De forma costumeira, são repetidas justificativas de testemunhas daquela época que ‘‘viram’’ ou ‘‘ouviram dizer’’ da movimentação de Saint-Exupéry na capital potiguar.
E não deixaram de surgir algumas absurdidades, como a de um cidadão que certa vez perguntou-me se Saint-Exupéry havia realmente plantado aquele baobá que pode ser visto na rua São José, próximo ao Centro de Velório Morada da Paz, em Lagoa Seca.
Essa casmurrice fio atravessando os anos passando a constar das conversações relativas ao autor do famoso livro ‘‘O Pequeno Príncipe’’, situando Saint-Exupéry como um apaixonado pela capital potiguar e pela constante presença no chamado Canto do Mangue para ‘‘apreciar o pôr-do-sol!’’.
Exageros à parte, desejo participar dessa controvérsia baseado não no ‘‘ouvi dizer’’, mas sim com documentação apropriada onde está plenamente confirmado que Saint-Exupéry nunca esteve em Natal.
Ele nunca foi partícipe dessa fase dourada da aviação comercial francesa, concernente às travessias Dakar-Natal-Dakar (3.200km em cada trecho), ocasiões nas quais os tripulantes enfrentavam condições meteorológicas adversas, o capricho dos ventos alíseos, o frio das madrugadas e a imensidão de céu e água em viagens que consumiam 15 a 20 horas de vôo.
Para tanto, é recomendada a leitura da detalhada publicação francesa ‘‘Répertoire Dês Traversés Aériennes De L’Atlantique Sud Par L’Aéropostale Et Air France (1930-1940)’’, escrita por Pierre Labrousse e publicada em Paris em 1974.
Trata-se de uma publicação idônea que não deixa dúvidas aos assunto em tela. Se tudo passa na vida, a História fica e ela não perdoa os que não lhe entendem a lição.
As travessias do Atlântico Sul
No supracitado ‘‘Répertoire’’, encontramos a listagem das 512 travessias programas (256 em cada sentido: Dakar-Natal ou Natal-Dakar), entretanto somente 4 não foram cumpridas. São as seguintes:
1. Viagem 001-regresso, de 8 para 9 de julho de 1930. Motivo: amerissagem forçada a 700km de Dakar, em conseqüência de vazamento de óleo do motor. Tripulantes e malotes do correio recolhidos pelo navio Phocée (‘‘Aviso’’). Foram voadas 14 horas a partir de Natal.
2. Viagem 035-regresso, em 10 de fevereiro de 1936. Motivo: perdido no oceano depois de 7 horas de vôo, na etapa Natal-Dakar. Perda total da aeronave e dos 5 tripulantes, além de 1 passageiro.
3. Viagem 074-ida, em 7 de dezembro de 1936. Motivo: perdido no oceano depois de 3 horas e 57 minutos de vôo. Perda total da aeronave e dos 5 tripulantes.
4. Viagem 074-regresso. Não foi cumprida devido ao acidente constante na travessia anterior (074-ida). Seria a etapa Natal-Dakar.
A primeira travessia foi efetuada de 12 para 13 de maio de 1930, com o monomotor Late 28, matrícula F-AJNQ, sendo o primeiro vôo realizado para o Brasil com malas postais. Apenas 3 tripulantes: Mermoz (piloto), Dabry (navegador) e Gimié (radiotelegrafista).
A última (512, ou 256-regresso) ocorreu em 2 de julho de 1940, voando o F-AQCX de Natal para Dakar, com 5 tripulantes e tempo de vôo de 15 horas e 51 minutos. A Air France suspendeu as atividades por se encontrar a Europa imersa na 2ª. Guerra Mundial.
O nome de Saint-Exupéry NÃO consta na relação das viagens.
A empresa, que contava com 13 aeronaves, destinava-se unicamente ao transporte de malas postais; em apenas 19 travessias foram incluídos 22 passageiros e esses somente viajaram com autorização expressa do presidente da companhia. É oportuno esclarecer que Saint-Exupéry também não participou dessa relação.
O quadro de pessoal aeronavegante, na época pesquisada (1930-1940) compunha-se de 17 comandantes, 41 copilotos, 12 navegadores, 10 radiotelegrafistas e 15 mecânicos; nesse grupo de 95 tripulantes que operavam no Atlântico Sul, não é encontrado o nome de Saint-Exupéry.
Na historiografia referente aos famosos reides aéreos que tiveram Natal como ponto de apoio (aproximadamente 30 reides registrados), e dos quais tomaram parte aviadores franceses, italianos, portugueses espanhóis, uruguaios, norte-americanos, alemães, etc., não existe qualquer registro acerca da presença de Saint-Exupéry.
Nos livros escritos por Saint-Exupéry não se encontra referência de sua presença no rio Grande do Norte, e a Air France também esclareceu que não há nenhum registro dele em Natal.
O que realmente ocorreu pode ser esclarecido: Saint-Exupéry foi designado para ocupar a gerência da Companhia Latécoère na cidade de Buenos Aires, onde a empresa francesa estava ampliando a sua linha aérea na América do Sul. Deixou a França viajando em navio de grande porte, e chegou à capital portenha em outubro de 1929.
Na ida, o navio fez escalas no Rio de Janeiro e Santos. No rio, ele teve algumas horas para conhecer a cidade, prosseguindo a viagem com destino à Argentina.
Regressando à França, após pouco mais de um ano e também por via marítima, Saint-Exupéry passou pelas mesmas localidades da ida. Tanto na vinda da Europa como no regresso para a França, não ocorreu atracação no porto de Natal.
No livro ‘‘No caminho do avião’’, lançado em Natal em dezembro de 2007 e de autoria do Mestre Luís da Câmara Cascudo, o autor apresenta uma série de reportagens escritas de 1922 a 1933, acerca de 13 reides famosos com passagens por Natal.
Esses registros de Câmara Cascudo constitui importante contribuição para a História Aeronáutica.
E Saint-Exupéry? Nenhum comentário, nenhuma anotação. Caso ele estivesse na capital potiguar, Cascudo não perderia a oportunidade de entrevistar o aviador francês.
As travessias do Atlântico Norte
Os aviadores franceses também participaram das travessias aéreas do Atlântico Norte, existindo registros de 12 viagens de longa duração, consideradas ‘‘experimentais’’ e decorridas nos anos de 1938 e 1939.
As informações constam da publicação ‘‘La Ronde S’Arrête’’, de autoria de George Bouchard, o qual tomou parte todas as viagens.
Um registro importante: na viagem no. 7, transcorrida de 7 a 10 de julho de 1939, Saint-Exupéry viajou da França aos Estados Unidos como passageiro em aeronave de matrícula F-NORD, sob o comando de Guillaumet, uma das ‘‘estrelas’’ da aviação francesa.
Regressou à França (viagem no. 8), deixando os Estados Unidos em 14 de julho de 1939, com a mesma tripulação e novamente na condição de passageiro.
Conclusão da história
‘‘A História não se escreverá senão com o recuar do tempo e com os fatos e documentos’’. Quem assim afirmou foi o nosso imortal ‘‘Pai da Aviação’’, o brasileiro Alberto Santos-Dumont.
Fica apresentada, de maneira reduzida, a réplica baseada em documentação oficiosa, ao contrário de alguns que pretendem justificar suas opiniões com o providencial auxílio do ‘‘ouvi dizer’’.
E o tempo encarrega-se de transmitir às novas gerações disparatados epílogos que não traduzem a realidade. De minha parte, posso afirmar à luz da História e com o apoio na documentação em meu poder, e ainda sem qualquer vacilação, que Antoine de Saint-Exupéry nunca esteve em Natal.
Estando de acordo com o ilustre Prefeito de Natal, Sr. Carlos Eduardo Alves o qual, agindo com prudência e serenidade, decidiu cancelar a idéia da colocação de uma estátua de Saint-Exupéry na recém-criada ‘‘Praça do Pôr-do-sol’’, onde o aviador francês supostamente costumava - segundo alguns apressados historiadores - ‘‘assistir ao crepúsculo vespertino sobre o rio Potengi’’.
Vale mais o conhecido provérbio: ‘‘Há coisas que melhor se dizem, calando’’.
Fonte: Diário de Natal