Especialistas brasileiros afirmam que o sentimento é normal, mas, em excesso, pode evoluir para transtornos e fobias
Em outubro de 1996, o cirurgião plástico Múcio Porto, 47 anos, escapou de um dos maiores desastres aéreos brasileiros, o acidente com o Fokker 100 da TAM, que caiu no Bairro de Jaboaquara, em São Paulo, depois de decolar do Aeroporto de Congonhas. Noventa e seis pessoas morreram. Um sonho que o cunhado havia tido no Natal de 1995 fez com que ele desistisse de entrar no avião. “Precisava ir ao Rio de Janeiro com urgência e só tinha o voo da TAM disponível. Me lembrei do meu cunhado e voltei para casa”, relata.
Toda vez que o cirurgião plástico Múcio Porto precisa viajar, é um sofrimento. Depois de escapar de um acidente, ele ficou com medo de voar
O fato deixou profundas marcas no cirurgião, e uma delas é o medo de voar. Porém, para o sociólogo norte-americano Barry Glassner, autor do livro A cultura do medo, lançado recentemente no Brasil, a maioria dos medos atuais é sem motivo. Glassner afirma que, apesar de eventuais falhas catastróficas, o transporte aéreo ainda é menos arriscado do que viajar de carro. “É nossa percepção do perigo que tem mudado, e não o nível real de risco”, afirma o sociólogo, no livro.
O medo é um dos sentimentos mais primitivos do ser humano e essencial para a nossa sobrevivência. “Ele nada mais é do que uma reação obtida a partir do contato com algum estímulo físico ou mental — interpretação, imaginação, crença —, que gera uma resposta de alerta no organismo”, define o psiquiatra Rafael Boechat, professor da Universidade de Brasília (UnB).
No caso do cirurgião plástico, o medo de voar pode ter sido desencadeado pela interpretação do sonho. Depois do trauma do acidente, ele sofre só de pensar em entrar em um avião. “O medo que nos traz angústia está ligado aos nossos sentimentos primitivos e relacionado com as sensações de finitude — ou medo de morrer —, baseados nas vivências reais ou nas fantasias”, explica José Toufic Thomé, coordenador do Departamento de Intervenção em Desastres e Catástrofes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Paranoia
A estudante Manaíra Lacerda, 21 anos, é outra que vira e mexe se vê frente à frente com seus medos. No início da pandemia da gripe H1N1, a jovem diz que ficou paranoica com a ideia de pegar a doença. “Tenho medo de várias doenças, mas com a gripe suína tudo cresceu ainda mais. Era gente morrendo o tempo todo. Achava que aquilo poderia acontecer comigo”, relata.
Manaíra entrou em desespero por causa da epidemia do vírus H1N1
O medo piorou quando a irmã dela ficou gripada. Manaíra conta que praticamente obrigava toda a família a lavar as mãos e passar álcool gel o tempo inteiro. “Quando tinha que entrar no quarto dela, prendia a respiração.” O resultado disso tudo foi um período tenso, que lhe causou ansiedade. Além de doenças, a moça também tem medo de viajar de avião. “Quando entro em um avião, começo a imaginar aquelas tragédias que vi em filmes ou no noticiário. É terrível”, conta.
O psicólogo clínico Pedro Moreira acredita, assim como Barry Glassner, que medos imaginários podem ser desencadeados tanto por agentes estressores, como alguma experiência traumática, quanto pela forma como uma informação é absorvida pelo indivíduo. “A maneira como a gripe suína foi difundida não foi saudável. Incitou o pânico em algumas pessoas”, observa. Ele também cita o caso do maníaco do parque, como ficou conhecido Francisco de Assis Pereira, criminoso que, há 12 anos, matou seis mulheres no Parque do Estado, em São Paulo. “As pessoas deixavam de sair de casa com medo de serem atacadas. Ele deixou de ser um portador de uma doença e se tornou o mal personificado.”
Racionalidade
Segundo os especialistas, o estado de medo coletivo pode aumentar os transtornos de estresse. Um exemplo disso foi o surto de febre amarela ocorrido no fim de 2007, quando um homem morreu por ter tomado a vacina contra a doença duas vezes. “O medo não pode transcender o limite da racionalidade”, afirma Pedro Moreira. “Ele ajuda na prevenção, mas a que custo?”, indaga.
No caso de Múcio Porto, a prevenção é feita por meio do estudo das rotas que o avião vai fazer. Ele também desenvolveu algumas estratégias pessoais, como nunca viajar à noite nem no fim do dia, quando podem ocorrer tempestades, além de verificar a previsão de tempo em todo o itinerário que o avião fará. “Acredito que assim posso, quem sabe, adiar a minha morte, não é?”, justifica.
Assim como Moreira e Glassner, Rafael Boechat acredita que o excesso de informação com conteúdo ameaçador pode provocar o medo sem um motivo real. “O excesso de exposição influencia no comportamento e acaba aumentando o nível de estresse, o que dificulta os mecanismos fisiológicos, como o sistema imunológico. Por isso, as pessoas adoecem”, argumenta o psiquiatra.
Para ele, as políticas do pessimismo e do sensacionalismo não fazem sentido. “As pessoas devem se atentar à realidade. Arrisco dizer que a ignorância é um anestésico; quando não se sabe das coisas, não há sofrimento”, conclui. Talvez essa ignorância poderia ter sido a saída para o estudante de Mato Grosso do Sul Renan Júnior Andrade Souza, 19 anos. Há alguns meses, o jovem começou a ler sobre satanismo na internet e fazer algumas relações do tema com filmes, músicas, artistas e políticos.
Depois disso, para ele, o mundo virou uma conspiração, com direito à Nova Ordem Mundial, planejamento do atentado de 11 de setembro em Nova York pelos Estados Unidos, e adoradores do diabo, como Madonna, Lady Gaga e Rihanna, entre outros. O fato é que Renan ficou tão impressionado com o que leu que teve uma síncope emocional. “Entrei em depressão. Não queria falar com ninguém, só chorava. Foi horrível.” Hoje, ele está mais tranquilo, porém, continua pesquisando o assunto.
De acordo com o psiquiatra José Thomé, o ser humano está voltado mais para si e, quando se depara com algum agente agressor, como acidentes aéreos e atos violentos, ou mesmo uma crença como a que Renan teve contato, não sabe como lidar com o sentimento de medo e nem perceber o que é real. “A tendência das pessoas está em diminuir as relações. Quando há relações, há uma rede de interação, e a realidade passada por essa rede é que dá respostas aos sentimentos, inclusive ao medo.”
Sem essa rede, segundo Thomé, acidentes aéreos ou doenças, por exemplo, passam a ameaçar, e as pessoas deixam de viver a vida, além de desencadear, em quem tem predisposição, transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo, depressivo, de estresse pós-traumático e fobia (veja quadro). “O ser humano é inseguro por ter medo da morte. Nós negamos isso para poder viver, senão qual o motivo de passar pelos percalços da vida? O medo é natural, seu excesso ou falta é que não são”, diz Thomé.
Fonte: Silvia Pacheco (Correio Braziliense) - Fotos: Carlos Silva (CB/DAPress)
MAIS
Transtornos
Veja algumas patologias que podem ser desencadeadas pelo medo:
Transtorno depressivo
Doença que envolve o corpo, o humor e os pensamentos. Afeta a maneira de a pessoa se alimentar e dormir, como ela se sente em relação a si própria e como pensa sobre as coisas. Um transtorno depressivo não é o mesmo que uma tristeza passageira. Sem tratamento, os sintomas podem durar semanas, meses ou anos.
Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)
Caracterizado pela presença de obsessões ou compulsões que causam um mal-estar intenso, consomem muito tempo (mais de uma hora por dia, pelo menos) e interferem na vida cotidiana da pessoa, em diversos aspectos, como no trabalho, nas atividades sociais e no convívio familiar.
Transtorno de estresse pós-traumático
Desenvolve-se em qualquer período da vida, principalmente em condições nas quais a pessoa é frequentemente exposta a situações de risco. Traz prejuízos importantes aos portadores, levando ao abuso de álcool e à depressão.
Transtorno de pânico
Caracterizado pela presença de ataques de pânico inesperados e repetidos, seguidos por pelo menos um mês de preocupação persistente.
Fobia
É o medo persistente e excessivo de um objeto, uma pessoa, um animal, uma atividade ou uma situação. É um tipo de distúrbio de ansiedade. A pessoa com fobia ou tenta evitar a coisa que ativa o medo, ou suporta isso com grande ansiedade e angústia.
Fontes: Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores de Transtorno de Ansiedade
Em outubro de 1996, o cirurgião plástico Múcio Porto, 47 anos, escapou de um dos maiores desastres aéreos brasileiros, o acidente com o Fokker 100 da TAM, que caiu no Bairro de Jaboaquara, em São Paulo, depois de decolar do Aeroporto de Congonhas. Noventa e seis pessoas morreram. Um sonho que o cunhado havia tido no Natal de 1995 fez com que ele desistisse de entrar no avião. “Precisava ir ao Rio de Janeiro com urgência e só tinha o voo da TAM disponível. Me lembrei do meu cunhado e voltei para casa”, relata.
Toda vez que o cirurgião plástico Múcio Porto precisa viajar, é um sofrimento. Depois de escapar de um acidente, ele ficou com medo de voar
O fato deixou profundas marcas no cirurgião, e uma delas é o medo de voar. Porém, para o sociólogo norte-americano Barry Glassner, autor do livro A cultura do medo, lançado recentemente no Brasil, a maioria dos medos atuais é sem motivo. Glassner afirma que, apesar de eventuais falhas catastróficas, o transporte aéreo ainda é menos arriscado do que viajar de carro. “É nossa percepção do perigo que tem mudado, e não o nível real de risco”, afirma o sociólogo, no livro.
O medo é um dos sentimentos mais primitivos do ser humano e essencial para a nossa sobrevivência. “Ele nada mais é do que uma reação obtida a partir do contato com algum estímulo físico ou mental — interpretação, imaginação, crença —, que gera uma resposta de alerta no organismo”, define o psiquiatra Rafael Boechat, professor da Universidade de Brasília (UnB).
No caso do cirurgião plástico, o medo de voar pode ter sido desencadeado pela interpretação do sonho. Depois do trauma do acidente, ele sofre só de pensar em entrar em um avião. “O medo que nos traz angústia está ligado aos nossos sentimentos primitivos e relacionado com as sensações de finitude — ou medo de morrer —, baseados nas vivências reais ou nas fantasias”, explica José Toufic Thomé, coordenador do Departamento de Intervenção em Desastres e Catástrofes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Paranoia
A estudante Manaíra Lacerda, 21 anos, é outra que vira e mexe se vê frente à frente com seus medos. No início da pandemia da gripe H1N1, a jovem diz que ficou paranoica com a ideia de pegar a doença. “Tenho medo de várias doenças, mas com a gripe suína tudo cresceu ainda mais. Era gente morrendo o tempo todo. Achava que aquilo poderia acontecer comigo”, relata.
Manaíra entrou em desespero por causa da epidemia do vírus H1N1
O medo piorou quando a irmã dela ficou gripada. Manaíra conta que praticamente obrigava toda a família a lavar as mãos e passar álcool gel o tempo inteiro. “Quando tinha que entrar no quarto dela, prendia a respiração.” O resultado disso tudo foi um período tenso, que lhe causou ansiedade. Além de doenças, a moça também tem medo de viajar de avião. “Quando entro em um avião, começo a imaginar aquelas tragédias que vi em filmes ou no noticiário. É terrível”, conta.
O psicólogo clínico Pedro Moreira acredita, assim como Barry Glassner, que medos imaginários podem ser desencadeados tanto por agentes estressores, como alguma experiência traumática, quanto pela forma como uma informação é absorvida pelo indivíduo. “A maneira como a gripe suína foi difundida não foi saudável. Incitou o pânico em algumas pessoas”, observa. Ele também cita o caso do maníaco do parque, como ficou conhecido Francisco de Assis Pereira, criminoso que, há 12 anos, matou seis mulheres no Parque do Estado, em São Paulo. “As pessoas deixavam de sair de casa com medo de serem atacadas. Ele deixou de ser um portador de uma doença e se tornou o mal personificado.”
Racionalidade
Segundo os especialistas, o estado de medo coletivo pode aumentar os transtornos de estresse. Um exemplo disso foi o surto de febre amarela ocorrido no fim de 2007, quando um homem morreu por ter tomado a vacina contra a doença duas vezes. “O medo não pode transcender o limite da racionalidade”, afirma Pedro Moreira. “Ele ajuda na prevenção, mas a que custo?”, indaga.
No caso de Múcio Porto, a prevenção é feita por meio do estudo das rotas que o avião vai fazer. Ele também desenvolveu algumas estratégias pessoais, como nunca viajar à noite nem no fim do dia, quando podem ocorrer tempestades, além de verificar a previsão de tempo em todo o itinerário que o avião fará. “Acredito que assim posso, quem sabe, adiar a minha morte, não é?”, justifica.
Assim como Moreira e Glassner, Rafael Boechat acredita que o excesso de informação com conteúdo ameaçador pode provocar o medo sem um motivo real. “O excesso de exposição influencia no comportamento e acaba aumentando o nível de estresse, o que dificulta os mecanismos fisiológicos, como o sistema imunológico. Por isso, as pessoas adoecem”, argumenta o psiquiatra.
Para ele, as políticas do pessimismo e do sensacionalismo não fazem sentido. “As pessoas devem se atentar à realidade. Arrisco dizer que a ignorância é um anestésico; quando não se sabe das coisas, não há sofrimento”, conclui. Talvez essa ignorância poderia ter sido a saída para o estudante de Mato Grosso do Sul Renan Júnior Andrade Souza, 19 anos. Há alguns meses, o jovem começou a ler sobre satanismo na internet e fazer algumas relações do tema com filmes, músicas, artistas e políticos.
Depois disso, para ele, o mundo virou uma conspiração, com direito à Nova Ordem Mundial, planejamento do atentado de 11 de setembro em Nova York pelos Estados Unidos, e adoradores do diabo, como Madonna, Lady Gaga e Rihanna, entre outros. O fato é que Renan ficou tão impressionado com o que leu que teve uma síncope emocional. “Entrei em depressão. Não queria falar com ninguém, só chorava. Foi horrível.” Hoje, ele está mais tranquilo, porém, continua pesquisando o assunto.
De acordo com o psiquiatra José Thomé, o ser humano está voltado mais para si e, quando se depara com algum agente agressor, como acidentes aéreos e atos violentos, ou mesmo uma crença como a que Renan teve contato, não sabe como lidar com o sentimento de medo e nem perceber o que é real. “A tendência das pessoas está em diminuir as relações. Quando há relações, há uma rede de interação, e a realidade passada por essa rede é que dá respostas aos sentimentos, inclusive ao medo.”
Sem essa rede, segundo Thomé, acidentes aéreos ou doenças, por exemplo, passam a ameaçar, e as pessoas deixam de viver a vida, além de desencadear, em quem tem predisposição, transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo, depressivo, de estresse pós-traumático e fobia (veja quadro). “O ser humano é inseguro por ter medo da morte. Nós negamos isso para poder viver, senão qual o motivo de passar pelos percalços da vida? O medo é natural, seu excesso ou falta é que não são”, diz Thomé.
Fonte: Silvia Pacheco (Correio Braziliense) - Fotos: Carlos Silva (CB/DAPress)
MAIS
Transtornos
Veja algumas patologias que podem ser desencadeadas pelo medo:
Transtorno depressivo
Doença que envolve o corpo, o humor e os pensamentos. Afeta a maneira de a pessoa se alimentar e dormir, como ela se sente em relação a si própria e como pensa sobre as coisas. Um transtorno depressivo não é o mesmo que uma tristeza passageira. Sem tratamento, os sintomas podem durar semanas, meses ou anos.
Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)
Caracterizado pela presença de obsessões ou compulsões que causam um mal-estar intenso, consomem muito tempo (mais de uma hora por dia, pelo menos) e interferem na vida cotidiana da pessoa, em diversos aspectos, como no trabalho, nas atividades sociais e no convívio familiar.
Transtorno de estresse pós-traumático
Desenvolve-se em qualquer período da vida, principalmente em condições nas quais a pessoa é frequentemente exposta a situações de risco. Traz prejuízos importantes aos portadores, levando ao abuso de álcool e à depressão.
Transtorno de pânico
Caracterizado pela presença de ataques de pânico inesperados e repetidos, seguidos por pelo menos um mês de preocupação persistente.
Fobia
É o medo persistente e excessivo de um objeto, uma pessoa, um animal, uma atividade ou uma situação. É um tipo de distúrbio de ansiedade. A pessoa com fobia ou tenta evitar a coisa que ativa o medo, ou suporta isso com grande ansiedade e angústia.
Fontes: Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores de Transtorno de Ansiedade
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