Chegou hoje ao porto de Montevidéu, de onde partirá rumo ao Brasil, um dos mais interessantes comboios marítimos do ano: o que está conduzindo o outrora poderoso porta-aviões americano Kitty Hawk para um estaleiro no Texas, onde ele será desmanchado e vendido como sucata.
Mas, bem mais impactante do que a transformação de um gigantesco porta-aviões em pilhas de ferro-velho é por quanto ele foi vendido para a empresa que executará o serviço: um mísero centavo de dólar — pouco mais de R$ 0,05.
Barganha do século
A transação, considerada a "barganha da década" por admiradores do famoso navio, um dos maiores porta-aviões que os Estados Unidos tiveram no passado, e por alguns políticos americanos de oposição (já que, quando foi construído, no início da década de 1960, o Kitty Hawk custou 264 milhões de dólares, ou quase R$ 13 bilhões em valores corrigidos para os dias de hoje), levantou suspeitas e gerou indignação.
Mas a empresa que comprou o navio por um valor inferior ao de uma bala, a fim de desmantelá-lo, a International Shipbreaking Limited, garante que está prestando "um serviço aos contribuintes americanos", por que eles "não precisarão pagar pelo desmanche do navio", já que ela assumirá este custo — embora omita o quanto irá lucrar vendendo o aço e o que mais puder ser reciclado do grande porta-aviões, que foi desativado em 2009, após quase meio século de serviços prestados à Marinha dos Estados Unidos.
Porta-aviões com história
O Kitty Hawk, assim batizado em homenagem à região do estado da Carolina do Norte onde os irmãos Wilbur e Orville Wright, considerados pelos americanos como os inventores do avião, voaram pela primeira vez, em 1903, foi um dos primeiros super porta-aviões dos Estados Unidos.
Com 326 metros de comprimento e 86 de largura, e capacidade para abrigar até 100 aviões militares, quando foi lançado, em 1961, o Kitty Hawk era considerado um símbolo do poder militar do país.
Kitty Hawk |
Atuou na Guerra do Vietnã e do Iraque, e em todos os grandes conflitos envolvendo os Estados Unidos, até o início dos anos 2 000, quando foi "aposentado" e ancorado em uma base americana, no estado de Washington, à espera do momento de ser desmanchado — o que ficou acertado no ano passado, através da polêmica "venda simbólica" para a empresa que irá executar o serviço.
Viagem de 30 000 quilômetros
Começaram, então, os preparativos para a gigantesca operação de remoção do porta-aviões para o estaleiro onde o desmonte será feito. Mas havia dois problemas.
O primeiro era que o navio estava na costa oeste americana e o estaleiro no litoral do Texas, no Golfo do México, no lado oposto dos Estados Unidos - era preciso navegar do Pacífico até o Atlântico para isso.
E o segundo, que o porta-aviões era grande demais para fazer esta travessia pelo atalho do Canal do Panamá. O único jeito, então, seria descer e contornar toda a América do Sul e Central, cruzando do Pacífico para o Atlântico pelo Estreito de Magalhães, em uma longa jornada de quase 30 000 quilômetros.
E assim está sendo feito. Com uma agravante: como motores e equipamentos já haviam sido retirados do velho porta-aviões, o Kitty Hawk ficou sem condições de navegar por meios próprios, e está sendo lentamente puxado por um comboio formado por quatro rebocadores (veja vídeo de parte desta longa travessia).
Próxima parada: Bahia
A saga da última viagem do Kitty Hawk começou dois meses e meio atrás, em 15 de janeiro passado, quando ele partiu, rebocado, de Seattle, nos Estados Unidos, e está prevista para terminar só em junho ou julho, já que o pesado navio vem sendo puxado a menos de 10 km/h no mar
Até aqui, o comboio já fez paradas (para descanso dos tripulantes dos rebocadores, reposições de suprimentos e reparos nas embarcações) nos portos de Los Angeles, Manzanillo (México), Balboa (Panamá), Valparaíso e Punta Arenas (Chile) e, agora, Montevidéu — de onde partirá nos próximos dias, rumo à próxima escala da viagem: Salvador, na Bahia.
Não há uma data precisa para a chegada do curioso comboio à capital baiana, porque isso depende das condições do mar durante o percurso entre o Uruguai e a costa do Brasil. Mas a chegada a Salvador só deve acontecer no final do mês, já que, por segurança, o comboio avança muito lentamente.
Navio fantasma
Também por questões de segurança, o Kitty Hawk navega sem nenhum tripulante a bordo, feito um gigantesco navio fantasma, sendo apenas puxado e escorado pelos rebocadores.
A precaução é necessária, já que um navio daquele porte desprovido de meios de propulsão se torna muito vulnerável aos humores do mar, e visa evitar tragédias, como as que já ocorreram no passado, com navios que estavam sendo rebocados com pessoas a bordo.
Sumiu quando era rebocado
Um dos casos mais famosos do gênero envolveu, inclusive, um grande navio militar brasileiro, o encouraçado São Paulo, da Marinha do Brasil, que desapareceu, no meio do Atlântico, em novembro de 1951, quando era puxado por dois rebocadores, também rumo a um desmanche, na Europa.
Encouraçado São Paulo |
A bordo do navio, que também não tinha mais meios próprios de propulsão, seguiam oito tripulantes, cujos corpos jamais foram encontrados — bem como o próprio encouraçado (clique aqui para conhecer este caso, que, apesar da gritante falha de segurança, não apontou nenhum culpado).
Como o porta-aviões americano é bem mais volumoso do que o encouraçado brasileiro desaparecido no passado, os cuidados do comboio foram redobrados.
Via Jorge de Souza (Histórias do Mar/UOL) - Fotos: Wikipédia