quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Funcionários da Ethiopian Airlines fogem do país escondidos nos aviões da empresa

Conflito entre o governo etíope e a minoria tigré já dura 14 meses.

Aeroporto de Adis Abeba, capital da Etiópia (Foto: Addis Ababa Airport/Divulgação)
Yohannes e Gebremenkel sabiam que poderiam congelar na área de carga a granel dentro do avião Airbus A350 no longo voo da capital da Etiópia para a Bélgica.

Mas os dois técnicos em terra da Ethiopian Airlines, ambos da minoria tigré, achavam que a ameaça das autoridades etíopes não lhes dava outra escolha a não ser se esconder entre caixas de flores frescas.

Os dois homens disseram que parentes haviam sido detidos sob as crescentes leis de emergência que visavam pessoas da etnia tigré. Eles temiam ser os próximos da lista.

As leis foram impostas em novembro enquanto militares do governo etíope travavam uma batalha na região de Tigré, no norte do país, em um conflito amargo que agora se arrasta por 14 meses. O governo nega que leis fossem dirigidas a qualquer grupo específico e recentemente suspendeu o estado de emergência.

Nas primeiras horas de 4 de dezembro, Yohannes e Gebremenkel, ambos de 25 anos, tomaram uma decisão por impulso de subir para a seção de armazenamento de um avião de carga da Ethiopian Airlines que estava pousado em um dos hangares do Aeroporto Internacional de Adis Abeba, à espera do voo matinal para Bruxelas, na Bélgica.

Como técnicos em terra da companhia aérea comercial líder da Etiópia nos últimos cinco anos, eles tinham acesso ao compartimento para fins de inspeção de rotina. Mas, se o esconderijo fosse descoberto, eles enfrentariam um castigo pesado. A CNN mudou os nomes de ambos os homens por razões de segurança.

Durante mais de três horas antes da decolagem, eles se esconderam no frio entre a bagagem da tripulação de cabine, não muito longe do carregamento do avião, composta de caixas carregadas com rosas prontas para serem entregues na Europa. 

Yohannes, que conseguiu asilo na Bélgica, relatou a situação em uma de várias conversas telefônicas com a CNN.  

"Corremos o risco. Nós não tínhamos escolha, não tínhamos escolha, não podíamos viver em Adis Abeba, estávamos sendo tratados como terroristas", disse Yohannes.

Quatro de seus parentes foram mortos, sua noiva está na prisão na região de Afar, na Etiópia, e sua irmã, grávida de cerca de sete meses, foi levada de casa junto com seu mobiliário.

Yohannes acredita que esses assassinatos e detenções foram motivados pela sua etnia tigré e acionados de acordo com as novas leis de emergência da Etiópia.

“Eu não sei onde ela [a noiva] está atualmente”, acrescentou. A CNN não pôde verificar de forma independente as mortes ou prisão de parentes de Yohannes.  

Uma porta-voz do gabinete do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, escreveu em uma declaração enviada por email à CNN que o estado de emergência foi suspenso em 26 de janeiro de 2022.

“Gostaria de observar que o Conselho de Ministros decidiu hoje suspender o Estado de Emergência. Indivíduos apreendidos sob o SOE (Estado de Emergência na sigla em inglês) foram libertados em grande número nas últimas semanas pelo setor de segurança após investigações”, disse a porta-voz Billene Seyoum Woldeyes.

“O SOE nunca foi promulgado para ‘perseguir’ qualquer grupo de pessoas baseado em sua identidade”, continuou.

Os dois entrevistados não são os únicos funcionários da companhia aérea a tentar uma fuga arriscada do seu país nas últimas semanas.

Em 10 de dezembro, pouco antes de Yohannes e Gebremenkel fugirem para a Bélgica, dois outros técnicos da Ethiopian Airlines se esconderam em um avião de passageiros destinado a Washington, nos EUA, segundo confirmou um porta-voz da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA .

Yohannes e Gebremenkel decidiram fugir do Aeroporto Internacional de Adis Abeba depois de relatos de que a segurança era mais frouxa lá após a suspensão de dezenas de guardas da etnia tigré (Foto: Addis Ababa Airport/Divulgação)
Eles se encaixaram no espaço do teto acima dos assentos, de acordo com uma fonte na Ethiopian Airlines envolvida com a investigação interna relativa ao caso.

A viagem do país africano à América duraria mais de 36 horas no total, já que o avião voou de Adis Abeba via Lagos, Nigéria, e Dublin, Irlanda, antes de finalmente pousar no Aeroporto Internacional Dulles em Washington, DC.

Na chegada aos EUA, os indivíduos foram detidos pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA antes de serem posteriormente transferidos para os Serviços Aduaneiros e de Proteção das Fronteiras dos EUA.

A CNN também conversou com vários outros funcionários da etnia tigré da Ethiopian Airlines que fugiram da Etiópia nos últimos meses usando seus empregos de membros da tripulação.

Eles contaram histórias semelhantes de detenções generalizadas de pessoas de sua etnia na Etiópia e de assédio étnico dentro da companhia aérea.

Escondido acima do beliche


A CNN não conseguiu falar diretamente com os dois clandestinos que chegaram a Washington, DC, mas a fonte da Ethiopian Airlines disse que ambos os homens eram também de origem tigré.

Um porta-voz do Serviço de Alfândega disse que, após um exame de identificação e segurança, as autoridades descobriram os dois homens com “cartões de identificação de funcionários da Ethiopian Airlines, e que eles haviam fugido com a intenção de pedir asilo nos Estados Unidos”.

“Os dois homens etíopes estão atualmente alojados numa unidade de detenção federal enquanto se aguarda uma audiência perante um juiz de imigração”, acrescentou a declaração.

“O Serviço de Alfândega emitiu uma sanção civil à Ethiopian Airlines pela violação da segurança e foi informado sobre as medidas com as quais a companhia aérea deve se comprometer para melhorar seu plano de segurança.”

A CNN obteve fotografias do interior do avião Boeing 777 tal como visto durante uma inspeção na sequência da fuga. Em algumas imagens, é possível ver o beliche da tripulação no centro da área de estar do avião. Foi ali que os dois homens supostamente se enfiaram e em seguida ergueram o colchão para ter acesso a um painel de manutenção. 

As imagens indicam que, em seguida, eles cortaram um orifício maior no painel para permitir sua passagem pelo buraco até chegar ao teto do avião. Os dois se esconderam nesse local, pouco acima dos banheiros dos aviões, por mais de um dia e meio.

A CNN mostrou à Boeing as fotografias e um representante da Boeing pediu que os comentários fossem solicitados à Ethiopian Airlines.

A fonte na companhia aérea disse à CNN que acreditava que os clandestinos eram ex-técnicos de manutenção da companhia aérea, o que lhes permitiu saber exatamente onde se esconder dentro do avião para viajar sem serem detectados nem danificar a estrutura da aeronave. 

Segundo a fonte, o fato de eles terem as ferramentas necessárias para cortar o painel sugere que o par tenha planejado a tentativa com antecedência.

No total, 16 técnicos da Ethiopian Airlines podem ter escapado usando meios como embarcar como tripulação de cabine ou se esconder como clandestinos. A CNN não conseguiu verificar este número de forma independente.

Para Yohannes e Gebremenkel, a decisão de fugir foi improvisada. Eles escolheram o primeiro voo programado para um país europeu que estava disponível e tiverem de deixar posses, incluindo os seus telefones celulares, em seus armários. 

Durante todo o voo de sete horas para Bruxelas, eles se sentaram na área de carga do Airbus A350 sem alimentos, sem água, no frio congelante, sem conhecimento dos outros membros da tripulação a bordo.  

“Eu não tinha nem roupas comigo, eu estava usando o uniforme para manutenção. Eu ainda estou vestindo isso”, contou Yohannes.  

“Não temos nenhuma troca aqui, sem roupa, sem sapatos… Tentamos cobrir os pés e as pernas com o que tínhamos naquele momento, como era o turno noturno, no turno noturno temos o casaco da equipe da Ethiopian Airlines”, detalhou Gebremenkel, quem também obteve asilo na Bélgica.

Não era assim que Gebremenkel imaginava que ele iria experimentar a sua primeira viagem para fora da Etiópia. Apesar de trabalhar durante cinco anos na Ethiopian Airlines, ele nunca tinha embarcado num voo internacional. 

Funcionários relatam discriminação


Muitas pessoas deixaram a Etiópia por terra desde que o conflito começou em novembro de 2020. Em meados de dezembro de 2021, mais de 50 mil pessoas já haviam atravessado para o vizinho Sudão, de acordo com os números das Nações Unidas.

No auge do movimento migratório, “mais de 1,000 pessoas em média chegavam todos os dias, sufocando a capacidade de fornecer ajuda”, disse um relatório da ONU.

Campo de refugiados em um Rakuba, Sudão, em foto tirada em agosto. Mais de 50 mil etíopes fugiram para o Sudão desde que o conflito do Tigré começou no final de 2020, segundo a ONU (Foto: Abdulmonam Eassa/Getty Images)
As tentativas de deixar a Etiópia por via aérea por meios legais se tornaram cada vez mais difíceis para as pessoas da etnia tigré, de acordo com os funcionários da Ethiopian Airlines com os quais a CNN falou.

Vários tentaram sair pelos aviões de passageiros do Aeroporto de Bole de Adis Abeba como viajantes legítimos, mas tiveram o acesso negado por motivos étnicos, segundo contam.

Um ex-funcionário disse que havia quatro pontos de verificação no aeroporto nos quais os passageiros tinham seus passaportes verificados antes da partida.  

“Eles verificam o local de nascimento e o nome”, contou à CNN, recordando três de suas próprias tentativas fracassadas de sair. Se a pessoa nasceu em Tigré ou tinha um nome tigré, sua saída do país era negada.

Como resultado, vários funcionários contaram que escaparam trabalhando a bordo de voos internacionais como tripulantes de voo e fugindo quando a aeronave pousava em solo estrangeiro, muitas vezes quando o destino era na Europa ou nos EUA.

A CNN obteve os documentos que confirmam as identidades dos quatro homens que fugiram. As rotas dos dois voos – um para Bruxelas e outro de Adis para o aeroporto de Dulles através de Dublin – também foram confirmados pelo site FlightRadar24. 

A Ethiopian Airlines não respondeu ao pedido da CNN de comentários relativos às viagens dos clandestinos ou às alegações de discriminação contra pessoas de Tigré.

Esta não é a primeira vez que a Ethiopian Airlines foi parar nas manchetes durante o conflito na Etiópia.

Em outubro do ano passado, a CNN revelou que a companhia aérea havia transportado armas entre a Etiópia e a Eritreia no início do conflito, em novembro de 2020, um ato que foi condenado pela comunidade internacional como uma potencial violação do direito da aviação.

A investigação da CNN provocou apelos dos legisladores nos EUA por sanções e investigações sobre a elegibilidade da Etiópia para um lucrativo programa comercial dos EUA. A Etiópia foi expulsa do programa sobre violações dos direitos humanos no início de 2022.

A companhia aérea emitiu várias recusas sobre o transporte de armas. 

“A gente tremia”


Depois que o avião que transportou Yohannes e Gebremenkel desceu em Bruxelas, os dois esperaram por sua chance de chegar ao edifício do terminal.  

“Havia dois caras trabalhando no avião. Um deles descarregava a carga e o outro estava vindo com uma lanterna ao redor do avião”, disse Yohannes. “Daí, quando o primeiro foi descarregar as flores, saltamos para o chão, eu e meu amigo, pulamos, e corremos para o terminal.”  

No interior, os funcionários deram-lhes água e algo para comer, mas Yohannes e Gebremenkel ainda estavam em choque. “Temíamos que eles nos enviassem de volta. Os guardas nos trouxeram chá, mas nós nos ajoelhamos no chão, a gente tremia”, Yohannes acrescentou.  

Lentamente, sentiram um sentido de alívio, talvez pela primeira vez desde que saíram de Adis Abeba.

A decisão de fugir tinha sido motivada, em parte, por relatos de que 38 guardas de segurança de origem tigré tinham sido recentemente suspensos no Aeroporto de Bole, o que significa que a segurança estava mais frouxa do que o habitual, disseram. 

"Estávamos com medo, claro… Felizmente, não fomos encontrados. Se tivéssemos sido encontrados, a punição teria sido dura", comentou Gebremenkel.

Com menos guardas trabalhando, a preocupação maior passou a ser o NISS, o serviço nacional de segurança de informações da Etiópia, que faz buscas em todas as partes do avião antes da partida, explicou Gebremenkel.

A porta-voz do primeiro-ministro etíope, Billene Seyom, não se pronunciou sobre estas alegações. A Ethiopian Airlines não respondeu ao pedido da CNN para comentar a situação de segurança no Aeroporto de Bole.

“A gente tinha algumas ferramentas conosco e tinha medo de que eles nos apanhassem porque eles verificavam tudo, o cara do serviço nacional de segurança da inteligência verifica todos os voos antes da partida”, disse Gebremenkel.  

“Estávamos com medo, claro. Estávamos sentados carregando algumas ferramentas. Talvez eles viessem checar se a gente estava trabalhando [com as ferramentas]. Felizmente, não fomos encontrados. Se tivéssemos sido encontrados, a punição teria sido dura.” 

Yohannes espera que, na Bélgica, encontre um país que “respeite as minhas exigências, o direito à vida”.

Pieter-Jan De Block, seu advogado, confirmou em uma declaração à CNN que os dois clientes tinham “obtido proteção internacional na Bélgica” e que eles haviam sido liberados do centro onde estavam hospedados. 

Para Gebremenkel, o quadro é bom, mas triste. Com a sua família ainda muito longe (os pais estão num campo de refugiados no Sudão) e sem dinheiro ou emprego na Bélgica, a vida não está fácil.

Embora tenha acomodação agora, suas primeiras duas noites após ter sido concedido asilo foram passadas dormindo em uma estação ferroviária.

Ele disse à CNN que espera um dia voltar à Etiópia, desde que o país fosse um lugar onde “as pessoas não são tratadas de forma diferente de acordo com a etnia” – uma esperança que ele sente ainda estar distante.

Por Gianluca Mezzofiore e Katie Polglaseda (CNN)

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