Naquela noite, a polonesa Helena Malinowska, hoje com 82 anos, estava em casa, em Gdynia, cidade vizinha a Gdansk (Danzig, em alemão). À época, com 12 anos, não sabia bem o que estava acontecendo, mas lembra do medo que tomou conta de toda sua família. Do seu esconderijo de dentro do sofá, ouviu as primeiras explosões. Nas semanas seguintes, com o domínio das tropas de Hitler, a situação se deteriorou. Seguiram-se meses de fome e sofrimento. Privada da adolescência, Helena teve de trabalhar para os nazistas. A única preocupação era manter-se viva.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail com exclusividade ao Terra, Helena conta alguns detalhes da madrugada em que a Polônia foi invadida, e como o domínio nazista durante a Segunda Guerra transformou a rotina dela - e da maioria dos poloneses - em um horror.
Quando jovem, a senhora sentiu algo sobre o clima de guerra em toda a Europa? Seus pais disseram alguma coisa a esse respeito?
Tínhamos só o conhecimento básico de que algo estava errado e de que nossa vida mudaria de alguma forma. Éramos pequenas demais para saber detalhes. É claro que sabíamos algo sobre a Primeira Guerra Mundial, porque meu pai havia combatido no front.
Como era sua rotina antes da invasão?
Os tempos eram felizes antes da guerra, era possível comprar doces e pães nas lojas. Lembro que me divertia brincando com meus amigos na rua. A Polônia tinha conseguido se libertar depois de 123 anos de ocupação - foi em 1918. Assim, até a Segunda Guerra, era um bom lugar, tranquilo. Um lugar feliz.
Como foi a invasão para a senhora? Onde a senhora estava?
Estávamos em casa, porque meus pais haviam ouvido boatos de uma invasão, mas ninguém acreditava que fosse mesmo acontecer. A Primeira Guerra Mundial ainda estava, digamos, muito fresca na memória, e havia sido uma péssima experiência. Por isso meus pais não esperavam que algo parecido voltasse a acontecer em suas vidas. Mas estávamos mentalmente preparados.
Qual foi a sua primeira reação?
Medo. O que mais posso dizer? Um estrondo enorme, explosões. Westerplatte (palco das primeiras batalhas) não ficava assim tão perto de Gdynia, mas ainda assim era quase visível. Como crianças pequenas, tínhamos nosso esconderijo dentro do sofá. As coisas eram assim. Passamos dois dias em casa, sem sair.
A senhora ouviu tiros, explosões? Lembra de alguma coisa a respeito?
O tempo todo. Precisávamos tomar muito cuidado de dia, mas é claro que recebíamos algumas informações informais, de boca a boca, de que explosões aconteceriam em certos lugares, etc. Alguns dos boatos eram verdadeiros. Estávamos assustados, mas éramos cuidadosos, e tínhamos o toque de recolher, o que quer dizer que, à noite (o horário exato era explicado nos regulamentos), o povo polonês era instruído a se manter em casa até o amanhecer. Se não, você poderia ser morto a tiros sem aviso. Além disso, à noite, as janelas precisavam ser cobertas com uma cartolina preta especial e as pessoas eram forçadas a ficar em casa. Podia haver buscas em uma casa a qualquer momento. Tivemos três buscas inesperadas pelos nazistas.
A senhora viu algum combate? Viu os soldados nazistas entrando em sua cidade?
Sim, vi. Eu observava os soldados a cada dia, porque fui forçada a trabalhar para eles na cozinha do exército. Quando a guerra começou, o horário de escola se reduziu muito. Como eu era boa aluna, logo me tornei fluente em alemão e eles me tiraram da escola para trabalhar pesado. E os combates... Sim, (vi) muitas vezes. É difícil falar a respeito. Alguns de meus amigos foram mortos. Não quero tocar muito nesse assunto. Lamento.
Como as coisas mudaram depois de 1° de setembro de 1939? Quais eram as principais dificuldades?
Tudo mudou, não é fácil explicar em poucas palavras. Pode-se escrever um livro todo para explicar o que perdemos. Não tivemos infância depois daquilo. Como eu expliquei, os alemães queriam que as crianças polonesas fossem úteis. Assim, aquelas que podiam trabalhar, trabalhavam. Outras enfrentaram mais dificuldades. Eles nos batiam na escola se errássemos as respostas, se não acertássemos a resposta em alemão. Tínhamos tanto medo que aprendíamos rápido. Não tínhamos vida, não podíamos visitar amigos. Todo mundo estava concentrado em sobreviver, e, por causa do toque de recolher, as pessoas não saíam à noite. Os bares e lojas eram reservados aos alemães. Havia também alguns informantes, traidores, mas eles não tinham vida do lado polonês, ninguém falava com eles. Ocasionalmente eles sofriam represálias - uma morte por uma morte. A vida toda era uma dificuldade. Éramos pobres, estávamos deprimidos. Não tínhamos quase direito algum em nossa própria terra. Por três vezes escapamos quando outras pessoas foram levadas a campos de concentração. Por alguma coincidência inexplicável ou pela ação da providência.
A senhora continuou indo à escola, brincando, praticando esportes?
Escola, um pouco. Mas como eu disse não havia escola para nós, poloneses. E era proibido falar nossa língua nas ruas e lugares públicos.
A vida cotidiana foi se tornando mais difícil durante a guerra?
Sim, a cada dia. Depois de 1944, melhorou um pouco. Pois algumas "notícias" do Ocidente diziam que as coisas seriam mais difíceis para Hitler.
Havia comida suficiente?
Não, nós sonhávamos com comida, mas felizmente minha mãe tinha família fora da cidade e, por isso, no começo, acho que duas vezes, recebemos alguma carne da fazenda. Era proibido, poderíamos ter morrido por isso. Uma vez houve uma revista quando tínhamos carne em casa, e Deus sabe o que aconteceria. O chefe alemão viu e disse à minha mãe, que estava morta de medo : "com esse estoque você pode sobreviver à guerra". Mas quando seu colega ouviu alguma coisa e pediu explicações, o chefe, que tinha patente mais alta, disse: "não vi nada aqui, não precisamos continuar". Bons alemães. Não encontrei muitos deles, mas para dizer a verdade, nem todos eles concordavam com Hitler.
A senhora perdeu familiares no primeiro mês da guerra?
Sim.
Fonte: Moreno Osório (Terra) - Foto: Getty Images