O problema é antigo: quando se quer apanhar um gatuno que engendrou um laborioso plano de assalto, deve procurar-se o presumível marginal entre os sem-abrigo entulhados num beco sem ar respirável, ou na mesa de uma esplanada em frente a um cocktail cheio de álcool forte? A experiência demonstrou que a segunda hipótese é muito mais bem sucedida, uma vez que os sem-abrigo são, quando muito, ladrões de ocasião que aproveitam uma oportunidade quando a têm debaixo dos olhos e mesmo ali à mão. Mas, apesar da evidência atual da resposta ao enigma, as coisas não funcionaram sempre assim: durante muitas décadas, os operacionais da polícia tinham a convicção - aliás, consubstanciada em obras estampadas com chancela científica - que os marginais podiam reconhecer-se pela face. Era uma chatice: quem tivesse nascido com cara de marginal até podia ser o maior dos bem-feitores, mas mais tarde ou mais cedo acabaria por ir parar com os cotos a um calabouço fedorento e lúgubre e só de lá sairia se conseguisse inverter a presunção da sua culpabilidade.
Apesar do abandono desta bizarra teoria da marginalidade estampada no rosto, o certo é que o conceito manteve uma eficácia que ninguém esperava. Por uma razão simples: os grupos de risco - quaisquer que eles sejam - mantêm um código identificativo que passa pelo vestuário, pela repetição de hábitos e mesmo por sinais exteriores como a barba ou o corte de cabelo, que permite a sua pré-identificação, por muito atabalhoada, sofrível ou incerta que seja. A estatística (uma subclasse das matemáticas que merece suspeitosas reservas) ia corroborando este empirismo. Esta constatação manteve as suas valias ao longo do século XX: quando os terroristas anarquistas (sempre vestidos de negro e desgrenhadamente despenteados) e os agitadores sindicais (nunca engravatados e muito ‘démodé') eram facilmente identificados e perseguidos pelas polícias alemã, francesa, austro-húngara e russa; quando os traficantes internacionais de droga (com o cabelo pastoso e bigodes à mexicano) estavam mesmo a pedir para ser isolados numa sala com meia-dúzia de metros quadrados; quando o movimento ‘punk' (e a sua estética ousada e impossível de indiferença) colocou em estado de sítio as maiores capitais da Europa e horrorizou a burguesia distraída a ganhar a maior quantidade possível dinheiro no menor espaço de tempo possível; ou, mais recentemente, quando os terroristas islâmicos (com grandes barbas e indumentária muçulmana) resolveram investir sobre as portas escancaradas do Ocidente.
Os traficantes internacionais parecem ter sido os primeiros a identificar o problema: há várias décadas que os correios intercontinentais de droga deixaram de ser pessoas com ar de quem tinha tomado o último banho há duas semanas e acabado de fumar um charro, para passarem a serem homens (muito mais que mulheres) com o aspecto muito executivo de quem está cheio de pressa para chegar a tempo à assembleia geral de uma instituição financeira. As polícias europeias identificaram rapidamente o novo problema e começaram a procurar uma solução. Não havendo uma (ou pelo menos uma que possa banir o problema de forma muito satisfatória), tiverem que recorrer ao que tinham à mão: a matemática.
"Maths against bombs"
A discussão está de regresso à ordem do dia. Principalmente desde que o nigeriano Umar Farouk Abdulmutallab decidiu comemorar o Natal passado com a sabotagem de um voo para os Estados Unidos. Não foi bem sucedido, mas Umar voltou a colocar em causa a capacidade de os aeroportos assegurarem a segurança eficaz dos milhões de passageiros que todos os dias só querem chegar mais depressa aos seus destinos.
Os pressupostos da discussão são simples: não é possível proceder a uma despistagem exaustiva de todos os passa¬geiros de todas as viagens que partem todos os dias de todos os aeroportos do mundo; identificar como potenciais terroristas determinado grupo (étnico, nacional, religioso ou meramente de opção por certa indumentária) traz problemas legais, de racismo e de xenofobia que nenhum país ocidental parece estar disposto a arcar como responsabilidade; é mais que sabido que quem está interessado em introduzir determinado produto proibido dentro de um avião recorre muitas vezes a ‘portadores' que nem sequer sabem que o são (pela introdução desses produtos em bagagens alheias); um fundamentalista que queira perpetrar um atentado num avião em pleno voo pode disfarçar o seu visual e assumir uma conduta que o coloque fora de qualquer grupo de risco. Que fazer então? Simples, dizem alguns especialistas: utilizar uma tabela matemática que permita um controle aleatório sobre os passageiros. Nem por isso, informa um matemático ouvido pelo Outlook. Qualquer tabela numérica que seja usada num aeroporto (por exemplo: ‘checar' profundamente o primeiro, o quinquagésimo e o centésimo passageiros e todos os outros, de 50 em 50) é facilmente detectável por quem esteja atento ao evoluir de uma fila. A solução é usar uma sucessão de tabelas, baralhando assim o esquema numérico que está em utilização em determinado momento. Ou, mais eficazmente - e parece ser isso que os responsáveis internacionais pela segurança das viagens aéreas pretendem fazer, segundo uma notícia recen¬temente veiculada pela BBC News - agregar este controlo numérico (ou estatístico) a um ‘passenger profiling' (perfil do passageiro) que identifique quem deve ou não ser ‘checado' quando embarca num avião.
A ANA, empresa que em Portugal responde pela segurança dos passageiros, está à espera de ver quais são os procedimentos internacionais - nomeadamente em termos dos novos ‘scanners' que praticamente despem os passageiros que se introduzem no seu interior - para tomar decisões. Para já, e segundo fonte oficial, a segurança dos voos está alavancada na parafernália de tecnologias que permitem um controlo bastante fino de tudo o que entra dentro de um avião. Para já, que se saiba - mas não é absolutamente certo que se saiba tudo - nunca houve uma falha na segurança dos aeroportos nacionais, mas novas tecnologias que entrem em funções a nível internacional podem vir a ser introduzidas em Portugal, como forma de aumentar ainda mais a segurança.
O passageiro do futuro
É impossível saber-se se há ou não muita gente que decidiu deixar de andar de avião por causa da chatice que é passar pelas barreiras de segurança até conseguir entrar dentro de uma daquelas carcaças. "Nunca ninguém me disse que desistia de viajar por causa disso", afirmou um agente de viagens. Mais: se foi possível detectar que, depois de 11 de Setembro de 2001, o número diário de passageiros desceu acentuadamente e que as viagens de puro lazer sofreram um retraimento significativo, tudo isso já passou à história. A razão é simples, segundo a mesma fonte: se é muitíssimo improvável que um avião sofra um acidente por razões técnicas ou de falha humana, é ainda mais improvável que se despenhe por causa de um ataque terrorista. É ainda a matemática que o diz: desde o ataque terrorista às torres gêmeas de Nova Iorque, houve muito mais acidentes aéreos por falha técnica ou humana que atentados contra aviões. A segurança é, por isso, de elevado nível e capaz de convidar quem quer que seja a continuar a andar de avião.
Mas todos esses milhões de pessoas que todos os dias andam de um lado para o outro como se voar fosse a coisa mais natural do mundo, podem contar com a mesma realidade que conhecem atualmente: níveis de segurança que todos os dias tornam essas viagens cada vez mais incômodas, mais maçadoras e mais demoradas. E ‘intrometidas': o respeito pela individualidade de cada um é uma matéria cada vez menos considerada, em detrimento da segurança geral - que obriga a que as queixas de cada um em matéria de exageros de segurança sejam diluídas, supostamente em benefício de todos.
Fonte: António Freitas de Sousa (Económico - Portugal)
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domingo, 17 de janeiro de 2010
Matemática pode tornar aeroportos mais seguros
As autoridades aeroportuárias querem o auxílio de tudo o que possa contribuir para a segurança dos aeroportos. Se a matemática pode ajudar, também é bem-vinda
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