Vive no oceano escuro, entre montanhas submarinas escondidas a mais de quatro mil metros de profundidade, a meio caminho entre o Brasil e a África, a soma de todos os medos de quem viaja de avião. Na noite do domingo 31 de maio, a calmaria encontrou a tempestade e, pela primeira vez em 73 anos, a máquina derrotou o homem nas nuvens do Atlântico Sul, acrescentando às curvas do desastre a dor de 228 famílias e um mistério que assombra quem precisa agora subir as escadas de um jato: por que o voo 447 da Air France, que saiu do Rio de Janeiro às 19h com destino a Paris, contrariou alguns dos principais paradigmas da aviação?
Em primeiro lugar, o Airbus 330 caiu em pleno percurso, fase do voo que responde por apenas 5% dos acidentes no mundo. Nunca um desastre semelhante havia acontecido na ligação entre a América do Sul e a Europa, a chamada Rota do Atlântico, utilizada por aproximadamente 100 voos semanais e sem nenhum registro de acidente desde 1936.
Segundo, pela ocorrência com uma grande aeronave, considerada de menor risco pela sofisticação dos recursos. O A330 entrou em operação em 2005, o que o coloca na condição de avião novo. E em 16 de abril tinha passado pela revisão anual obrigatória. No comando do AF447 estava um piloto experiente, com mais de 11 mil horas de voo, sendo 1.700 apenas no A330.
Mas, após quatro horas de uma viagem perfeita, bastaram menos de 15 minutos para que o avião saísse do chamado voo de cruzeiro - aquele momento em que, a altitude e velocidade constantes, os passageiros finalmente relaxam de todo o stress do aeroporto e do embarque e vão ver filmes, ler ou dormir - , entrasse numa tempestade, sofresse uma pane elétrica e se despressurizasse, desaparecendo nas profundezas do Atlântico a 820 quilômetros do arquipélago de Fernando de Noronha.
Por contrariar estatísticas, desempenho tecnológico e experiências anteriores, a queda do 447 pode entrar para a história como um dos maiores mistérios da aviação.
"Esse acidente traiu todos os elementos que consideramos para afirmar que um voo é seguro", diz Moacyr Duarte, pesquisador da coordenação dos programas de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). O governo francês reconhece a dificuldade de encontrar respostas para a queda do Airbus. "Existe a possibilidade de que nunca encontremos as caixas-pretas", disse Paul Louis Arslanian, diretor do Escritório de Investigação e Análise Francês (BEA), encarregado de tentar elucidar os casos de acidentes aéreos.
Sem as caixas-pretas, a missão da BEA fica mais difícil, mas não impossível. O Airbus era dotado de um sistema chamado de Acars (sigla em inglês para sistema de comunicação e informação da aeronave), que comunica imediatamente à empresa aérea qualquer erro detectado pelos computadores. Sua função principal é avisar às equipes de manutenção sobre um eventual defeito na aeronave, permitindo o reparo imediato no pouso. Foi este sistema que emitiu a sequência de alertas indicando velocidades contraditórias, pane elétrica e despressurização.
Enquanto os investigadores franceses se preocupam em recolher o máximo de dados e em considerar todas as possibilidades, a ponto de não descartar nem mesmo a hipótese de um atentado terrorista, como frisou, na sexta-feira 5, o ministro da Defesa, Hervé Morin, os mistérios do desaparecimento trouxeram uma certeza: está disseminado o chamado medo de voar.
O piloto Douglas Ferreira Machado, da empresa de consultoria aeronáutica Safety Service, acredita que a demora para as explicações afeta a sensação de segurança de todos. "Acho que a Air France tem mais informações do que o divulgado, já que faz monitoramento online dos aviões. Talvez estejam pesquisando mais antes de tornar os dados públicos." Pesquisas realizadas após acidentes aéreos comprovam que a fobia se espalha depois dessas tragédias.
A queda de um avião da Gol em 2006 e a explosão de outro da TAM, em 2007, elevaram para 54% o número de brasileiros com pavor de avião, segundo a consultoria H2R. O medo fez a modelo Susana Werner, 31 anos, perder a voz no voo entre Paris e Rio, na segunda-feira 1º, um dia após a fatalidade com o 447. Casada com o goleiro Júlio César, da Inter de Milão, ela saiu da Itália, com a família, e fez escala em Paris. Durante o trajeto até o Rio, foi ficando cada vez mais rouca - de aflição, nervoso, medo. "Sempre tive temor", conta ela, que, agora, tem o sentimento aguçado.
No Brasil, a sensação de insegurança é justificada. Aqui, o número absoluto de acidentes na aviação civil cresce, como constata o relatório interno do Comando da Aeronáutica. O documento, chamado Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, diz que a Aeronáutica registrou 58 acidentes em 2005 e, no ano passado, 108, ou seja, quase o dobro.
Mas, ainda assim, o avião continua sendo um meio de transporte mais seguro que o carro. Um estudo do Conselho Nacional de Segurança em Transportes dos EUA considera, desde 1995, que viajar de avião é 11 vezes mais seguro que de automóvel. Especialista em segurança de voo do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA), o comandante Ronaldo Jenkins, fornece um dado definitivo: "A média internacional hoje é de 0,8% acidente com morte a cada um milhão de voos."
Para a psicóloga Rosana D'Ório, especialista em medo de voar e excomissária de bordo da Varig, as tragédias aéreas desencadeiam fobia por avião até em quem nunca teve problema com isso. Quando as circunstâncias são inexplicáveis, como agora, isso só aumenta. "As pesquisas mostram que o avião é o meio de transporte mais seguro, mas a pessoa só lembra do avião que cai", diz.
O que faz a tragédia do AF447 ser ainda mais dramática é saber que os familiares da vítimas podem ter de conviver com o sentimento da morte sem fim, o luto sem corpo. Flávia Souza Antunes, administradora de empresas carioca de 26 anos, custa a acreditar que não irá rever o pai, Octavio Augusto Ceva Antunes. "Ele estava tranquilo, era acostumado a fazer esse tipo de viagem", relembra. Professor do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Antunes ia dar cursos na universidade francesa Cergy-Pontoise, e viajava em companhia da mulher, Patrícia Nazareth Ceva Antunes, e do filho Mateus, 3 anos.
Ao contrário de Antunes, a jornalista Adriana Francisco Van Sluijs, 40 anos, estava tensa porque não gostava de avião. Ela iria à Coreia do Sul a trabalho. "Por telefone, quando nos despedimos, disse que ela não parecia desse mundo, que ninguém tinha uma filha como ela", emociona-se a mãe, Vazti Van Sluijs.
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Para o psiquiatra Fernando Ramos, presidente do centro de estudos do Instituto Philippe Pinel, no Rio, a comoção em torno do acidente sai do âmbito da família para a esfera pública por conta da dimensão da catástrofe: "Foi um lembrete de que nem a tecnologia mais avançada é capaz de impedir que um imprevisto aconteça e nos confronte com a morte." O medo de voar se instala porque "a maioria das pessoas não consegue diferenciar o raro do comum", afirma Ramos. Acredita-se que o destino do 447 se repetirá a cada voo.
Como disse o filósofo francês Luc Ferry no livro "Vencer os Medos", religião, filosofia, psicanálise, tudo é válido para superar temores. Não existe solução pronta. Mas, em casos de acidentes, ajuda muito ter clareza sobre o fato. E ela só virá quando as respostas da tragédia do voo 447 forem finalmente resgatadas do fundo do oceano escuro para a luz da verdade.
JÁ ACONTECEU OUTRA VEZ
Há 36 anos, um Boeing 707 da Varig decolou do Rio de Janeiro para o voo RG 820 com destino a Paris. O comandante Gilberto Araújo da Silva seguiu pela Rota do Atlântico com outras 133 pessoas a bordo. Entre os passageiros estavam o então presidente do Senado, Felinto Muller, e o cantor Agostinho dos Santos, que a cinco quilômetros da cabeceira da pista do aeroporto de Orly acabaram vítimas de um dos mais dramáticos acidentes da aviação. Era a tarde de 11 de julho de 1973 e faltavam cerca de 60 segundos para o pouso. O avião foi tomado por fumaça tóxica vinda do banheiro, onde um cigarro aceso foi deixado no lixo. Na cabine, a visibilidade ficou nula e o comandante optou por um pouso de emergência. O avião se arrastou por mais de 500 metros e foi tomado pelas chamas. Apenas 11 sobreviveram.
Fonte: Adriana Prado, Gustavo de Almeida e Renata Cabral / Colaborou Camila Pati (Revista IstoÉ) - Arte: IstoÉ