sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Infarto Boni: até que ponto voar aumenta o risco de um problema no coração?

Todos os dias, perto de 180 voos registram uma emergência médica a bordo e, entre eles, oito são obrigados a desviar a rota para pousar no aeroporto mais próximo, Entenda, são casos de emergência médica pra valer e não uma dorzinha de barriga ou algo assim.

De acordo com uma revisão de nada menos do que 317 estudos sobre o tema, realizada pela Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e publicada na revista científica JAMA, um terço dos casos são síncopes ou perda de consciência, e 14,8% têm a ver com sintomas gastrointestinais intensos, envolvendo fortes dores, vômitos e diarreias.

Outros 10% são problemas respiratórios e, finalmente, 7% são emergências cardiovasculares — sendo que somente 0,2% é parada cardiorrespiratória levando à morte súbita.

Apesar disso, de certa maneira podemos soltar os cintos, reclinar a cadeira e relaxar: todos esses números são um nada quando a gente lembra que 107 mil aviões de passageiros decolam diariamente e que um mal-estar assim, mais perigoso, acontece com 130 pessoas, no máximo, entre 1 milhão de passageiros.

O que ocorreu na semana passada com o ex-diretor de televisão José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (foto ao lado), o Boni — por anos alto executivo da Globo e pai do também diretor Boninho —, não deixa de ser um azar daqueles e, ao mesmo tempo, uma sorte danada.

Ele infartou durante um voo dos Estados Unidos para o Brasil e, em vez de aterrissar no Rio de Janeiro, o piloto deu meia-volta para Orlando. Lá, Boni implantou um stent na coronária obstruída e agora está em plena recuperação em Miami.

Foi um azar, porque a proporção de passageiros que infartam nas alturas não é muito diferente daquela de quem sofre um ataque do coração enquanto atravessa uma rua, dirige um veículo, passeia no parque, está sentado no sofá de casa ou fazendo outra coisa qualquer em terra firme. E Boni foi infartar justo em um avião.

Mas ele também teve muita sorte porque a aeronave não tinha decolado há tanto tempo e voltou, com o perdão do trocadilho, voando para desembarcar o passageiro, levado do aeroporto para o hospital.

"A maioria das pessoas que sofrem um infarto morre na primeira hora quando nada é feito", explica Agnaldo Piscopo, diretor do Centro de Treinamento em Emergências Cardiovasculares da SOCESP (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo). Daí eu dizer que Boni foi sortudo.

Ora, viajar de avião não aumenta risco de infarto, mas é capaz de tornar um infarto mais perigoso por razões óbvias: ambulância não chega no céu.

Segundo Piscopo, não conseguir ir para um hospital depressa é a grande ameaça: "Imagine se alguém passa mal enquanto está sobrevoando o Atlântico, sem conseguir pousar nesse intervalo de uma hora", diz o cardiologista.

Se está sentido dor torácica, não embarque


Essa é a primeira recomendação. Ao que se sabe, não foi o caso do diretor global. Segundo o seu relato, ele só sentiu mal-estar quando já estava sobre as nuvens. "No entanto, quem está percebendo qualquer desconforto no peito antes de voar deveria passar por exames cardiológicos, pedindo a um médico a liberação para a viagem", avisa o doutor.

Ele vai além: "Quem sente de fato uma angina, a dor no peito, ou descobre que está com um problema nas coronárias, as artérias do coração, não poderia embarcar em um voo internacional nem mesmo para repatriar, isto é, para voltar para o seu país."

Um voo doméstico seria diferente — em geral, há sempre um aeroporto próximo onde, em último caso, o avião será capaz de pousar dentro daquele intervalo de uma hora. Porém, nas longas distâncias, na hora do aperto a aeronave pode se encontrar lá em cima de um deserto, de uma floresta ou de um oceano, criando uma situação bem mais complicada.

"Infelizmente, já aconteceu de eu aconselhar um paciente que sentiu dor no peito quando estava fora do país para procurar um serviço de emergência por lá", lembra o cardiologista. "Infelizmente, ele insistiu que queria voltar e passar em consulta comigo. Sofreu um infarto enquanto voava. O avião não conseguiu pousar a tempo."

Afinal, então voar não aumenta o risco cardiovascular?


Há quem especule que, se você estava prestes a infartar em terra, a viagem poderá se tornar um empurrãozinho para isso acontecer nas alturas. Por razões que passam pelo estresse do aeroporto — vamos combinar que, cada vez mais, eles estão longe de ser um lugar livre de aborrecimentos — a medo de voar, incluindo o ambiente da cabine.

De fato, a cabine não é o lugar mais favorável para o sistema cardiovascular. "Mas, em relação ao infarto especificamente, isso não faz diferença", informa Piscopo.

Acontece que infarto não é o único problema cardiovascular. A trombose, por exemplo, é outro. E sua ocorrência é favorecida na aeronave, principalmente em voos longos.

Na altitude, começa por aí, o ar é rarefeito. Por isso, a pressão na cabine pode ficar no mínimo razoavelmente bem tolerado pelo corpo humano — algo 30% menor do que a pressão atmosférica no nível do mar. Se não fosse assim, pela enorme diferença entre o lado de dentro e o lado de fora, a fuselagem talvez fosse para o espaço, explodindo.

A questão é que, nesse ambiente pressurizado, há menor disponibilidade de oxigênio. "O ar que respiramos normalmente tem 21% desse gás", informa Piscopo. "Dentro da aeronave, no entanto, encontramos cerca de 19% apenas." Logo, a saturação de oxigênio no sangue também acaba caindo ligeiramente. O organismo saudável, claro, não sente tanto o sufoco.

Mas não para por aí. No avião, o ar é mais seco. A umidade relativa fica em torno de 20%, tornando o sangue mais viscoso. Isso, somado à leve hipóxia — como os médicos chamam a falta de oxigênio para as nossas células exercerem suas funções —, torna a circulação venosa mais lenta.

A receita da encrenca se completa quando o passageiro fica muito tempo sentado e mal tem espaço para mexer as pernas. Todos esses fatores favorecem a formação de trombos, ou coágulos, nas pernas. Eles podem migrar perigosamente para os pulmões, para o coração e até mesmo para o cérebro, causando um AVC.

Só um detalhe: de acordo com a revisão do JAMA, os casos de trombose venosa não se refletem nos números levantados no artigo porque a maioria ocorre de poucas horas até quatro dias depois de a pessoa descer do avião.

Ainda assim, desse ponto de vista, podemos dizer que voar longas distâncias, ainda mais no aperto da classe econômica, sem esticar as pernas por muito tempo, aumenta o risco cardiovascular. E, se a gente for pensar, a própria síncope, que é a emergência número 1 nos voos, pode ser favorecida pela oxigenação menor na aeronave.

O que fazer


As dicas são antigas. Procure se levantar de vez em quando e caminhar um pouco pelo corredor em voos mais longos — esta é uma delas. Vista meias de compressão — é outra. O cardiologista pode receitar, inclusive, uma medicação especial para ser usada à véspera do voo por pacientes que sabidamente têm maior risco de formar trombos.

Beber água com frequência durante a viagem é importante. Aliás, parte dos desmaios tem a ver com desidratação também devido ao clima seco.

Mas muita atenção: segundo Agnaldo Piscopo, o mais fundamental de tudo é, além de apertar o botão para chamar a aeromoça, levantar as mãos. Aprenda que, com esse gesto, você sinaliza que não está chamando um comissário de bordo para pedir algo para comer, nem para tirar dúvidas sobre o voo e, sim, que é uma provável emergência.

"Atualmente, a tripulação está muito bem treinada para prestar atendimento, embora a primeira medida seja perguntar se há algum médico a bordo", diz o cardiologista. Por normas internacionais, há sempre dois kits de primeiros socorros na aerovave.

Um deles é para leigos, caso não haja nenhum profissional de Medicina entre os passageiros. "Ali, há remédios mais simples, como a aspirina para evitar coágulos", exemplifica Piscopo O outro é para ser aberto exclusivamente por médicos, que saberão como empregar o que há ali dentro.

"Muitos voos têm equipamento para fazer até mesmo um eletrocardiograma, apontando para o comandante se dá para esperar ou se ele deve pousar", conta o cardiologista.

O melhor: hoje, a maioria das companhias aéreas contam com assistência de serviços de telemedicina, especialmente em voos de longa duração, para orientar nas emergências mais graves. Afinal, mesmo que um médico se ofereça para ajudar na hora do perrengue, ele pode não ser um cardiologista,. "Aí, nada melhor, até para o próprio profissional, do que um especialista sugerindo o passo-a-passo em um infarto."

Diga-se que, ainda de acordo com o levantamento da JAMA, quase a totalidade dos médicos passageiros não omite a sua profissão, muito menos nega socorro. Era só o que faltava, não é? Afinal, eles fizeram o famoso juramento de Hipócrates e o pai da Medicina não discriminou a altitude.

Via Viva Bem / UOL

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