Aviões grandes, de rotas longas, vão demorar a retornar aos céus. Tudo isso favorece a Airbus, focada em jatos médios e com dinheiro em caixa para investir em inovação.
Toda manhã, o diretor executivo da Airbus, Guillaume Faury, confere os dados de tráfego aéreo global antes de contatar as companhias aéreas, fornecedores e empresas de leasing que mantêm em dia as entregas de aeronaves, mesmo em um período de crise sem precedentes.
Embora os números sejam um material de leitura pouco animador, foi esta abordagem meticulosa que deu a Faury uma visão nítida da indústria da aviação e dos contornos da vida nos tempos depois da pandemia.
Até aqui, está claro o seguinte: Os padrões de viagem mudaram fundamentalmente, do mesmo modo que os requisitos das aeronaves também vão mudar. Os maiores aviões, que fazem rotas longas, serão os últimos a retornar aos céus, já que as transportadoras dão preferência a viagens mais curtas com aeronaves pequenas, ágeis e eficientes em termos de consumo de combustível.
Essas tendências podem favorecer a Airbus, que continua a expandir sua popular família de jatos A320 e cogita ter um modelo movido a hidrogênio para percorrer distâncias menores até 2035.
Grandões fora de moda
A rival Boeing permanece imobilizada, com o recente escanteamento de seu campeão de vendas, o Max 737, após dois acidentes mortais, e as falhas na produção de outro xodó, o Dreamliner 787. A empresa também está tentando lançar um avião de passageiros gigante, o 777X, que está três anos atrasado.
Os compradores das companhias aéreas não estão animados com a ideia de comprar grandes aeronaves que provavelmente terão dificuldades para lotar, particularmente com a probabilidade de as viagens de negócios continuarem reduzidas durante anos.
“Temos muita sorte de as mudanças causadas pela pandemia se encaixarem na linha de produtos atual”, diz Faury, se referindo à cavalaria aérea da Airbus.
A rivalidade Airbus-Boeing há tempos tem sido a história da vantagem de um lado seguida do revide do outro. Mas os rumos dos dois atores do duopólio aéreo global vêm se distinguindo nos últimos anos, divisão que só aumentou na pandemia.
Nos próximos anos, as duas empresas precisam tomar decisões que devem definir os termos da concorrência na próxima década e além, mas têm pontos de partida muito diferentes para isso. A Boeing não pode se dar ao luxo de falhar de novo após um dos piores períodos da sua história.
A Airbus voltou a fazer dinheiro após uma enxurrada de atrasos nas entregas de aeronaves no ano passado. Quando a covid-19 chegou em 2020, a Airbus tinha US$ 16 bilhões em espécie e equivalentes, contra os US$ 10 bilhões da Boeing.
A aposta da Boeing – e a dívida de US$ 65 bi
O motivo: A Airbus manteve seu dinheiro intacto enquanto a Boeing empurrou cerca de US$ 40 bilhões de volta aos acionistas por meio da recompra de ações nos anos anteriores à crise. Isso dá à Airbus uma vantagem, particularmente no mercado de aviões de corredor único, a espinha dorsal da indústria da aviação civil.
O próximo Airbus A321XLR, um modelo de corredor único de longa distância previsto para ser lançado em 2023, já está abocanhando as encomendas de aviões maiores – e a Boeing não abriu a boca para responder.
Enquanto torra recursos para conseguir botar o Max de volta aos céus e quitar sua dívida de US$ 65 bilhões, a Airbus está investindo em projetos que devem redefinir as viagens aéreas. “Dá para dizer que sua sorte é você quem faz”, diz Robert Stallard, analista da Vertical Research Partners. “Foi uma decisão muito premeditada [da Airbus] não gastar esse dinheiro e guardar ele para um aperto – que veio.”
O CEO da Boeing, Dave Calhoun, tem dado a entender que sua empresa pode apresentar a resposta ao A321 dentro de um ano ou dois. Uma pequena equipe de engenheiros continua a trabalhar em futuras aeronaves, segundo fontes que acompanham o tema, incluindo conceitos para jatos de corredor único capazes de acomodar 200 passageiros com capacidade de cruzar o Atlântico Norte. É um nicho onde o maior jato de fuselagem estreita da Airbus vem crescendo em vendas sem ser incomodado pela Boeing.
A Boeing está adotando uma abordagem direta para tornar sua frota mais ambientalmente amigável: a empresa está olhando para os compostos avançados que aliviam o peso das asas e da fuselagem e para os motores que poderiam funcionar com combustíveis sustentáveis em vez de querosene.
A Airbus poderia contra-atacar com melhorias incrementais deste tipo, mas preferiu desenvolver uma aeronave totalmente nova, que pretende lançar até 2035, baseada em propulsão a hidrogênio, tecnologia até aqui não comprovada.
Um avião turboélice de hidrogênio vem ganhando força internamente, segundo pessoas a par da lógica da Airbus que pediram para não serem identificadas, já que os planos são confidenciais. O jato propulsor transportaria 100 passageiros e teria alcance de mil milhas náuticas – aproximadamente a distância de Roma a Dublin.
Os entraves ao plano da Airbus são significativos. A empresa precisa desenvolver uma infraestrutura global imensa para armazenar hidrogênio em aeroportos e abastecer aeronaves ao mesmo tempo que descobre como torná-la acessível o suficiente para que as companhias aéreas abandonem o combustível convencional de aviões.
Cuidado com a postura de 'isso não vai pegar'
O cronograma de desenvolvimento da Airbus significa que a companhia tem apenas sete ou oito anos para dar à luz um ecossistema inteiro, e não falta quem duvide dessa possibilidade. “Não creio que estejamos sequer perto de ter hidrogênio ou energia elétrica a qualquer momento nas aeronaves convencionais, mas sei que a Airbus está trabalhando nestes conceitos com bastante empenho”, diz John Plueger, CEO da financiadora aérea Air Lease. Segundo ele, a abordagem da Boeing representa “um passo muito mais fácil”.
O CEO da Boeing chamou a atenção para a estratégia da rival, sem mencionar a Airbus pelo nome. A Boeing estudou o hidrogênio e concluiu que ele não estaria pronto por décadas, disse Calhoun em uma call com analistas em janeiro.
Faury destaca o papel pioneiro da Airbus em introduzir a chamada tecnologia fly-by-wire nos cockpits das aeronaves civis nos anos 80. O sistema, que dirige um avião usando uma interface eletrônica em vez de elos hidráulicos mais pesados, foi implantado pela primeira vez na família A320.
“A fly-by-wire era vista como algo arriscado, ou muito inovador”, afirma Faury. “Trinta anos depois, ninguém voa sem ela. Temos de ter muito cuidado com a postura ‘isso nunca vai pegar’, porque várias vezes ela se mostrou errada em diversas indústrias.”
A Boeing está particularmente sob pressão para se defender no mercado dos jatos de corredor único de longos trajetos, que estão na mira da A321XLR. O modelo Airbus já acumula mais de 450 encomendas de duas dúzias de clientes, as transportadores aéreas dos EUA American, JetBlue e United.
Qualquer passo em falso da Boeing ou da Airbus também pode abrir espaço para a China entrar no mercado. A fabricante chinesa de aviões Comac desenvolveu um jato de fuselagem estreita chamado C919 para competir com o Max 737 e o A320neo. A empresa planeja entregar sua primeira aeronave até o fim deste ano, o que pode afetar as vendas da Airbus e da Boeing no importante mercado chinês.
Não se sabe se a China surgirá como uma ameaça viável, mas ainda há bastante tempo para ela fazer sua jogada. Uma vez que as aeronaves têm os maiores ciclos de vida útil de qualquer produto industrial, é provável que a próxima batalha pelo domínio seja travada daqui a uma década.
“É um jogo de xadrez que demora dez anos”, diz Stallard, da Vertical Research Partners. “Você mexe sua peça, e daqui a dez anos a jogada está feita.”
Via Exame / Bloomberg