A corrida entre Bezos e Branson pode parecer um exercício fútil de vaidade tecnológica. Mas o 14-Bis também era. Entenda por que os voos turísticos são o primeiro passo para baratear e massificar as viagens espaciais.
Virgin Galactic/Blue Origin (Foto Montagem sobre reprodução) |
Aos olhos de parte do público, a corrida espacial particular entre Jeff Bezos e Richard Branson se reduziu a uma rinha egomaníaca de bilionários. Mas ela é, potencialmente, o início de uma revolução comparável às Grandes Navegações. Para entender por quê, é preciso rememorar o que aconteceu nos últimos 60 anos.
A disputa entre EUA e URSS durante a Guerra Fria não foi um esforço para desbravar uma nova fronteira; foi, mais que isso, uma tentativa de demonstrar supremacia tecnológica com caráter bélico. Os mesmos foguetes que tinham a capacidade de pôr veículos em órbita eram os que deveriam transportar ogivas nucleares em caso de conflito aberto entre as duas superpotências. O R-7, primeiro míssil balístico intercontinental da história, desenvolvido pela União Soviética, foi também responsável pelo lançamento do Sputnik, em 1957.
Num contexto em que foguetes são mais importantes por sua capacidade de transportar bombas, há uma preocupação mínima com o que acontece com eles depois que “pousam”. Isso criou uma distorção bizarra: a espaçonave foi, por muito tempo, o único meio de transporte descartável já criado pelo ser humano.
Não é barato comprar um carro; menos ainda um avião. Mas o uso contínuo amortiza o custo inicial. Um Boeing ou Airbus operam por décadas. Assim começamos a entender por que a exploração espacial é tão cara: você arca com os custos elevados de uma vasta mão de obra qualificada, por anos a fio, para produzir artesanalmente um único item (um foguete ou um jipinho robótico para explorar Marte, por exemplo) e então lançá-lo ao espaço, de onde não voltará.
Para transformar espaçonaves em algo tão acessível quanto a aviação civil, a primeira meta é a reutilização. A segunda, que não existe sem a primeira, é aumentar a frequência das viagens. Jeff Bezos e Richard Branson começam a quebrar esses muros.
A Nasa já tentou isso antes, com o famoso programa dos ônibus espaciais, que operou entre 1981 e 2011. Uma flotilha de naves que decolavam como foguetes, pousavam como aviões e eram quase 100% reutilizáveis. O plano era tornar tudo sustentável financeiramente realizando um voo por semana. É o que toda companhia aérea sabe: avião no chão é avião dando prejuízo. Infelizmente, não deu certo. A cadência de voos jamais chegou a um por semana. O recorde anual foram nove num ano, o que dá menos de um por mês, em 1985.
No começo do século 21, ficou claro que seria preciso encontrar um caminho diferente para resolver esse problema.
Quando Alberto Santos-Dumont e os irmãos Wright fizeram seus primeiros voos, seus veículos também eram frágeis, perigosos e realizavam apenas uns poucos trajetos antes de serem aposentados ou aperfeiçoados. O risco de morte dos primeiros aviadores ficava na casa de 1%, o que não é muito diferente do perigo a que se submetem os astronautas hoje em dia.
Como o avião saiu dessa traquitana curiosa e perigosa para algo seguro e revolucionário? Foi uma combinação de estímulo à inovação e aumento da frequência dos experimentos. Usaram-se prêmios em dinheiro, dados aos que conseguissem realizar façanhas aeronáuticas, começando com desafios modestos e terminando com grandes realizações. Santos-Dumont ganhou em 1901 um prêmio por contornar a Torre Eiffel num dirigível e retornar ao ponto de partida em 30 minutos.
Em 1909, o francês Louis Blériot foi o primeiro a cruzar o Canal da Mancha em um avião, para levar um prêmio oferecido pelo jornal Daily Mail. E é famosa a conquista do prêmio Orteig por Charles Lindbergh, que realizou o primeiro voo transatlântico sem escalas em um avião, em 1927. Isso para citar apenas alguns exemplos.
Em 1996, o empresário Peter Diamandis criou o Prêmio X, que daria US$ 10 milhões a quem primeiro conseguisse levar o peso de duas pessoas até a borda do espaço por duas vezes, no prazo de duas semanas, com o mesmo veículo. A ideia era imitar o método que moveu os primórdios da aviação no século 20 com foguetes.
Demorou oito anos, mas Burt Rutan e a empresa Scaled Composites (financiados pelo bilionário Paul Allen, fundador da Microsoft) conquistaram a bolada em 2004, com um avião-foguete chamado SpaceShipOne. Em seguida, Richard Branson fechou um contrato com a Scaled para criar a Virgin Galactic, licenciando a tecnologia original e desenvolvendo um novo veículo, mais capaz, a SpaceShipTwo.
A aventura do magnata britânico ao espaço começou em 2004. Em 2010, o primeiro exemplar da nave ficou pronto e a pré-venda de assentos, por US$ 250 mil, começou. Em 2014, um acidente na primeira tentativa de ir ao espaço destruiu o veículo, matando um dos pilotos (o outro ejetou). A segunda nave começou os voos de teste em 2016. Atingiu o espaço pela primeira vez em 2018. Fez mais um voo suborbital em 2019 e outro em maio de 2021. Quando Richard Branson subiu a bordo, em 11 de julho último, era apenas a quarta ida da engenhoca até lá em cima.
Jeff Bezos tinha mais tempo de estrada. Fundou a Blue Origin em 2000. O objetivo era começar pelos voos suborbitais antes de saltar para missões orbitais e interplanetárias. Demorou, mas seu sistema, chamado New Shepard (em homenagem ao primeiro astronauta americano, Alan Shepard), realizou o primeiro voo em 2015. O foguete reutilizável pousou suavemente já na segunda tentativa – um feito pioneiro, só repetido depois por Elon Musk.
Falando nele: fundada em 2002, a SpaceX quase faliu antes de realizar um voo. Mas conseguiu atingir a órbita com um foguete Falcon 1 na quarta tentativa, fechou um contrato com a Nasa para o transporte de carga à Estação Espacial Internacional (ISS) e desenvolveu uma família de foguetes parcialmente reutilizáveis que ofusca o sucesso de qualquer outra: são os mais baratos já fabricados. Musk não mira nos turistas de Branson e Bezos. Ele quer ir mais longe.
Embora já impere no cobiçado mercado de lançamento de satélites, a SpaceX decidiu agora vencer a si mesma com o desenvolvimento do veículo Starship, 100% reutilizável. Do ponto de vista dos objetivos, é um ônibus espacial melhorado, que realizará não só voos orbitais como interplanetários. Tem capacidade de carga superior à do Saturn V, que levou a humanidade à Lua no século passado, mas por uma fração do custo. E o projeto como um todo tem meta digna de ficção científica: levar 1 milhão de pessoas a Marte para colonizar o planeta.
Para isso, Musk prevê fabricação em massa. O programa Starship, de uma só vez, representa o desenvolvimento de uma nave interplanetária de transporte de alta capacidade, das tecnologias e procedimentos que permitem sua operação frequente e segura e do aparato industrial requerido para fabricar centenas, talvez milhares, de cópias. Caso dê certo, será basicamente a primeira replicação da aviação comercial com espaçonaves. E não vai demorar muito até a gente saber: o primeiro voo orbital da Starship deve acontecer nos próximos meses, e a Nasa já confia o suficiente na proposta a ponto de contratar o sistema para levar humanos à Lua a partir de 2024.
Essa faísca de inovação quebrou o molde de uma indústria até então acomodada. Boeing, Lockheed Martin e Arianespace estavam satisfeitas vendendo foguetes caríssimos e descartáveis a governos ou grandes companhias de telecomunicações. Agora, o mercado todo já começa a migrar para algo de fato racional. Mesmo que os planos mais ousados não se concretizem, uma queda significativa no custo da exploração espacial está assegurada. E, se tudo acontecer como esse pessoal está planejando, o céu (dos outros planetas) é o limite.
Por Salvador Nogueira (super.abril.com.br)
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