HISTÓRIAS DA GUERRA FRIA
Torre de vigilância da Stasi: polícia secreta era temida na Alemanha Oriental (Foto: Getty Images) |
O primeiro encontro oficial de Shenja, então uma estudante de 17 anos, com um agente da polícia secreta da Alemanha Oriental ocorreu em fevereiro de 1981.
Documentos do antigo Ministério para a Segurança do Estado (MfS), popularmente conhecido como Stasi, ilustram um evento planejado em detalhes e um lado pouco debatido da temida organização: o aliciamento de menores de idade como colaboradores informais.
Naquela reunião, a Stasi recrutou a adolescente. Vinda de uma família "disfuncional" na visão da ditadura do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), Shenja era um alvo interessante. Sua mãe, a senhora Beden, constava nos arquivos da Stasi desde 1961 como uma "fugitiva da República" por ter se mudado de Rostock para Hamburgo antes da construção do muro de Berlim.
Em 1981, as duas estavam separadas pelo regime havia cerca de oito anos. Esse desfecho começou quando Beden foi proibida de voltar a Hamburgo após uma viagem a Rostock. Ao longo de alguns anos, ela tentou deixar o país socialista novamente, inclusive pedindo um visto de saída. Seu comportamento, considerado um risco para ordem social, rendeu-lhe 10 meses na prisão, em 1973, e a perda da guarda da filha, enviada a um orfanato.
Beden foi deportada para a Alemanha Ocidental em 1975, sem Shenja e o filho nascido cerca de um ano antes. Do exterior, ela tentou resgatar as crianças, enquanto a Stasi reduziu ao máximo o seu contato com a garota. Até que, em 1980, o nome de Shenja apareceu em um panfleto sobre violações de direitos humanos em uma reunião da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em Madri, o que levou a Stasi a contatar a estudante.
Shenja não era uma raridade na estrutura da Stasi. Pelo contrário, em seus 40 anos de existência, a polícia secreta aliciou informalmente milhares de adolescentes para se infiltrar em áreas hostis ao regime do SED, como grupos punks ou com religiosos oposicionistas. Esses jovens, por outro lado, só poderiam ser recrutados de forma oficial quando adultos. Logo, termos de compromisso assinados por menores não eram legais.
A maioria deles tinha por volta de 16 e 17 anos. Há poucos estudos específicos sobre a quantidade de menores aliciados, mas o historiador Helmut Müller-Enbergs compartilha a hipótese de que tratavam-se de 0,8% dos colaboradores não oficiais. Ou seja, cerca de 1,3 mil em 1989.
"Jovens de 17 anos eram frequentemente recrutados antes do serviço militar para obterem informações de soldados no quartel. Os de 15/16 anos costumavam estar em ambientes alternativos (góticos, punks, skinheads etc.), então a Stasi queria dados sobre essas redes", explica à BBC News Brasil Müller-Enbergs, professor-adjunto do Departamento de História da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU) em Odense, na Dinamarca.
Cidadãos ainda mais jovens chegaram a ser recrutados. Em alguns casos, a Stasi queria testá-los para carreiras oficiais na entidade. Primeiro, explica Jens Gieseke, chefe do departamento de Comunismo e Sociedade no Centro Leibniz para História Contemporânea, em Potsdam, a organização buscava estabelecer "uma base de confiança" entre o oficial de cada caso e os candidatos para "convencê-los (ou pressioná-los)" a cooperar e influenciá-los politicamente. "Mas não havia lavagem cerebral. Eles não usavam técnicas psicológicas tão avançadas."
O caso de Shenja é uma das milhares de histórias preservadas pelo Arquivo de Registros da Stasi, agência que foi responsável durante 31 anos por manter os documentos da polícia secreta e abri-los ao público. Desde 21 de junho, o acervo passou a integrar os arquivos federais, mas os cidadãos continuam a ter acesso aos dados.
Prática restrita
Dissolvida em janeiro de 1990 durante a reunificação da Alemanha, a Stasi foi construída sob orientação direta da União Soviética para controlar a vida dos alemães orientais, oprimir opositores e dar suporte ao SED. Na época de seu seu fechamento, tinha 189 mil informantes não oficiais (1 para cada 90 habitantes da Alemanha Oriental) e 91 mil funcionários em tempo integral.
O alto escalão da polícia secreta, segundo os especialistas, não apenas sabia do aliciamento de menores, como o promovia até certo ponto. Por outro lado, não parecia existir uma estratégia ampla ou, como afirma Gieseke, menores denunciando pais e parentes.
"Ao contrário dessa imagem de penetração total de famílias como unidades sociais básicas, alimentadas por fantasias orwellianas, as famílias eram portos intactos de relações de confiança na Alemanha Oriental, ao menos no período pós-década de 1950", diz.
Apesar de não ser insignificante, o uso de menores pela Stasi nunca se tornou amplo. Entre os motivos estariam a falta de popularidade da prática entre os funcionários (muitos dos quais tinham filhos), a ilegalidade desse tipo de conduta, e o fato de que os informantes precisavam coletar informações políticas complexas, um tipo de compreensão sofisticada que adolescentes ainda não haviam desenvolvido por completo.
Não há, ao menos por hora, muitos detalhes sobre a percepção dos alemães orientais a respeito dessa prática. O cenário mais provável é que seriam limitadas as chances de a população saber sobre os aliciamentos. Segundo Gieseke, ainda que houvesse esse conhecimento, discussões sobre o tema ficariam restritas a ambientes privados.
Antiga sede da Stasi em Berlim é hoje um centro visitação e pesquisa chamado 'campus para a democracia' (Foto: BSTU) |
Espiões adolescentes
Ao infiltrar-se em uma demografia mais jovem, a polícia secreta queria uma porta a grupos aos quais teria dificuldade de acessar de outras formas. O foco, em geral, era obter dados sobre as atividades políticas de colegas de classe uma vez que colaboradores adolescentes teriam melhores condições de interagir com esses alvos do que professores ou adultos.
A Stasi utilizava diversas estratégias para abordar esses jovens, incluindo a manipulação de candidatos de "famílias instáveis" ou se estabeleciam como "amigos" mais velhos e "solidários". Antes dos recrutamentos, a organização também avaliava os possíveis pontos fracos de informantes e considerava se os alvos estavam prontos para trabalhar com a polícia secreta. Eles ainda focavam em fãs de espionagem e jovens envolvidos em crimes, que poderiam ser forçados a colaborar para evitar punições.
Depois de recrutados, esses jovens não eram pressionados ao extremo. Os informantes geralmente se reuniam com seus oficiais em uma base regular para relatar e receber instruções. "Mas a cooperação era 'bem frágil'. Em um grande número de casos, os agentes não conseguiram estabelecer um contato estável e os supostos informantes tentaram escapar da pressão ou compartilharam seu segredo com familiares ou amigos. Nesse caso, a Stasi geralmente precisava encerrar a cooperação e encerrar o processo", diz Gieseke.
Construção do muro de Berlim: a Stasi existiu por quatro décadas, quando a Alemanha era dividida em Oriental, de influência comunista, e Ocidental, capitalista (Foto: Getty Images) |
Registros falhos
Hoje, é difícil identificar esses menores colaboradores com base nos arquivos da Stasi. Como a organização não definiu uma provisão especial para registrá-los, havia diferentes formas de fazê-lo internamente entre as burocracias locais. Alguns se referiram a esses indivíduos como "pessoas de contato", outros como "menores precursores".
Ambas as nomenclaturas borram as estáticas oficiais, pois esses registros não podem ser conclusivamente estabelecidos como de menores colaboradores. Para Gieseke, essa prática pode ter sido adotada para turvar os dados, mas "não há indícios de que o número 'real' de informantes menores seja significativamente maior".
Na Alemanha reunificada, o acesso a esses casos depende da permissão do ex-informante. Por outro lado, os arquivos podem ser acessados se os colaboradores tiverem cooperado com a polícia secreta depois dos 18 anos.
Em alguns casos, ex-informantes menores de idade vieram a público com suas histórias. Angela Marquardt, uma ativista política de esquerda e punk na Alemanha unificada, escreveu um livro sobre como a Stasi a abordou ainda adolescente.
No caso de Shenja, a sua colaboração com a polícia secreta durou até 1987. Como estudante em Dresden e Jena, passou informações sobre colegas de universidade para a Stasi. Mas sua colaboração foi encerrada após seu marido tornar-se um funcionário em tempo integral do MfS.
Os documentos mostram que Shenja ficou surpresa e triste com seu o destino. No último encontro com a Stasi, ganhou apenas 200 marcos como agradecimento.
Via BBC