G1 ouviu 12 das 16 famílias vitimadas pela queda do avião no Recife.
Acidente aconteceu em 13 de julho de 2011, em terreno de Boa Viagem.
O tempo chuvoso do mês de julho tem trazido mais lembranças do que a dentista Taciana Guerra gostaria. Era assim que estava o tempo no dia seguinte ao acidente aéreo que vitimou o filho dela, o dentista de 24 anos Raul Farias, e outras 15 pessoas, duas delas tripulantes da aeronave. Nesta sexta-feira (13), faz um ano que o avião modelo LET-410 da Nordeste Aviação Regional Linhas Aéreas (Noar Linhas Aéreas), que ia do Recife para Mossoró (RN), com escala em Natal (RN), caiu a apenas cem metros da Praia de Boa Viagem, matando todos que estavam a bordo.
Foto: Aldo Carneiro/AE
Uma missa está sendo organizada pelas famílias na Igrejinha de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife e próxima à praia, também nesta sexta, às 19h, para marcar o primeiro ano do acidente. “Além de prestar uma homenagem, a gente faz essa missa para ver se o mundo acorda. Não queremos que outras famílias passem pelo que estamos passando”, explica a dentista.
Com riqueza de detalhes, Taciana se lembra da despedida do filho, às 5h da manhã, na porta de casa antes de partir para o aeroporto. Raul ia dar uma aula em Natal. “Ele disse que sexta-feira estaria de volta, mas pouco depois chegou a notícia de que ele havia morrido. Eu demorei vários dias para acreditar, até hoje preciso me lembrar que o Raul não está mais aqui. Ele era um menino de ouro, minha alma gêmea”, conta a dentista, que escolheu lidar com a dor procurando respostas.
Essa mesma vontade de saber o que aconteceu é o que move o filho do copiloto Roberto Gonçalves, Adriano Gonçalves. “Eu não preciso de dinheiro de ninguém para viver, eu quero saber é o que aconteceu naquele dia. É difícil, lógico, é uma ferida que ainda está muito aberta, muito exposta. Não tem um dia que a gente não lembre dele, é normal se emocionar”, desabafa Adriano, que também é piloto.
Mais velho de oito irmãos, Adriano explica que a família está vivendo, seguindo adiante, e que, apesar do acidente, não deixou de voar. “Quando eu tô voando, me sinto muito bem, eu sei que tô fazendo uma coisa que ele gostava de mais de fazer e eu também gosto. É como se estivesse mais perto dele”, diz o piloto.
Taciana Guerra lembra com detalhes da despedida
do filho Raul
Foto: Katherine Coutinho/G1
Já a professora Roseane Oliveira não consegue sequer imaginar entrar novamente em um avião após perder a irmã, a engenheira civil Maria da Conceição de Oliveira. “Eu costumava dizer que minha irmã era minha 'marida', fazíamos tudo juntas. Saíamos juntas, éramos unha e carne. Tem hora que eu não acredito que minha irmã não se encontra entre nós, não consigo olhar as fotos dela. Eu ainda não consegui retomar minha vida”, admite.
Os sintomas da perda da irmã surgiram apenas depois. “Nós não tivemos tempo de sofrer, minha mãe precisou de uma cirurgia cardíaca, ficou 60 dias no hospital. Naquele momento, tínhamos que cuidar de mamãe. Agora que nós estamos começando a sofrer. Cinco pessoas da família estão na psicoterapia. Minha mãe já está com consulta marcada para o psiquiatra, porque está perdendo a voz. Já fomos ao otorrino, fizemos exames e foi constatado que é psicológico”, explica Roseane, que acrescenta que a mãe sequer toca no nome da irmã falecida.
O assunto também não é comentado na família de André Luis Pimenta Freitas, 39 anos, mais uma das vítimas do acidente. “Nós não fazemos drama na minha família, não vivemos falando do assunto. É quase como um pacto silencioso, vive-se a vida. A família sobrevive porque não tem alternativa, você tem que enfrentar a realidade. O vácuo, a dor é a mesma, a falta é constante, não tem como repor. É como um membro amputado. Você se acostuma com uma prótese, mas vai sentir sempre falta da perna”, compara Francisco Freitas, empresário e pai de André.
Para quem acha que o tempo alivia as dores, Francisco é enfático. “Você se acomoda, se habitua à dor, mas ela não diminui. Não tenha dúvidas, foi ontem o acidente para a gente. Perguntam como a gente consegue seguir, mas não é como consegue, é que a gente não tem alternativa, você não tem opção. Ele deixou dois filhos, um menino de 11 e uma menina de oito, eles estão estudando, vivendo. Mas a dor vai existir sempre”, afirma o empresário.
Para a família do dentista Bruno Frederico Ribeiro Albuquerque, esse também é um assunto complicado. “Eles não aguentam falar. O Bruno era amigo do Raul, o pai dele foi meu professor na faculdade. Esse foi o segundo filho que eles perderam, a dor é muito grande. A mãe dele está numa depressão profunda, eu queria poder ajudar. Não só a família dele, mas as famílias de forma geral adoeceram, foi um impacto muito grande”, conta Taciana.
A família do piloto, Rivaldo Paurílio Cardoso, também prefere não falar, se reservando o direito ao silêncio. “Ainda temos muitas famílias abaladas. Algumas só precisaram de apoio alguns meses depois. Elas não estão preparadas, sofrem ainda com a dor. Com o passar do tempo e a ausência, vai fragilizando, alguns meses passam e elas vieram buscar tratamento”, explica Geyson Soares, presidente Associação de Parentes e Amigos das Vítimas do Acidente da Noar e irmão de Marcos Ely Soares de Araújo, diretor de engenharia de uma construtora, uma das vítimas.
A luta por respostas é o que tem feito Geyson conseguir falar no irmão sem se emocionar tanto, embora a voz acabe embargando enquanto se lembra de Marcos. “Meu irmão era um líder na família, um orientador, um conselheiro. A dor é muita, principalmente para os meus pais e os filhos dele. Os pais terem que quebrar a ordem natural da vida é muito difícil. Minha mãe chora quase todos os dias, meu pai não pode ouvir falar na história que se desmancha e ele sempre foi uma pessoa forte, que não se abala por nada”, desabafa Geyson.
Marcos Ely deixou dois filhos, um de 13 e outro de 16 anos. “O mais velho está muito abalado, mas é o que segura a dor dentro dele, não coloca para fora. Todo dia 13, o mais novo não consegue ir ao colégio. Não consegue fazer nada, fica depressivo, é nossa luta constante. O mais velho tenta mostrar ao irmão mais novo que é forte , mas de vez em quando vira para a mãe e diz que está com saudade, que precisa de um abraço”, emociona-se Geyson.
Os filhos do caminhoneiro Johnson do Nascimento Pontes também têm dificuldades de seguir em frente, mesmo um ano depois. “Ele deixou dois filhos pequenos, um de sete e outro de 11, e uma esposa. Eles eram muito apegados ao pai, principalmente o mais novo, que tinha pedido ao pai que fosse de carreta e não de avião. Dez dias depois, ele disse que o pai só morreu porque era teimoso. A mãe, todo santo dia, vai ao cemitério, rezar por ele, deixar flores no túmulo”, conta o primo de Johnson, o comerciante Hudson de Oliveira.
Representante da Anac conversa com parentes
de vítimas
Foto: Katherine Coutinho/G1
Reaprendendo a viver
Com dois filhos, uma adolescente de 14 anos e um menino de cinco anos, Michella Kilza se viu totalmente perdida com a morte do marido, supervisor de frota de uma distribuidora de gás, Natã Braga da Silva. “Ele faz muita falta, tudo lá dentro de casa era ele. Eu já trabalhei como professora, mas ele pediu para eu largar o emprego por causa dos filhos. Ele fazia feira, ele pagava tudo. Agora, quem lembra a data para pagar a escola das crianças é minha mãe. Estou reaprendendo tudo. Meu Deus, isso não acaba nunca? É um tormento”, desabafa Michella.
O choque para a família foi muito grande e eles ainda estão ‘costurando os pedaços’, segundo a primeira esposa do supervisor – ele deixou duas famílias. “É um ano como se não tivessem passado os dias, parece que ele morreu ontem e ainda vou enterrá-lo. Não conseguimos fechar o ciclo da vida para seguir. Eu quero trabalhar, quero tentar alguma coisa, mas está muito difícil. Meus filhos não se sentem protegidos, eles estão ainda mais apegados a mim. Eles parecem ter medo de eu sair de casa e acontecer alguma coisa”, explica a viúva.
A educadora aposentada Ana Campelo conviveu 47 anos de sua vida com o engenheiro civil Marcelo Campelo. Desses, sete foram de namoro e noivado, 40 de casamento. “Um ano sem a presença do meu marido mexe muito comigo. Toda essa semana é como se estivesse revivendo, todos os dias, a notícia do acidente. É muito difícil, amanhecer, entardecer, anoitecer e o marido não chegar. É um processo de mexida interior, essa ausência”, conta Ana.
Sem conseguir segurar as lágrimas, a educadora explica que se apegou à fé para reaprender a viver. “Foram 47 anos de muito respeito, amor, dedicação. Eu posso dizer que fui uma pessoa muito feliz por ter podido conviver com ele. Deus está me dando uma força especial, estou conseguindo viver, resolver as coisas que preciso resolver. Minha fé é muito grande, espero um dia reencontrá-lo”, diz a esposa de Marcelo.
A fé também tem ajudado a engenheira química Ângela Pereira de Oliveira Pontes. Ela perdeu a filha, a representante comercial de 25 anos, Débora Santos, no acidente. Com isso, a neta, que morava com ela, foi morar com o pai. “É uma coisa muito complicada, depois do acidente mudou a vida da família inteira. Mudou a rotina de todo mundo, os sentimentos, a esperança. Nós éramos uma família de cinco pessoas, duas pessoas saíram”, pondera Ângela.
Débora estava com casamento marcado para agosto deste ano. “O noivo dela está muito triste ainda. Quando é uma morte por doença, seu instinto vai se acostumando, mas a Débora tinha feitos todos os exames, estavam ótimos. Por mais que você tente lidar, é uma mudança muito radical. Sou espírita e isso tem me ajudado bastante, mas não é fácil mesmo. Minha mãe, de 78 anos, deu uma caída muito grande, não quer mais sair para caminhar. Meu marido chora bastante. De vez em quando surpreendo ele chorando escondido, não quer chorar na minha frente para não me fazer sofrer”, conta a engenheira.
Não tem sido fácil também para a universitária Késia Leite Martins, viúva de Ivanildo Martins dos Santos Filho, gerente financeiro adjunto de um grupo educacional e ministro de louvor da Igreja de Deus, em Ouro Preto, Olinda. “A mãe dele está muito abalada ainda, mas estamos todos tentando seguir com a vida. Estou trabalhando e estudando; o filho dele, Matheus, que está com 19 anos, também está tentando seguir, estudando”, explica Késia.
O acidente vitimou também a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Antônia Fernanda Jalles, o colaborador de vendas de uma empresa de laticínios Breno Márcio Tavares de Faria, a paulista Camila Suficiel Marino e a delegada da Receita Federal do RN, Carla Sueli Barbosa Moreira.
Causas
Para fechar o ciclo e tentar seguir em frente, a maioria das famílias espera, ansiosa, pela resposta final do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), da Aeronáutica, sobre o que aconteceu de fato no acidente e quem são os culpados. “A tristeza da gente é essa, não saber o que aconteceu realmente. De quem é a culpa? Qual a causa do acidente? A gente sabe que foi desgaste, mas e as punições?”, questiona Késia.
De acordo com o Cenipa, uma turbina parou de funcionar logo após a decolagem e as peças foram encaminhadas laboratórios no Brasil e nos Estados Unidos para entender porque uma das palhetas se rompeu, o que causou a parada do motor. Porém, um avião como o LET 410 é projetado para conseguir voar mesmo após a parada de uma turbina e por isso a investigação busca entender também porque os pilotos não conseguiram fazer um pouso de emergência.
O Cenipa ressalta ainda que todos os passos “acontecem de acordo com as orientações da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci). Uma delas é que não devem ser atribuída uma escala de importância, ou pesos, para cada um dos chamados ‘fatores contribuintes’. Tudo aquilo que possa estar relacionado ao acidente gera recomendações de segurança” - até o momento, 15 recomendações de segurança já foram geradas após o acidente.
Auditorias realizadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) na Noar Linhas Aéreas, resultaram na aplicação de 148 autos de infração - sendo 62 contra a própria empresa, 85 para comandantes e um para o diretor de manutenção da companhia aérea. O auto de infração é um documento resultante da fiscalização da Anac feita em uma empresa, que aplica uma penalidade quando é constatada uma irregularidade. De acordo com a assessoria de imprensa da Agência, a empresa aérea pode recorrer de todos os autos e apresentar defesa. Nesse caso específico, os funcionários autuados pela Anac já recorreram e os recursos ainda serão julgados pela junta recursal Agência.
As famílias têm uma reunião marcada com o Cenipa na quarta-feira (18), em que esperam, enfim, ter todas as respostas que faltam para o quebra-cabeças. A Polícia Federal está à frente do inquérito policial, mas não dá detalhes sobre em que passo estão as investigações nem qual o prazo final.
Indenizações
Além da espera por respostas, as famílias aguardam também o recebimento das indenizações após o acidente. Segundo a Associação de Famílias e Amigos das Vítimas do acidente da Noar Linhas Áreas (AFAV Noar), todas as famílias receberam o seguro Responsabilidades do Explorador ou Transportador Aéreo (R.E.T.A.), benefício obrigatório no Brasil de responsabilidade do proprietário da aeronave, cobrindo a vida dos tripulantes e passageiros e os danos materiais e corporais causados a pessoas e bens no solo.
Porém, a indenização, que ficou a cargo do Grupo Segurador Banco do Brasil e Mapfre, saiu apenas para uma das famílias, que a AFAV Noar afirma não poder divulgar qual é. “Tem a questão de confidencialidade. Algumas famílias discordam de valores, de detalhes”, explica Geyson Soares.
Procurado pelo G1, a seguradora informou, por meio de nota, que, "em respeito à privacidade dos familiares das vítimas do voo NOAR 4896, aeronave LET-410", não se proncuniaria sobre os acordos de indenização em andamento.
Memorial
A AFAV Noar está também lutando para a construção de um memorial em homenagem às vítimas do acidente. "Queremos que seja na Avenida Boa Viagem, que é um lugar movimentado, mas não tem nada certo ainda. Seria uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, com o nome de todos os que morreram. Sabemos que nem todos são católicos, mas é uma forma de pedir orações tanto para as famílias quanto para as vítimas", explica Taciana.
O projeto foi encaminhado para a Prefeitura do Recife para análise. "A verba vem do plano de emergência da Noar. Soubemos pela Associação Brasileira de Vítimas de Acidente Aéreos que poderíamos pedir e fomos atrás. Escolhemos três lugares e agora estamos esperando", conta Geyson.