Além do sofrimento causado às famílias das 154 vítimas, a tragédia do voo 1097 da Gol, ocorrida há cinco anos, revelou ao país as falhas no sistema de controle do tráfego aéreo brasileiro, até então desconhecidas pela população, e deflagrou uma crise no setor. Entre os problemas, radares em condições precárias, buracos negros no espaço aéreo e controladores sobrecarregados.
Na avaliação de Edleuzo Cavalcante, que serviu a Força Aérea Brasileira (FAB) como controlador de voo por 23 anos, a situação não mudou desde setembro de 2006. “Estamos com o cenário de uma nova tragédia pronto. Não será surpresa para nenhum de nós [do setor] se acontecer outro acidente daqueles”, diz o ex-militar, hoje presidente da Associação Brasileira dos Controladores do Tráfego Aéreo (ABCTA).
O ex-militar trabalhava no Cindacta 1, em Brasília, e foi expulso da Aeronáutica em abril deste ano por indisciplina. Em junho de 2007, ele e mais 13 controladores do Cindacta 1 foram retirados do controle de tráfego após se envolverem em operações-padrão e manifestações para denunciar as condições de trabalho dos controladores.
Colega de trabalho de Cavalcante, o controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar foi condenado, em abril deste ano, a três anos e quatro meses no regime semiaberto --pena revertida em prestação de serviços comunitários-- por não ter seguido os procedimentos recomendados diante das dificuldades de comunicação com o Legacy.
Já o controlador Jomarcelo Fernandes dos Santos, condenado na Justiça Militar, foi inocentado por ser considerado inapto para o exercício da função. Ele estava havia nove meses no Cindacta 1 e ignorou as indicações em sua tela de controle de que o Legacy estava com o transponder (sistema anticolisão) desligado e voava na contramão.
Além dos controladores, foram condenados os pilotos do jato Legacy, os norte-americanos Jan Paul Paladino e Joseph Lepore, a quatro anos e quatro meses de prisão em regime semiaberto, pena também revertida em prestação de serviços comunitários.
Jomarcelo foi colocado para cumprir serviços burocráticos em Brasília. Já Lucivando trabalha na torre de controle de Fortaleza. “O Jomarcelo é muito tímido. Depois do acidente, sofreu muito por dentro, não gosta de falar sobre o assunto. Já o Lucivando era apaixonado pelo tráfego aéreo, é um excelente profissional. E hoje é apontado pela morte de 154 pessoas.”
Cinco anos depois, novas denúncias
Em depoimento à Justiça, o sargento Wellington Rodrigues afirmou que o Jomarcelo foi homologado como controlador praticamente à força, após ser reprovado várias vezes nos exames. O sargento disse ainda que a imposição em colocá-lo como função era fruto do número reduzido de controladores.
Cinco anos depois, a situação se repete. A reportagem do UOL Notícias teve acesso a um documento de circulação interna no Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes da Aeronáutica), emitido em 12 de julho deste ano. Nele, o sargento Eurípedes Barsanulfo Marques, controlador e instrutor do Cindacta 1, denuncia que novamente militares sem qualificação estão sendo colocados no controle do tráfego.
“Como controlador e instrutor deste centro pude observar a péssima qualidade do processo de instrução e principalmente a concessão de habilitação técnica de controlador a pessoas sem o mínimo de conhecimento e capacidade para exercitar esta atividade tão complexa”, diz o sargento no documento.
Em seguida, ele cita o caso de dois militares que “foram considerados inaptos por todos os instrutores do curso ATM-016/2010” e que foram habilitados como controladores após passarem por um “processo de instrução onde se busca unicamente conceder habilitação de forma rápida, sem que o mínimo desempenho seja atingido materialmente”.
Marques encerra o relatório relembrando o caso do Jomarcelo: “essa situação é muito grave e também parecida a outra vivenciada no âmbito deste centro em 2006, cujo resultado todos nós conhecemos”, finaliza, relembrando a tragédia com o voo da Gol.
Controladores cada vez mais novos
Edleuzo Cavalcante diz que os exemplos citados no documento não são casos isolados. “Em 2003, no Cindcta 1, a proporção de controladores com mais de cinco anos de experiência era de 76%. Em 2007, caiu para 67%. Hoje, são 53%”, afirma.
Na avaliação do ex-controlador, o quadro se explica pela pressão para efetivar os controladores e pela falta de atrativos para os militares continuarem na função. Segundo ele, o salário inicial de um controlador é de R$ 2.500 e, em muitos casos, militares com mais de 20 anos na função ganham menos do que R$ 4.500.
“Depois de um tempo, ninguém quer continuar como controlador. Não há atrativos. É um trabalho estressante por natureza. É muito comum os controladores sofrerem com insônia, gastrite, taquicardia. Então é preciso suprir a demanda dos que saem de alguma maneira. Como não há controlador desempregado, já que a Aeronáutica tem o monopólio do setor, eles são obrigados a colocar controladores sem qualificação”, diz.
Controlador denuncia
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Relatório interno encaminhado ao Cenipa em 12 de julho deste ano
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Segundo dados da associação, o tempo médio de trabalho para cada controlador era de 120 a 140 horas mensais em 2007. Hoje, subiu para 165 horas. O número de profissionais nos quatro Cindactas (Brasília, Recife, Manaus e Curitiba) subiu de 2.900 em 2006 para os 3.100 atuais –do total, 26% são trabalhadores civis.
O aumento (6,9%) é bem inferior ao aumento no volume do tráfego aéreo no Brasil nos últimos cinco anos (cerca de 50%).
Para Cavalcante, até a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 seria necessário criar cerca de 2.000 controladores com experiência para desafogar o controle do tráfego no Brasil. “Precisávamos dessa quantidade para hoje, já que eles precisam de três anos de experiência, pelo menos”, afirma.
Desmilitarização
Após o acidente de 2006, o governo e o Congresso debateram a necessidade de desmilitarizar o controle do tráfego aéreo, uma das principais reivindicações das entidades do setor. O Brasil é um dos poucos países do mundo que mantêm o controle do tráfego nas mãos dos militares, ao lado de Eritréia, Togo e Gabão.
Após o acidente entre o Boeing da Gol e o Legacy, a Argentina decidiu desmilitarizar o setor. “É um serviço público essencial. Tem que haver transparência. Controle de tráfego aéreo é diferente de controle do espaço aéreo, e não tem nada a ver com segurança nacional. Mas no Brasil ninguém mexe nisso. Eles acham que é mexer em um formigueiro”, afirma Cavalcante.
A assessoria da FAB foi contatada pelo UOL Notícias, mas, até o fechamento da reportagem, disse que não poderia responder às afirmações do ex-controlador.
Fonte: Guilherme Balza (UOL Notícias)