a atribuição de tratamento jurídico diferenciado para a empresa brasileira de capital nacional em comparação à de capital transnacional. É o que igualmente entende o magistrado acima referido: o dispositivo teria sido inicialmente recepcionado pela Constituição de 1988, já que essa, em seu artigo 171, conceituou a empresa brasileira de capital nacional, permitindo que fosse exigido que determinado setores fossem reservados a essas empresas.
O primeiro ponto que se nota é que o artigo 171 da lei maior eliminou a dicotomia empresa nacional x empresa não-nacional, em discussão infraconstitucional à época, para instituir um novo debate, desta feita acerca da abrangência das definições empresa brasileira x empresa brasileira de capital nacional. Fato inegável é que, ao serem criados novos conceitos em 1988, a matéria foi constitucionalizada, de maneira que se eliminou qualquer possibilidade de a lei ordinária ir além do quanto estabelecido pela Constituição, é dizer, não mais do que o texto constitucional poderia o legislador ordinário.
Contudo, o discrimen outorgado à empresa brasileira de capital nacional parece ter-se mostrado, em pouquíssimo tempo, contrário ao fenômeno jurídico pátrio, de modo que foi expressamente revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995.
Realmente, em bom tempo o poder soberano, por meio do Congresso Nacional, conscientizou-se de que a discriminação do capital estrangeiro não somente deixava de proteger o mercado brasileiro, como o enfraquecia perante o desenvolvimento global e o dinamismo inerente ao sistema econômico mundial. De conseguinte, desde então não é possível ao legislador ordinário estabelecer diferenças de tratamento entre empresas aéreas brasileiras no que tange à origem de seu capital. Iniciou-se uma nova filosofia.
Acrescente-se que o artigo 172 da Constituição não tem o condão de recepcionar o artigo 181 do CBA, uma vez que ele tão somente determina à lei ordinária disciplinar os investimentos de capital estrangeiro no país, mas não restringir sua participação, como o fazem, "exempli gratia", o artigo 192, com relação às instituições que compõem o sistema financeiro nacional, o artigo 190, quanto à aquisição ou arrendamento de propriedade rural, o artigo 199, parágrafo 3º , acerca da assistência à saúde no país, o artigo 222, caput, com relação às empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens e, ainda, o parágrafo 1º desse dispositivo, quanto à participação estrangeira nessas companhias.
Esse mesmo raciocínio é exteriorizado pelo magistrado, ao declinar que é certo que o artigo 172 da Constituição estabelece que "a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros", mas não como admitir que o mesmo possa ser interpretado para permitir restrições a esse capital em setores não explicitamente previstos na Constituição, pois essa interpretação nulificaria, em termos práticos, a revogação do artigo 171 pela Emenda nº 6, de 1995.
E conclui o magistrado: com essa revogação, portanto, caíram todas as discriminações contra empresas brasileiras em virtude da origem do seu capital. Em outras palavras, a lei não mais pode discriminar entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro, ou seja, desde que uma empresa seja brasileira (constituída no Brasil e sujeita às leis brasileiras) a origem do seu capital seria irrelevante. Tal tipo de discriminação, assim, só seria possível, hoje, nos casos previstos na própria Constituição, como ocorre com as empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, objeto de tratamento especial no artigo 222 da Constituição. Assim, tenho que o artigo 181 do CBA não mais está em vigor.
Ora, caso o serviço de transporte aéreo público seja tido por estratégico para a independência, interesse e soberania nacionais, esse serviço deve ser sim disciplinado e fiscalizado, mas não em seu critério subjetivo (relacionado à natureza do capital da pessoa que o exerce), e sim em seu critério objetivo (prestação do serviço público), sob pena de intervenção, ex vi do que preconiza o artigo 188 do CBA.
Outrossim, há de se considerar ainda - ao lado do normativismo legal - que, quanto aos aspectos sociais e econômicos, a revogação do artigo 181 é aplaudida pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, para a qual o aporte de capital estrangeiro em maior grau proporcionaria às empresas acesso a importantes recursos financeiros. A mesma secretaria, já no ano de 2008, descreve que tal limitação se reflete na capacidade de financiamento das empresas nacionais. Em se tratando de um mercado com diversos custos atrelados à moeda estrangeira, a impossibilidade de se obter parceiros estrangeiros com maior acesso aos recursos financeiros se apresenta como uma barreira ao desenvolvimento de novas empresas, ao fortalecimento das atuais e, por conseguinte, do setor. Outro aspecto negativo dessa restrição é a impossibilidade de contar com a experiência internacional na gestão da empresa aérea por parte de um eventual acionista estratégico atuante no setor.
Se a própria ANAC reconhece que as empresas aéreas estrangeiras já transportam mais de 2/3 dos passageiros para ou do país, os respectivos investimentos no setor e, consequentemente, geração de riquezas, continuarão - caso essa situação se perpetue - a ser implementados no exterior ao invés de no Brasil. Se por um lado as empresas aéreas estrangeiras trazem e levam o passageiro, por outro lado os proventos desses serviços ficam em sua grande maioria em solo alienígena.
Por outro lado, reconhecida a revogação do artigo 181 do CBA, os investidores estrangeiros direcionarão seus olhares às empresas aéreas e à infraestrutura aeronáutica do País (muito distante, portanto, do capital especulativo). A concorrência seria instigada e o custo das passagens fatalmente reduzido, com pagamento de tributos locais nas mais diversas atividades secundárias ao negócio principal. Aeronautas, aeroviários e trabalhadores brasileiros em geral seriam, ao lado dos passageiros, claramente favorecidos, combatendo-se a pobreza e os fatores de marginalização e se promovendo, ainda, a integração social dos setores desfavorecidos. Aí estão as reais bases da soberania nacional, que não pode ser hoje encarada enquanto princípio positivo e irretorquível desatrelado do ser e do surgimento de novas formas de interconexão e interdependência entre os povos. Como bem discorreu o magistrado, não desconheço que muitos países importantes impõem restrições ao controle das suas companhias aéreas com base na origem do capital controlador, mas a questão tem de ser solucionada à luz da nossa própria Constituição, que não mais aceita discriminação contra o capital estrangeiro, salvo quando ela mesma dispõe em sentido contrário.
Em que consiste hoje, pois, o artigo 181 do CBA? Ele inexiste. Não pode gerar e não gera quaisquer efeitos.
Fonte: Guilherme Abdalla (advogado e vice-presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil, da seccional de São Paulo) via Diário do Turismo
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