"Sou copiloto de Airbus 380 e já me falaram que eu devia pilotar fogão"
"Voar não era um sonho de infância, eu achava que iria estudar direito na faculdade. A aviação veio por acaso. Eu fazia um curso de turismo, e uma professora disse que eu tinha perfil de comissária. Comecei cedo como comissária de voo, com 18 anos, fazia voos nacionais e para a América Latina e algumas ilhas do Caribe.
Eu gostava muito da profissão, mas era tímida. Sempre gostei mais da parte técnica da coisa: durante os voos longos, nós tínhamos tempo livre, então visitava a cabine de comando, conversava com os pilotos, perguntava muito e comecei a me apaixonar pela profissão. Até que fui com um colega instrutor de voo a um aeroclube e fiz um voo lá. Naquele momento, tive a certeza do que eu queria para a minha vida.
Iniciei o curso de piloto privado, mas como vi que os colegas formados não conseguiam emprego por não falar inglês, decidi parar o curso e pedir demissão do trabalho de comissária. Peguei o dinheiro e fui fazer intercâmbio para a Austrália para aprender inglês.
Vim de uma família muito simples, não tinha muito dinheiro, paguei três meses de escola e fui para lá aos 23 anos com 500 dólares e disposta a arrumar um emprego, porque só tinha acomodação por um mês. Trabalhei como garçonete, faxineira... juntava todo o dinheiro que podia. Foi um desafio, sozinha, sendo responsável por tudo.
Ela conta que precisou ter três empregos para pagar o curso e realizar seu sonho (Foto: Arquivo pessoal) |
Após um ano na Austrália, voltei para o Brasil e a trabalhei de novo como comissária de voo. Mas eu já tinha um foco: ser uma piloto. Além do trabalho como comissária, dava aulas de inglês e aulas em escolas de aviação, porque eu precisava juntar dinheiro para concluir a formação de piloto. O curso de piloto é caro, varia entre 80 e 100 mil reais, dependendo do tipo de aeronave, da escola etc. Fui a primeira comissária a ser promovida a piloto do jato Embraer 190 - 195, na Azul.
Em 2017, fui aprovada em uma seleção da Hong Kong Airlines, pilotando um Airbus 320 e depois um A330, de passageiro e carga, pelo sudoeste asiático. Foi uma experiência enriquecedora, porque a cultura asiática e a brasileira são muito diferentes, um choque de realidade, comida, costumes, idioma enfim, mas você aprende a se virar. E como uma piloto foi desafiador sair da sua zona de conforto, pilotar outro avião, em outro continente, falar um inglês técnico.
Mas aí a HK Airlines entrou em crise e demitiram a maioria dos pilotos. Então fiz uma seleção para Emirates e fui aprovada para ser copiloto do A380, um avião de dois andares que pode transportar até 853 passageiros e pesa 575 toneladas. Dos 2.200 pilotos, creio que 40 eram mulheres, sendo três brasileiras voando. Não sou a primeira mulher brasileira no A380, as outras duas começaram antes, mas sou a mais jovem.
Creio que toda mulher piloto já tenha vivido algum preconceito, principalmente quando voei pela Ásia. Por ser uma cultura muito patriarcal, a submissão da mulher é parte da cultura, então acho que em Hong Kong eu sofri mais preconceito do que no Brasil por questão de gênero.
A paulista de Mauá foi comissária de bordo antes de fazer o curso para pilotar avião |
Por outro lado, tem a admiração das pessoas, das mulheres se sentirem empoderadas por eu estar fazendo algo que supostamente só homens fariam. É um reconhecimento muito bom, mas sempre vai ter uma piadinha, vai ouvir que 'devia estar pilotando fogão, e não um avião', mas não dou atenção a isso. Sou tão apta quanto um homem dentro da cabine.
Por causa do novo trabalho, há dois anos moro em Dubai, parte dos Emirados Árabes. Não sou casada, não namoro e não pretendo ter filhos. É uma escolha que eu fiz, mas há muitas pilotos casadas e com filhos. Eu nunca quis ter filho, não foi uma decisão por causa da profissão, mas uma escolha pessoal.
Eu coloquei um objetivo grande na minha vida e tenho muito orgulho de onde eu saí e onde estou. Ao contrário do que muita gente disse, que isso não era para mim, que era muito caro, estou aqui. Os meus pais não me ajudaram financeiramente porque eles não tinham como, mas sempre me apoiaram muito, e isso foi fundamental. Às vezes acordava às 3h da manhã para ir ao aeroclube e minha mãe estava lá fazendo o meu café da manhã. Sinto-me realizada e muito orgulhosa por estar onde cheguei, porque o caminho não foi fácil .
Hoje sou copiloto, meu próximo objetivo é ser comandante, ainda somos poucas, a média de mulheres piloto é menos de 2% no mundo. Quero poder ser um bom exemplo, quero poder inspirar outras meninas que não acreditam que elas possam ser pilotos ou ter qualquer outra profissão, que podem ser o que elas quiserem. Meu maior desejo é servir de inspiração."
Por Aline Borguetti em depoimento a André Aram (UOL) - *Aline Borguetti, 32, é copilota de Airbus 380 e vive em Dubai. - Fotos: Arquivo Pessoal/Aline Borguetti
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