Giselle passou meses sem ver televisão, ouvir rádio e só voltou ao trabalho por necessidade. "O provedor não estava mais aqui e as contas não paravam de chegar", disse ela (leia a íntegra de relatos da tragédia abaixo). "Minha vida nunca mais foi tão prazerosa, perdi o entusiasmo e o comprometimento no trabalho."
Na noite do dia 17 de julho de 2007, a aeronave da companhia aérea TAM - que havia decolado de Porto Alegre (RS) - não conseguiu parar ao pousar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, atravessou a pista e colidiu com um prédio da própria empresa. Com a explosão, todos que estavam a bordo e algumas pessoas que trabalhavam no edíficio ou circulavam próximo ao local morreram.
As investigações sobre a causa do acidente ainda não foram concluídas, mas figuram entre as hipóteses a manete (alavancas que controlam a aceleração do avião) do avião estar erroneamente em posição de aceleração e a inadequação da pista de Congonhas para pousos em dias de chuva. No ano passado, dez pessoas foram indiciadas como responsáveis pelo acidente, entre elas ex-autoridades do setor aéreo e representantes da TAM e da Aribus. O inquérito foi encaminhado ao Ministério Público Estadual.
O sentimento de Giselle é comum para quem passou por uma situação tão traumática. "Um acidente aéreo envolve resultados inesperados, é rápido para acontecer e demorado na recuperação", disse Maria Helena Pereira Franco, doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora responsável do 4 Estações Instituto de Psicologia. "Situações como essa são como atentados terroristas ou tsunamis: mudam para sempre a vida das pessoas."
Luiz Carlos da Pieve sentiu na pele essa mudança. No final daquela tarde de julho, ele perdeu a filha Lisiane Cirlei da Pieve Schubert e o genro Sandro Schubert. Até hoje não consegue falar sobre o assunto sem se emocionar. "As pessoas costumam dizer que vai melhorar, mas a gente não esquece nunca mais", comentou o empresário, com a voz embargada. Lisiane e Sandro deixaram um filho, Roger, hoje com 7 anos. Dois anos depois do acidente, o garoto não pede mais pela volta dos pais. "Ele quer saber do que gostavam, com quem se parece", disse Cibele Schubert Ledermann, tia e madrinha de Roger.
Para que o fantasma de uma tragédia como essa não assombre o resto da vida de uma criança, é preciso cuidado na hora de abordar o assunto. "O ideal é que a notícia seja dada por um adulto conhecido e querido pela criança", disse a psicóloga Maria Helena. "A verdade deve ser dita apenas na medida daquilo que ela entender e, acima de tudo, não deve mentir ou fingir que nada aconteceu", explica a especialista.
Assim como as crianças, os idosos também precisam ter uma atenção especial para lidar com esses traumas. É o caso da avó materna de Paula Masseran de Arruda Xavier, que estava na aeronave que colidiu com o prédio da TAM Express, na zona sul de São Paulo. "O acidente abalou demais a saúde dos meus pais. Minha mãe tem tido problemas sérios por não ser normal a avó ver a neta morrer. Geralmente é o inverso. Ela vai precisar de assistência médica por muito tempo", declara Silvia Xavier, mãe de Paula.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão atinge 20% da população mundial e até 2020 pode se tornar a segunda maior causa de incapacidade e perda de qualidade de vida. Para não deixar se abater pela tristeza profunda, pessoas envolvidas em grandes tragédias devem procurar um especialista rapidamente. "A esperança é de que exista uma recuperação. Se não for acompanhada por um especialista, essa recuperação pode ser muito longa e levar ao adoecimento", disse José Toufic Thomé, coordenador do departamento de psicoterapia da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
A argentina Carolina Camozzi já fazia terapia antes de acontecer o acidente que tirou a vida de seu irmão, Alejandro, e continuou o tratamento com a mesma especialista. "Naquele momento, não tinha desejo de falar com quem não conhecia. Agora, tenho altos e baixos o tempo todo. Às vezes, não consigo fazer nada. Às vezes, faço tudo. É como ter duas vidas paralelas: uma normal e outra sem meu irmão", explica.
Carolina costuma participar das reuniões da Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo TAMJJ3054 (Afavitam), em São Paulo, e aproveita as viagens para visitar sua sobrinha. "Cada vez que a vejo, me traz muita felicidade. Isso faz bem, mas ao mesmo tempo é difícil já que minha sobrinha tem o mesmo rosto do meu irmão", diz.
Para lidar com a perda, algumas pessoas mudam de casa como forma de tentar fugir das lembranças. Nem sempre funciona. Silvia Xavier quis sair da residência onde morava com o marido e os três filhos. Paula, a mais velha, morreu no acidente. "Queria muito sair da casa onde morávamos, mas já vi que não resolve. Você leva junto, não muda. Acabei fazendo um quarto em homenagem a Paula". No quarto estão retratos de diversas fases da vida da jovem, homenagens feitas por amigos dela e ainda a cama onde ela dormia. É lá que seu marido, Archelau, gosta de ficar para se sentir próximo da filha, que completaria 24 anos no dia em que foi enterrada.
A recuperação de quem passa por uma tragédia como essa varia. Alguns se recuperam rapidamente. Para outros, é só o começo do sofrimento. A escritora Mariana Caltabiano perdeu seus dois irmãos, João Francisco e Pedro Augusto, no acidente. Cerca de um ano e meio depois, seu pai, Bruno Caltabiano, fundador de um dos principais grupos de revenda de automóveis do País, morreu por causa de problemas cardíacos e depressão. "Procuro me cercar de pessoas que gosto, fazer coisas que gosto e dou muita importância a cada minuto da minha vida. É o caminho que busquei", conta Mariana. "Minha mãe e eu só conseguimos tocar nossas vidas porque não temos escolha. Agora ela está melhor, mas muito abalada. Não se conforma. Da minha família, só sobramos nós duas."
Fonte: Mariana Lanza (Terra) - Foto: Raphael Falavigna (Terra)
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