A aeronave está ligada à massa falida da ATA Brasil, que operou por um curto período – entre 2001 e 2006. Agora objeto de disputa judicial movida pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), o avião pousou pela última vez em 22 de outubro de 2005, com plenas condições de seguir em operação. Apesar disso, uma crise financeira da empresa que teria envolvido a alta no valor dos combustíveis e contratos com os Correios encerraram a trajetória de voos do avião.
O Boeing tem história longa, marcada pela transferência entre operadoras estrangeiras. O histórico da aeronave, que tem prefixo PR-GMA, mostra que ela foi encomendada e entregue para a americana Continental Airlines em outubro de 1973, fabricada originalmente como avião de passageiros e voando nessa configuração por 23 anos. Entre os voos operados pela Continental e a transformação em cargueiro, em 1996, o Boeing pertenceu a quatro empresas diferentes, todas americanas. No fim dos anos 1990, foi vendido para a britânica Naabi Limited em valor próximo de U$20 milhões, o elo que o colocaria em solo brasileiro (confira a linha do tempo).
Foi apenas em 2003 que a aeronave arrendada pela recém-fundada ATA Brasil chegou ao País. A chegada não teria sido fácil, conforme consta no histórico disponível no site Boeing 727 Data Center. A primeira tentativa de traslado, em 4 de outubro, registrou problemas na decolagem partida de Porto, em Portugal, e teve de retornar ao aeroporto com pane hidráulica total de seus sistemas, só sendo entregue 15 dias depois, em 19 de outubro daquele ano.
O ex-diretor financeiro da ATA, Fabiano Moura, conta que o avião, de uma série de três Boeings, nunca pertenceu de fato à empresa. Ele explica que as aeronaves foram operadas no Brasil no que na aviação chama leasing, quando a empresa paga um aluguel para utilizar a aeronave. E mesmo assim, nenhum valor chegou a ser pago, já que a ATA encerrou as operações antes do período de carência estabelecido no contrato.
A história da empresa no País se encerrou de forma repentina. Primeiro uma empresa nacional e depois adquirida por controladores estrangeiros do Reino Unido, a ATA acumulou dívidas e decidiu encerrar as atividades, sem pagamento de contratos com fornecedores e com dívidas trabalhistas.
Aeronave de sucesso
Fabiano diz que a escolha da administração pelo modelo se deveu à relação custo-benefício, a mais favorável para o tipo de operação que era destinada. “Eram operações de cargas de 14 a 20 toneladas. Do ponto de vista de eficiência e econômica e operacional essa aeronave era a melhor”, conta. Durante dois anos, o avião abandonado em Goiânia realizou serviços postais noturnos para os Correios e para o Banco Central, em rota que ia de Goiânia para São Paulo, com escala em Brasília. No seu último pouso, todas as manutenções estavam em dias, afirma Fabiano.
O aviador Guilherme de Napoli, membro do Aeroclube de Goiânia, considera que o 727-200 foi o “trijato que marcou a história da Boeing”. Ele destaca que o sucesso de venda se deu tanto pelo desempenho quanto pela operação, resultando na venda de mais de 1.200 unidades (confira o quadro). “É uma aeronave clássica e de barulho inconfundível aos amantes da aviação. Um avião elegante da decolagem ao pouso”, considera ele.
De fato o 727 é apontado como um dos marcos da aviação mundial. O modelo introduziu jatos com grande autonomia no mercado, agregando configuração aerodinâmica atrativa para as companhias. Pelo posicionamento dos motores, que ficam todos na cauda, o trijato conseguiu ter melhor desempenho em aeroportos da época, mais flexível a pistas de curtas distâncias.
Para o piloto Higor Pita, havia potencial para que o Boeing deixado em Goiânia ainda estivesse voando. “Uma das mais belas aeronaves já fabricadas. Se estivesse bem cuidada poderia estar em operação, assim como muitas que voam pelo mundo e inclusive no Brasil”, diz.
Não por acaso, o avião comercial mais antigo em operação no País é um 727-200, o que reforça a defesa de Higor. Reportagem do portal UOL do início deste ano mostrou que a aeronave que pertence à Total Linhas Aéreas está em plena atividade. Entregue em 1976, o Boeing da Total está prestes a completar 45 anos, aniversário marcado para maio deste ano.
119 outros pelo País
Estimativa feita em 2015 era de que 119 aeronaves estavam abandonadas em aeroportos do País. Do total, um programa entre órgãos federais removeu 50 para uso de peças ou outros fins.
A vida útil de um avião pode ultrapassar os 40 anos caso seja assistido por manutenções regulares. O fim da trajetória de uma aeronave pode ser relacionado com a impossibilidade de voar ou com o aumento excessivo do custo de manutenção, explica o aviador Guilherme de Napoli. Quando chega o momento da aposentadoria existem alguns caminhos possíveis, como o desmanche para uso de peças, reciclagem de suas partes ou virar peça decorativa. O abandono, porém, ocorre em alguns casos.
Só da ATA Brasil há pelo menos mais dois aviões abandonados em outros aeroportos. Um Boeing 737-200C da empresa está em Mato Grosso do Sul, e um 737-200 no Ceará. Empresas falidas como a Varig e a Vasp também acumulam aeronaves deixadas decompondo no tempo.
Empresa teve curta trajetória
A história da Atlântico Transportes Aéreos, ou simplesmente ATA Brasil, não deixou muitos registros. O antigo diretor financeiro, Fabiano Moura conta que a ATA teve duas fases de operação. Fundada no Recife em 2001 para táxi aéreo, a empresa foi comprada em 2003 por empresários ingleses, que transferiram a sede para Fortaleza e passaram a operar com a rede postal noturna e de passageiros em aviões de grande porte.
Na nova fase de operação, a empresa foi contratada pelos Correios para distribuição de carga. As principais rotas da empresa cobriam São Paulo, Porto Alegre, Ceara e Brasília, passando por Goiânia. “Eis a razão de o avião estar em Goiânia”, diz Fabiano.
Em 2005, em crise gerada por grandes furacões nos Estados Unidos, o preço do combustível de aviação subiu abruptamente, diz Fabiano. Com valores previstos nos contratos com os Correios, a empresa solicitou reajustes, que não foram atendidos. “Houve uma falta de agilidade e condição de fazer o reajuste nesses contratos”, conta o antigo diretor financeiro.
“Chegamos a entrar com ações judiciais em Brasília e ganhamos, mas os correios não procederam com o reajuste, o que tornou as operações inviáveis e os controladores estrangeiros decidiram por não dar continuidade às operações, porque não havia condições financeiras devido ao custo da operação”, salienta.
Dívidas
Em contato com a Infraero, o órgão diz que o Boeing da ATA está acumulando tarifas aeroportuárias desde o pouso final feito em Goiânia, em 22 de outubro de 2005. Pela tabela de preços atualizados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), cada hora de permanência fixa custa R$ 28, pela sua categoria e peso. Assim, sem levar em consideração as demais taxas que se acresceram ao longo dos anos, em que o Boeing chegou a ser movido pelo aeroporto, o 727-200F tem R$3,8 milhões em dívidas apenas com o acumulado de tarifa de permanência.
Segundo a Infraero, os valores serão cobrados “caso alguma empresa ou pessoa queira retirar a aeronave do aeroporto”. Com a dívida da ATA, a Infraero abriu processo de penhora ainda em abril de 2007, disputa que se arrasta até hoje. No início deste ano, o processo chegou a ter decisão parcial pelo arquivamento em razão de possível prescrição, ato recorrido pela estatal.
As dívidas com as taxas não devem ser herdadas caso a ATA Brasil perca a posse e o avião vá para leilão. Se fossem, o valor dos encargos ultrapassaria em mais de 400 vezes o preço que pode ser atribuído ao avião atualmente. No fim do ano passado, uma aeronave do mesmo modelo, abandonada no Rio Grande do Sul, foi arrematada por R$85 mil por antigos funcionários da Varig, companhia falida em 2010 e que era a antiga proprietária do Boeing em questão. Tanto no caso da aeronave da Varig quanto no da ATA os veículos perderam a capacidade de voar devido ao tempo parados, e o único fim possível é a reciclagem ou uso como atrativo.
Na plataforma Jusbrasil, a empresa aparece respondendo a 66 ações, entre questões trabalhistas, contratuais e processos como o da Infraero. Entre as ações, há uma movida pelo próprio ex-diretor financeiro, que luta na Justiça para receber valores referentes aos trabalhos realizados.
Fim pode ser inspirado em outros casos
O piloto Higor diz que apesar de ser natural que haja o desligamento definitivo de aviões, o fim esperado não é o abandono como no caso de Goiânia. “Claro que existe um processo natural de desgaste e consequentemente o seu desligamento, mas não dessa maneira, não por esses motivos”, considera.
Para Guilherme, o 727 de Goiânia reflete o desleixo com parte da história da aviação nacional. Ele conta que entre os colegas da área, a vontade é de ver o avião em uma exposição ou sendo utilizado para fins de lazer em ponto fixo, sugerindo a possibilidade de transformar a estrutura em um restaurante temático. “Passar por uma boa revitalização e colocar em via pública como ponto turístico também seria uma opção”, acrescenta.
Sobre a possibilidade de transferir a aeronave para outro lugar, a Infraero diz que a guarda do avião cabe ao órgão até que o Poder Judiciário e a Anac decidam o que deverá ser feito. “Cabe destacar que o 727-200F está estacionado em área que não afeta as operações do aeroporto e de outras aeronaves”, destaca à reportagem.
Em Urutaí, a 163 quilômetros de Goiânia, um
avião do mesmo modelo passou por restauração em 2014 para se tornar peça de exposição. De propriedade do odontólogo Ailton Martins, a peça faz parte de coleção pessoal e também não tem condições de voo. A ideia, ainda não concretizada, inclui agregar o avião à área de um restaurante. O exemplar pode ser visto da GO-330 e pesa 35 toneladas.
Em 2011 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o Programa Espaço Livre em convênio com a Infraero, o Ministério da Defesa, a Anac e outros órgãos federais e estaduais. A ação conjunta teve como objetivo remover dos aeroportos brasileiros as aeronaves que estavam sob custódia da Justiça ou que foram apreendidas em processos criminais. A estimativa do programa é que 119 aviões tinham essas características na época.
Do total, o programa conseguiu dar um destino final para 50 delas. Parte foi leiloada, parte desmontada para uso de peças e outras destruídas, como as que pertenciam à Vasp, que ficavam no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Diferente do Boeing de Goiânia, as aeronaves removidas já tinham decisão judicial sob suas posses.