quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Aconteceu em 22 de agosto de 2006: 170 mortos na queda do voo Pulkovo Aviation Enterprise 612 na Ucrânia


Uma das afirmações mais difundidas na aviação é de que as condições climáticas não podem mais derrubar as modernas aeronaves comerciais. De fato, a aviação evoluiu tanto nas últimas décadas que, de maneira geral, a afirmação é praticamente verdadeira. Quase verdadeira.

O que mata é esse "quase." Literalmente. É um caso assim que abordamos aqui: a tragédia que vitimou os 170 ocupantes do voo 612 da Pulkovo Aviation Enterprise. A Pulkovo é uma empresa aérea russa surgida com a Glasnost e com a gradual liberalização do transporte aéreo comercial na antiga União Soviética a partir de 1989.

O voo 612 era um serviço regular operado entre o aeroporto de Vityazevo em Anapa (AAQ) e São Petersburgo (LED), ambos na Rússia, que levava a bordo 160 passageiros e 10 tripulantes.


Na tarde quente de 22 de agosto de 2006, o serviço estava sendo cumprido pelo Tupolev Tu-154M, prefixo RA-85185, da Pulkovo Aviation Enterprise (foto acima). Essa aeronave já contabilizava aproximadamente meia vida útil: voava desde 1991 e tinha no total 24.215 horas de voo, desde que fora entregue à companhia chinesa Sichuan Airlines. 

Adquirido de segunda mão pela empresa aérea russa, voava na Pulkovo desde 2001. Naquele dia agourento, seus três reatores Soloviev D-30KU-154-II funcionavam em perfeito estado; a máquina tampouco apresentava qualquer discrepância ou alteração séria no tocante à manutenção.

Após partir de Anapa pontualmente, o Tupolev subiu sem restrições para 35.100 pés (10.700m). Em função do grande número de células convectivas, os famosos CBs, ou cumulus nimbus, o piloto responsável por aquela etapa, o primeiro oficial Andrei, resolveu solicitar uma série de desvios laterais em relação à rota inicialmente prevista.

"Sem problemas", instruiu o controle de solo, que acabou por permitir ao Tupolev voar nada menos que 20km à direita da rota original. Ainda assim, o número de nuvens carregadas que circundava o jato simplesmente o impedia de prosseguir seu voo sem penetrar nas carregadas células.

O que Andrei e os outros pilotos na cabine do Tupolev não sabiam é que o sistema onde estavam prestes a penetrar era excepcionalmente severo. O topo das formações, descobriu-se em análises posteriores, atingia mais de 49.000 pés. 

A ideia inicial de Andrei foi pedir um nível de voo mais alto do que os 35.000 pés em que voavam para tentar literalmente "passar por cima" do sistema. Autorizados pelo controle, os pilotos da Pulkovo iniciaram a ascensão. Hora de acompanhar o drama a partir da cabine de comando do voo 612.


A reprodução da caixa-preta de voz do voo 612 da Pulkovo Aviation:

Cap: Comandante Ivan

F/O: Primeiro - Oficial Vova

S/O: Segundo - Oficial (em treinamento) Andrei Khodnevich

S/O-RDO: Segundo - Oficial transmitindo mensagens pelo rádio

F/E: Engenheiro de voo

NAV: Navegador Igor

NAV-RDO: Navegador transmitindo mensagens pelo rádio

TWR: Controle de solo (ATC)

CREW: Comentário gravado de um dos tripulantes (autor não identificado)

CAM: Sons captados pelo microfone de cabine

Atenção: a transcrição abaixo contém um número expressivo de palavras de baixo calão. Mantivemos o texto originalmente traduzido do russo, reproduzindo fielmente os termos empregados pelos pilotos do voo 612, ainda que a linguagem de fato seja realmente chula.

15h33:06 Cap: Vamos temporariamente subir para o (nível) 400 ou algo assim. Este filho da mãe, (NE: referindo-se ao avião) isto aqui está completamente fodido. É, peça o (nível) 390, caso contrário não conseguiremos dar a volta por este sistema!

15h33:12 CAM: Som do alarme de ângulo de ataque máximo ultrapassado.

15h33:17 NAV: Mudado.

15h33:20 NAV-RDO: Centro, do Pulkovo 612.

15h33:21 TWR: Pulkovo 612, prossiga.

15h33:22 Cap: Peça para subir, ok?

15h33:24 NAV-RDO: Pulkovo 612, temporariamente solicita nível de voo 390.

15h33:28 Cap: Diga a ele que está muito turbulento por aqui.

15h33:34 TWR: Pulkovo 612, liberado para três, nove, zero.

15h33:34 NAV-RDO: Para 3-9-0 e muito obrigado, Pulkovo 612.

15h33:37 Cap: Nós ainda assim vamos fazer esta merda (incompreensível).

15h33:39 CREW: (incompreensível)

15h33:45 Cap: Onde estão aqueles (incompreensível), filho da mãe!

15h34:24 Cap: Que foda! Esta merda toda!

15h34:27 Cap: Que foda!

15h34:32 Cap: Essa tempestade de merda! Essa puta! E granizo também! Puta vadia! (referindo à tempestade)

15h34:40 Cap: Me dê... (incompreensível).

15h34:43 Cap: Pra onde? Para qual lado? Igor, Igor, vamos, mexa-se.

15h34:48 Cap: Igor!

15h34:49 NAV: O que?

15h34:49 Cap: Virar para qual lado? Para onde podemos ir para nos afastarmos desta vadia? (NE: a tempestade)

15h34:52 CREW: (incompreensível)...não.

15h34:54 Cap: Me diga, subimos ao 390, Andrei? Eh, este filho da puta! (referindo-se ao avião)

15h34:56 S/O-RDO: Pulkovo 612, estamos no nível 390.

15h35:00 Cap: Me diga algo? O que acontece? Ah, foda!

Neste momento, o Segundo-Oficial Andrei perdeu o controle da aeronave. O Tu-154 penetrou em uma área de severa turbulência. 

Em apenas 10 segundos, a aeronave foi literalmente sugada para cima e ganhou nada menos que 833 metros de altura. O ângulo de ataque aumentou para 46º acima da linha do horizonte. 

Sem a correspondente aplicação de potência, consequentemente, a velocidade em relação ao ar caiu para zero. Em menos de meio minuto, um voo até então perfeitamente normal entrou em situação de total descontrole. 

O Tupolev, com sua cauda em T e estabilizadores no topo da deriva, encontrava-se subitamente em uma condição potencialmente mortal, provocada pelo fenômeno aerodinâmico conhecido como "estol profundo" ou "Deep Stall". 

Quando isto ocorre, a "sombra" aerodinâmica das asas que incide sobre o fluxo de ar torna a atuação dos profundores insuficiente para alterar o ângulo de ataque do jato. No instante seguinte, o Tupolev simplesmente começou a despencar do céu.

O trijato encontrava-se agora caindo em parafuso chato, com o nariz ligeiramente abaixo da linha do horizonte. O segundo oficial Andrei, ainda com a responsabilidade de controlar a aeronave, não mais conseguia pilotar a máquina, sem poder alterar o ângulo do nariz em relação ao solo. 

Como consequência, o Tupolev agora descia em parafuso. A enorme força gravitacional resultante da queda livre tornou-se extremamente desconfortável para todos os ocupantes a bordo. 

O comandante, e logo toda a tripulação, perceberam que haviam perdido completamente o controle sobre a máquina. E, ainda que estivessem a mais de 35 mil pés de altitude, encontravam enorme dificuldade em impedir a queda, cada vez mais vertiginosa, a partir daquele instante.

Entre 15h35:00 e 11h35:05 - CREW: (entre vários gritos simultâneos) Estamos caindo!!! (incompreensível)

15h35:06 Cap: Como assim estamos caindo, bando de idiotas!

15h35:09 Cap: Potência máxima! Fodeu!

15h35:10 F/E: Potência máxima!

15h35:12 Cap: Diga a eles (NE: ao controle) que estamos descendo, caralho! Que foda!

15h35:13 NAV-RDO: Descendo, Pulkovo 612.

15h35:16 CAM: Alarme de Ângulo de Ataque excessivo - AOA.

15h35:17 Cap: Vai com calma!

15h35:20 CAM: Alarme de Ângulo de Ataque excessivo - AOA.

15h35:22 Cap: Cuidado com essa curva!

15h35:23 CREW: Potência máxima!

15h35:28 NAV-RDO: Pulkovo 612, descendo e passando pelo 3-6-0.

15h35:30 CAM: Alarme de Ângulo de Ataque excessivo - AOA.

15h35:31 Cap: Diga a eles turbulência severa!

15h35:33 NAV-RDO: Turbulência severa.

15h35:34 TWR: Pulkovo, descendo 3-6-0.

15h35:36 Cap: Descendo, foda!

15h35:41 Cap: Cuidado, vamos segurar isso aí!

15h35:44 Cap: Segurar, manter isso aí, caralho!

15h35:45 F/E: Geradores... (incompreensível)

15h35:48 F/E: Flameout! Descendo! Vanya, flameout! (NE: Vanya é apelido de alguém cujo nome é "Ivan" - no caso, o comandante do voo.)

15h35:55 Cap: (incompreensível).

15h35:58 CREW: (incompreensível).

15h36:02 Cap: Olho na velocidade! Velocidade!

15h36:04 CREW: Caiu um pouco.

15h36:07 CREW: Não, está normal.

15h36:22 Cap: Quanto você disse?

15h36:23 NAV: (incompreensível)... 245.

15h36:24 Cap: Qual o curso? Foda!

15h36:25 NAV (incompreensível).

15h36:28 Cap: (incompreensível).

15h36:28 CREW: Entendo!

15h36:29 CREW: Estamos girando!

15h36:31 CREW: Correto!

15h36:32 Cap: Vova, vamos, assuma o comando! (NE: Vova, o primeiro oficial, era campeão russo de acrobacia.

O comandante Ivan sugere que ele assuma o lugar do segundo oficial Andrei nos controles. Naquele instante, Vova estava sentado na poltrona exatamente atrás de Andrei, mas não fica claro se naquela situação, houve mesmo a troca de posições. Algo pouco provável face às condições enfrentadas durante o mergulho em parafuso.

15h36:36 NAV: Esquerda, Vanya!

15h36:37 Cap: Ah, é isso... Fodeu!

15h36:40 CREW: Descendo! Descendo!

15h36:55 CREW: Declare Mayday!

15h36:57 NAV-RDO: SOS, 612, SOS!

15h37:01 TWR: Pulkovo 612, não compreendo sua mensagem.

15h37:02 Cap: Fodeu! Qual a nossa velocidade?

15h37:03 NAV-RDO: SOS, SOS, Pulkovo 612, SOS, SOS, SOS, Pulkovo 612!

15h37:06 Cap: Qual a nossa velocidade? Qual a nossa velocidade?

15h37:41 CREW: (incompreensível).

15h37:45 Cap: Esquerda, vamos!?

15h37:49 CREW: (incompreensível).

15h37:50 Cap: Vova, por favor ajude o Andrei?

15h37:55 NAV: Altitude 2000! Vanya, 2000!

15h38:01 Cap: Maldição!

15h38:03 CREW: Esqueça... (incompreensível).

15h38:04 Cap: (incompreensível)... direita!

15h38:05 F/E: (incompreensível)... caindo!

15h38:06 NAV: Agora esquerda, esquerda... (incompreensível)

15h38:07 CREW: (incompreensível).

15h38:09 CREW: Eu não vi isso!

15h38:09 F/O: Oh meu Deus...

15h38:11 Cap: Segura, segura, segura, segura! Andrei! Eh! Puxe! Puxe Andrei! (incompreensível).

15h38:20 Cap: Aplique potência máxima! Força total!

15h38:21 CREW: Para a esquerda, vire pra esquerda, saia dessa curva!

15h38:23 S/O: (incompreensível) ...segurar!

15h38:23 Cap: Andrei, não entre em pânico!

15h38:24 CAM: Soa o Alarme de Proximidade de Solo (até o fim da gravação): Ground Proximity Warning System - GPWS.

15h38:26 S/O: Segura! Segura!

15h38:27 Cap: Maldito terreno!

15h38:28 CREW: (incompreensível)

15h38:30 CREW: (Grito)

15h38:30 Fim da gravação.

Exatos três minutos e trinta segundos após haver entrado em um estol profundo a 39.000 pés, o Tupolev colidiu violentamente com o solo próximo à vila de Sukha Balka, em Donetsk Oblast, no leste da Ucrânia, perto da fronteira com a Rússia, e explodiu, ceifando a vida de 160 passageiros e 10 tripulantes em uma fração de segundos.


Por sinal, estes 220 segundos de agonia, desde a subida abrupta até o impacto com o solo certamente estão entre os mais terríveis já vivenciados por qualquer ocupante de uma aeronave. 


O Tupolev despencou em uma angustiante sequência de parafusos, girando rapidamente e ganhando grande velocidade horizontal, descendo a razão de aproximadamente 4 mil metros por minuto, provocando uma sensação de extremo desconforto aos seus infelizes e certamente aterrorizados ocupantes. O Relatório Final foi divulgado em russo.


Em questão de horas, mais de 250 membros das equipes de resgate chegaram ao local da queda. O cenário era desolador. 


O fogo, alimentado pelos tanques ainda cheios, ardia por uma extensa área em terreno descampado, dificultando o trabalho de resgate, que se estendia em uma área de 400 por 200 m de largura. 


O violento incêndio só seria controlado no começo da noite, mas aí a identificação de boa parte dos corpos das vítimas já seria muito prejudicada.

Vários ocupantes, dentre os quais os tripulantes da cabine de comando, tiveram seus corpos arremessados para longe dos destroços e em função disso, ao menos foram poupados das chamas.


Dentre os 170 ocupantes, havia 45 crianças com menos de 12 anos de idade. Muitas famílias viajavam em férias, o que torna este acidente ainda mais trágico. Entre os adultos, oito tinham mais de 60 anos (incluindo uma mulher de 92 anos que voou com o neto, a esposa e dois bisnetos). 

Relatórios anteriores da mídia e da companhia aérea indicaram que 159 passageiros estavam no voo, 39 crianças menores de 12 anos e seis bebês menores de dois anos de idade. Algumas outras fontes relataram que o avião transportava 171 pessoas. As autoridades não conseguiram explicar esta aparente discrepância com os números e pediram ao público que esperasse a conclusão da análise especializada.


O Ministério de Situações de Emergência da Rússia publicou uma lista de passageiros que viajam no voo 612. De 159 pessoas, 20 viajavam para Norilsk através de São Petersburgo e três para Murmansk . A maioria dos passageiros eram famílias que voltavam das férias com crianças. Cinco passageiros tinham cidadania múltipla além da russa (um da Holanda, dois da Alemanha, um da França e um da Finlândia).

No dia seguinte à queda, uma quarta-feira, os gravadores de dados e vozes foram encontrados em bom estado, e nas semanas seguintes, foi a decodificação dos mesmos que permitiu elucidar as causas da tragédia.


A Ucrânia realizou um dia nacional de luto pelas pessoas mortas no acidente na quarta-feira, 23 de agosto e mudou a celebração de seu 15º Dia da Independência de 24 de agosto para 26 de agosto. A Rússia realizou um dia nacional de luto na quinta-feira, 24 de agosto, 2006.

Hoje, um monumento marca o local da tragédia onde 170 vítimas perderam suas vidas de forma trágica e angustiante e serve como perene lembrança para mais uma lição. Aquela que ensina que as forças da natureza podem ser compreendidas e estudadas. Mas sempre respeitadas e jamais enfrentadas.

Memorial para as vítimas do acidente
O acidente foi o acidente de aviação mais mortal em 2006. Na época, foi o acidente mais mortal da história moderna ucraniana e o segundo mais mortal na SSR da Ucrânia, depois da colisão aérea de Dniprodzerzhynsk em 1979. 

O número de mortos foi finalmente ultrapassado em 2014, quando o voo 17 da Malaysia Airlines foi abatido a 64 km a leste de onde o voo 612 havia caído, também localizado em Donetsk Oblast, matando todas as 298 pessoas a bordo no mais mortal abate de um único avião na história da aviação.

Edição de texto e imagens por Jorge Tadeu (Site Desastres Aéreos)

Com Relato extraído do extinto site Jetsite (de Gianfranco "Panda" Beting) via acidentesdesastresaereos.blogspot.com, Wikipedia, ASN e baaa-acro. 

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