A expectativa da empresa é que preço caia à medida que sua tecnologia amadureça.
Cessna 208 da Reliable Robotics no Aeroporto de San Martin, na Califórnia, em 27 de fevereiro (Foto: Kelsey McClellan/Bloomberg Businessweek) |
Não há nada de especial no avião de carga de 11,5m de comprimento que sobrevoou o norte da Califórnia no mês passado. Já o interior do Cessna 208 passou por uma reforma digna de filme de ficção científica, e o resultado é um avião que taxia, decola, manobra no ar e pousa sem piloto.
Maquinário e software que permitem à nave voar sozinha vêm de uma startup chamada Reliable Robotics, que passou quatro anos trabalhando em voos autônomos. A empresa tem ao todo dois aviões, mas o plano de longo prazo é encher os céus de aeronaves sem piloto transportando carga e passageiros.
A história da Reliable tem início na hesitação de seu cofundador e CEO, Robert Rose. Sua tentativa de virar piloto na faculdade não decolou por falta de dinheiro, mas em 2016 ele já tinha ganhado o suficiente para tentar mais uma vez a sorte no cockpit. Rose, que fez carreira construindo carros autônomos e naves espaciais para a Tesla e a SpaceX, esperava que os aviões tivessem se modernizado desde a última vez em que pôs os pés numa cabine. Mas a que ele pegou tinha tecnologia de décadas de idade. O impacto de quanto do voo ainda dependia de um piloto humano atingiu Rose em pleno ar, enquanto ele contemplava suas habilidades enferrujadas e sua mortalidade.
“A primeira coisa em que pensei foi: ‘Nossa mãe, é loucura uma pessoa privada ter permissão de fazer isso ’”, diz. “Você tem toda essa navegação de que precisa cuidar e todas as comunicações que tem de fazer com outros aviões, além de receber instruções do controle de tráfego aéreo. São camadas e mais camadas de coisas. E esse tempo todo você está a um erro de um acidente fatal. Eu só pensava: "Como pode isso?"
Rose fundou a Reliable em 2017 ao lado de Juerg Frefel, antigo colega da SpaceX. A dupla abriu uma loja na garagem de Rose em Los Altos (Califórnia) planejando aprimorar a tecnologia de piloto automático. Os dois esperavam explorar os sistemas mecânicos e de posicionamento disponíveis na maioria dos aviões, comprar alguns sensores prontos para uso e conectar tudo a um software inteligente capaz de tomar os tipos de decisões normalmente esperadas dos pilotos. A cada etapa, porém, eles descobriram que o equipamento existente à venda não era resistente o bastante para o serviço. “Simplesmente não dava para ter uma discussão séria sobre tirar o humano do avião com essas peças”, diz Rose. “Isso significava que tínhamos de construir.”
Hoje, a Reliable tem um escritório em Mountain View (Califórnia), onde alguns engenheiros escrevem software e outros fabricam os componentes eletrônicos, atuadores e outras máquinas que precisam ser instaladas em um avião. O trabalho prático ocorre no hangar da empresa nas proximidades do Aeroporto de San Martin. Durante uma visita recente, pela primeira vez Rose e Frefel revelaram o funcionamento interno de seu avião a um repórter, abrindo a lateral de seu Cessna para mostrar uma cabine de aeronave repleta de computadores e GPSs de alta precisão parafusados no chão. Estes se comunicam com dispositivos mecânicos personalizados que controlam os cabos conectados ao elevador, leme, flaps e acelerador da aeronave. Como o avião precisa de backups caso algo falhe, há duplicatas de quase todas as peças.
É típico, claro, que os aviões tenham um sistema de piloto automático. Pilotos de grandes jatos com passageiros geralmente fazem a decolagem e, em seguida, deixam o software controlar o voo e a aterrissagem. Em aviões menores, o piloto pode decolar, planejar o trajeto e, em seguida, fazer o sistema de piloto automático cuidar dos ajustes necessários para ir do ponto A ao ponto B. Os pilotos, no entanto, precisam cuidar das comunicações com o controle de tráfego aéreo e seus colegas no ar – além de entrar em cena se algo incomum acontecer. Todos os sistemas de piloto automático foram projetados tendo em mente a segurança do piloto; para Rose e Frefel, construir um sistema que tivesse autonomia total mais parecia lidar com um problema totalmente diferente do que dar um último passo incremental.
Falhas humanas são responsáveis por mais de 70% dos acidentes fatais, segundo dados federais e comerciais. A tese da Reliable, compartilhada por outros do setor aéreo, é que os computadores conseguem reagir com mais rapidez e segurança do que as pessoas durante uma emergência. Pilotos são treinados para avaliar um problema e passar por um checklist de solução de problemas, o que às vezes requer que eles se embananem com um manual físico durante o vôo, até achar a página certa e seguir as instruções para qualquer problema que tenham encontrado no ar. O software, que usa sensores e chips de computador para descobrir o problema, deve ser capaz de entrar em ação e resolvê-lo na hora.
A tecnologia da Reliable está muito, muito longe de passar por esse tipo de provação. Por ora, um piloto de testes está sentado dentro de seu avião para lidar com emergências – e também deixar a Administração Federal de Aviação (Federal Aviation Administration – FAA, na sigla em inglês) feliz. As comunicações com o controle de tráfego aéreo são feitas por um piloto remoto na sede da empresa. Este piloto libera o avião para a decolagem com a torre, fornece uma rota à nave e, em seguida, senta-se e observa para se certificar de que tudo corra conforme o planejado. Em seus voos de teste em fevereiro, a Reliable provou pela primeira vez que essa operação remota de longa distância funcionava.
O protótipo Cessna pertence à FedEx, e a Reliable pretende começar a voar rotas de carga em áreas remotas, para começar. A tese é que a frota de pequenos aviões da FedEx poderia ser operada com mais frequência e a um custo menor se a empresa não precisasse transportar pilotos pelo país e lidar com os regulamentos de segurança que limitam seu tempo de voo. Em vez de três pilotos fazendo três viagens de ida e volta em um dia, um único piloto remoto poderia supervisionar as viagens de todas as aeronaves por trás de um computador, diz Rose. (O exército americano já opera drones de modo parecido.)
Os sistemas da Reliable custam seis dígitos e a instalação demora semanas. A empresa espera que o preço caia à medida que sua tecnologia amadureça e planeja equipar e operar aviões para clientes e, possivelmente, operar sua própria frota. Também quer passar de rotas remotas para envio de aviões de carga para sobrevoar cidades, e até pegar pessoas. Os passageiros poderiam usar a vasta rede de aeroportos de pequeno porte dos EUA e embarcar quase como se tivessem um jatinho particular. “Vai levar pelo menos 10 anos para tornar essa visão realista, mas por que as pessoas comuns não podem simplesmente ir ao aeroporto, passar o cartão de crédito, entrar em um avião e fazer o treco voar sozinho?”, pergunta Rose.
Ele espera que um dia o controle de missão da Reliable seja executado por pessoas treinadas para o trabalho, de modo muito semelhante ao que faz hoje um controlador de tráfego aéreo, em vez de pilotos. É uma versão menos romântica de voar do que aquela que atrai a maioria das pessoas para o trabalho, embora alguns pilotos admitam que há uma realidade prática em jogo. “Um avião autônomo é ótimo”, diz Dezso Molnar, projetista e piloto de aeronaves. “Pilotar um avião não é difícil, mas gerenciar todas as regras que podem fazer com que você vá parar na cadeia é o desafio que a maioria das pessoas acha apavorante.”
Antes de poder voar aviões autônomos em qualquer escala, a Reliable precisa provar à FAA que sua tecnologia é capaz de lidar com todos os tipos de emergências por meio de uma combinação de simulações de computador e de voos. Também precisa fazer a agência aceitar o uso de pilotos remotos, ideia que tem lá seus céticos. “Pilotos remotos não têm compreensão contextual quando problemas acontecem, e muitas vezes podem causar tantos problemas quantos conseguem resolver”, afirma Mark Moore, especialista aeroespacial que passou décadas na Nasa e, mais tarde, trabalhou na tecnologia de táxis voadores da Uber. “Além disso, os instintos de sobrevivência (dos pilotos) não estão em jogo nesta situação.”
A FAA está sob pressão para cuidar não só da tecnologia da Reliable, mas também de um número cada vez maior de novas aeronaves. Dezenas de startups surgiram nos últimos cinco anos, oferecendo aviões elétricos que decolam e aterrissam na vertical e tipos novos de foguetes, entre outros veículos. No reino robótico, os concorrentes da Reliable incluem a Xwing e a Merlin Labs. Em nota, a agência disse estar à altura do desafio. “A FAA tem muitas iniciativas em andamento para garantir que as capacidades de nossa força de trabalho técnica se adaptem ao sistema aeroespacial em constante mudança”, disse a porta-voz do órgão, Crystal Essiaw.
No futuro próximo, a Reliable – que arrecadou mais de US$ 30 milhões – se concentrará em realizar seus testes autônomos e em coletar dados para apresentar ao governo. A empresa também precisa diminuir custo e peso de seus equipamentos. Há outros detalhes para resolver, como a construção de sistemas de visão computadorizada que permitirão aos aviões se dirigir do hangar à pista e voltar.
Apesar desses obstáculos, Rose espera estar fazendo voos de carga até o fim de 2022 e considera inevitável que, um dia, aviões robóticos sejam algo natural. “Antes da covid, estávamos deslocando mais coisas e mais gente pelo ar do que nunca”, diz ele. “Creio que, à medida que os custos caiam, graças a essa tecnologia, você vai ver de quatro a cinco vezes mais voos por dia.”
Por Ashlee Vance (Bloomberg Businessweek)
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