domingo, 13 de março de 2022

Os erros nucleares que quase levaram à 3ª Guerra Mundial

Na crise de Suez, 'objetos voadores não identificados' foram detectados
sobrevoando a Turquia - eram cisnes (Foto: Getty Images)
Era o meio da noite de 25 de outubro de 1962, e um caminhão corria por uma pista de decolagem no Wisconsin, nos Estados Unidos. Seu motorista tinha muito pouco tempo para impedir que os aviões levantassem voo.

Alguns minutos antes, um guarda do Centro Diretor do Setor de Defesa Aérea de Duluth, em Minnesota (também nos Estados Unidos), havia avistado uma figura sombria tentando escalar a grade do perímetro da instalação.

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Ele atirou no invasor e fez soar o alarme, temendo que fosse parte de um ataque soviético de maiores proporções. Imediatamente, alarmes de intrusos soaram em todas as bases aéreas da região.

A situação progrediu muito rapidamente. Na base aérea de Volk, no Wisconsin, alguém moveu a chave errada e, em vez do alerta de segurança padrão, os pilotos ouviram uma sirene de emergência para que eles corressem. Pouco depois, a atividade na base era frenética, com os pilotos correndo para levantar voo, munidos de armas nucleares.

Na época, a crise dos mísseis cubanos estava no seu ápice e os nervos de todos estavam à flor da pele.

Onze dias antes, um avião espião havia fotografado lançadores, mísseis e caminhões secretos em Cuba, o que indicava que os soviéticos estavam se mobilizando para atingir alvos nos Estados Unidos.

O mundo inteiro sabia muito bem que era necessário apenas um ataque de uma das nações para acionar uma escalada imprevisível.

Na verdade, neste caso não havia em Duluth nenhum invasor - ou, pelo menos, nenhum invasor humano. Acredita-se que a figura esgueirando-se pela grade tenha sido um grande urso. Tudo não passava de um engano.

Volk Field, onde um urso 'invasivo' causou caos em 1962 (Foto: Alamy)
Mas, no campo de Volk, o esquadrão ainda não sabia disso. Eles haviam sido informados que não era um treinamento e, enquanto embarcavam nos seus aviões, estavam totalmente convencidos de que havia chegado a hora - a Terceira Guerra Mundial havia começado.

Por fim, o comandante da base percebeu o que estava acontecendo. Os pilotos foram interceptados enquanto ligavam os motores na pista de decolagem por um agente que, pensando rapidamente, tomou um caminhão e dirigiu-se a eles.

De lá para cá, a ansiedade atômica dos anos 1960 foi totalmente esquecida. Os abrigos nucleares preservaram a memória de megarricos e excêntricos tentando sobreviver e as preocupações existenciais voltaram-se para outras ameaças, como as mudanças climáticas.

Nós esquecemos facilmente que existem cerca de 14 mil armas nucleares em todo o mundo, com poder combinado de eliminar a vida de cerca de 3 bilhões de pessoas - ou até causar a extinção da espécie, caso acionem um inverno nuclear.

Pasta contendo sistema de controle para o arsenal nuclear da Rússia (Foto: Stanislav Kozlovskiy)
Sabemos que a possibilidade de qualquer líder detonar intencionalmente uma delas é extremamente remota. Afinal, esse líder teria que ser maluco.

O que não calculamos nessa equação é a possibilidade de que isso aconteça por acidente.

Ao longo do tempo, já escapamos pelo menos 22 vezes de guerras causadas por engano desde a descoberta das armas nucleares.

Já fomos levados à iminência da guerra nuclear por eventos inofensivos como um bando de cisnes voando, o nascer da Lua, pequenos problemas de computador e anormalidades do clima espacial.

Em 1958, um avião despejou acidentalmente uma bomba nuclear no quintal de uma casa de família. Milagrosamente, nenhum ser humano morreu, mas suas galinhas, criadas soltas, foram vaporizadas.

E esses contratempos continuam ocorrendo: em 2010, a Força Aérea dos Estados Unidos perdeu temporariamente a comunicação com 50 mísseis nucleares, o que significa que eles não teriam conseguido detectar e suspender eventuais lançamentos automáticos.

O susto de Yeltsin


"Ontem, usei pela 1ª vez minha pasta preta com botão (nuclear)', disse o russo Boris Yeltsin
em 26 de janeiro de 1995 (Foto: Getty Images)
Apesar dos vertiginosos custos e da sofisticação tecnológica das armas nucleares modernas (estima-se que os Estados Unidos gastem US$ 497 bilhões (R$ 2,5 trilhões) em suas instalações entre 2019 e 2028), os registros mostram a facilidade com que as salvaguardas estabelecidas podem ser confundidas por erro humano ou por animais silvestres curiosos.

Em 25 de janeiro de 1995, o então presidente russo Boris Yeltsin tornou-se o primeiro líder mundial da história a ativar uma "maleta nuclear" - uma mochila que contém as instruções e a tecnologia para detonar bombas nucleares.

Os operadores de radar de Yeltsin observaram o lançamento de um foguete na costa da Noruega e assistiram apreensivos à sua elevação nos céus. Para onde ele se dirigia? Era um foguete hostil?

Com a maleta nas mãos, Yeltsin consultou freneticamente seus principais conselheiros para saber se deveria lançar um contra-ataque. Faltando minutos para decidir, eles perceberam que o foguete se dirigia para o mar e, portanto, não era uma ameaça.

Posteriormente, veio a informação de que não era um ataque nuclear, mas sim uma sonda científica, que havia sido enviada para pesquisar a aurora boreal.

Autoridades norueguesas ficaram perplexas quando souberam da comoção causada pelo lançamento, já que ele havia sido anunciado ao público com pelo menos um mês de antecedência.

Fundamentalmente, não importa se um ataque nuclear for iniciado por equívoco ou devido a uma ameaça real - depois de iniciado, ele é irreversível.

"Se o presidente reagir a um alarme falso, ele terá acidentalmente iniciado uma guerra nuclear", afirma William Perry, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos no governo Bill Clinton e ex-subsecretário de Defesa do governo Jimmy Carter.

"Não há nada que ele possa fazer a respeito. Os mísseis não podem ser chamados de volta, nem destruídos."

Por que já escapamos desse perigo por um triz tantas vezes? E o que podemos fazer para evitar que aconteça de novo no futuro?

Como ocorrem os ataques nucleares


Lançamento de um foguete científico semelhante ao que assustou a Rússia (Foto: Alamy)
Os primeiros sistemas de alerta criados durante a Guerra Fria estão na raiz desse potencial de erros.

Em vez de esperar que os mísseis nucleares atinjam o seu alvo (o que, é claro, forneceria prova concreta de um ataque), esses sistemas os detectam com antecedência para permitir que os países atacados possam retaliar antes que suas próprias armas sejam destruídas.

Para isso, é necessário obter dados. Muitos norte-americanos desconhecem que os Estados Unidos possuem diversos satélites observando a Terra silenciosamente todo o tempo.

Quatro desses satélites encontram-se a 35,4 mil km acima do planeta. Eles estão em "órbita geoestacionária" - em um local adequado, onde nunca mudam de posição com relação ao planeta que estão circundando.

Isso significa que eles têm uma visão mais ou menos constante da mesma região e podem detectar o lançamento de qualquer possível ameaça nuclear, sete dias por semana, 24 horas por dia.

Mas os satélites não conseguem rastrear os mísseis depois de lançados. Para isso, os Estados Unidos também mantêm centenas de estações de radar, que podem determinar a posição e a velocidade dos mísseis, calculando suas trajetórias.

10 minutos é o tempo que líderes geralmente têm para decidir se vão desencadear
evento de destruição nuclear (Foto: Getty Images)
Se houver indicações suficientes de um ataque em andamento, o presidente é informado.

"Assim, o presidente será alertado talvez cinco a dez minutos após o lançamento dos mísseis", segundo Perry. E ele e seus assessores têm a tarefa nada invejável de decidir se devem contra-atacar ou não.

"É um sistema muito complicado que fica em operação praticamente todo o tempo", afirma Perry. "Mas estamos falando de um evento de baixa probabilidade com altas consequências".

Um evento que, aliás, só precisa acontecer uma vez.

Tecnologia traiçoeira


Uma vez lançados, os mísseis nucleares não podem ser interrompidos (Foto: Getty Images)
Existem dois tipos de erros que podem gerar alarmes falsos: o erro humano e o tecnológico. Ou, se estivermos em uma grande maré de azar, ambos ao mesmo tempo.

Um exemplo clássico de erro tecnológico aconteceu enquanto Perry trabalhava para o presidente americano Jimmy Carter, em 1980. "Foi um choque muito grande", segundo ele.

Tudo começou com uma ligação telefônica às 3h da madrugada, quando o escritório de observação do comando de defesa aérea dos Estados Unidos informou a ele que computadores do sistema de vigilância haviam descoberto 200 mísseis dirigidos diretamente da União Soviética para os Estados Unidos.

Mas, naquele momento, eles já haviam percebido que não se tratava de um ataque real. Os computadores haviam feito alguma coisa errada.

"Eles na verdade haviam telefonado para a Casa Branca antes de mim - eles ligaram para o presidente. A ligação caiu direto no seu conselheiro de segurança nacional", relembra Perry.

Por sorte, ele levou alguns minutos para acordar o presidente e, nesse período, eles receberam a informação de que se tratava de um alarme falso.

Mas, se ele não tivesse esperado e acordasse Carter imediatamente, o mundo hoje poderia ser um lugar muito diferente.

"Se o próprio presidente houvesse atendido a ligação, ele teria tido cerca de cinco minutos para decidir se contra-atacaria ou não - no meio da noite, sem poder consultar ninguém", explica Perry.

A partir dali, Perry nunca mais pensou na possibilidade de um lançamento de mísseis por erro como um problema teórico - era, isso sim, uma possibilidade realista verdadeira e alarmante. "Foi por muito pouco", afirma ele.

A tecnologia é um dos perigos (Foto: Getty Images)
Naquele caso, o problema acabou sendo um chip com defeito no computador que executava os sistemas de alerta precoce do país. Ele acabou sendo substituído por menos de um dólar (menos de R$ 5).

Mas, um ano antes, Perry havia vivido outra situação extrema, em que um técnico inadvertidamente carregou o computador com uma fita de treinamento. Ele transmitiu acidentalmente os detalhes de um lançamento de míssil muito realista (mas totalmente fictício) para os principais centros de alerta.

Isso nos leva à questão de como envolver os cérebros profundamente inadequados de macacos bípedes em um processo que envolve armas com o poder de arrasar cidades inteiras.

E, além dos técnicos desajeitados, as principais pessoas com quem precisamos nos preocupar são aquelas que realmente detêm o poder de autorizar um ataque nuclear - os líderes mundiais.

Um assistente militar dos EUA carrega códigos de lançamento nuclear (Foto: Reuters)
"O presidente dos Estados Unidos tem total autoridade para lançar armas nucleares e é a única pessoa que pode fazê-lo - é a única autoridade", afirma Perry.

Esse poder vem desde o tempo do presidente Harry Truman, que governou os Estados Unidos entre 1945 e 1953.

Na época da Guerra Fria, a decisão foi delegada aos comandantes militares, mas Truman acreditava que as armas nucleares são uma ferramenta política e, por isso, deveriam estar sob o controle de um político.

Todos os presidentes norte-americanos que o sucederam sempre foram seguidos em todos os lugares por um auxiliar carregando a "bola de futebol" nuclear, que contém os códigos de lançamento das armas nucleares do país.

Esteja ele em uma montanha, viajando de helicóptero ou atravessando o oceano, o presidente detém a capacidade de lançar um ataque nuclear.

Tudo o que ele precisa fazer é dizer as palavras e a destruição mútua garantida (MAD, na sigla em inglês) - a total aniquilação do atacante e do defensor - poderá ser atingida em questão de minutos.

Como muitas organizações e especialistas já indicaram, a concentração desse poder em um único indivíduo é um alto risco.

"Já aconteceu algumas vezes de um presidente beber muito ou estar tomando medicação. Ele pode sofrer de uma doença psicológica. Tudo isso já aconteceu no passado", afirma Perry.

Putin colocou seu arsenal em alerta máximo (Foto: Getty Images)
Quanto mais você pensa nisso, mais perturbadoras são as possibilidades. Se for à noite, o presidente estaria dormindo?

Com poucos minutos para decidir o que fazer, ele e seus assessores teriam pouco tempo para acordar completamente, que dirá tomar uma xícara de café.

Em agosto de 1974, quando o presidente norte-americano Richard Nixon envolveu-se no escândalo Watergate e estava à beira de renunciar ao cargo, ele foi diagnosticado com depressão e estava emocionalmente instável.

Houve rumores de que ele estava esgotado, bebendo em excesso e apresentando comportamento estranho. Aparentemente, um agente do Serviço Secreto flagrou-o uma vez comendo um biscoito para cães.

Nixon sempre foi conhecido por seus acessos de raiva, bebidas e por tomar fortes medicamentos controlados, mas isso era muito mais sério. Mesmo assim, ele ainda tinha o poder de lançar armas nucleares.

Embora emocionalmente instável, Nixon manteve a autoridade para lançar armas nucleares (Foto: Getty Images)
E o uso de entorpecentes também é um problema entre os militares que protegem o arsenal nuclear do país.

Em 2016, diversos membros da força aérea dos Estados Unidos que trabalhavam em uma base de mísseis admitiram o uso de drogas, incluindo cocaína e LSD. Quatro deles foram posteriormente condenados.

Como evitar um acidente catastrófico


Com tudo isso em mente, Perry escreveu um livro - The Button: The New Nuclear Arms Race and Presidential Power from Truman to Trump ("O botão: a nova corrida armamentista nuclear e o poder presidencial de Truman a Trump", em tradução livre) - em conjunto com Tom Collina, diretor de políticas da organização contra a proliferação nuclear Ploughshares Fund.

No livro, eles descrevem a precariedade da nossa atual proteção nuclear e sugerem possíveis soluções.

Antes de tudo, eles gostariam de ver o fim da autoridade única, de forma que as decisões sobre o lançamento ou não dessas armas de destruição em massa sejam tomadas democraticamente e o impacto de dificuldades mentais sobre a decisão seja diluído.

Nos Estados Unidos, isso significaria uma votação no Congresso. "Isso tornaria a decisão sobre o lançamento [de mísseis] mais lenta", segundo Perry.

Considera-se normalmente que a reação nuclear precisa acontecer com rapidez, antes que seja perdida a capacidade de contra-ataque.

Mas, mesmo se várias cidades e todos os mísseis dos Estados Unidos em terra fossem varridos por armas nucleares, o governo sobrevivente poderia ainda autorizar o lançamento de submarinos militares.

Uma forma de contra-atacar ataques nuclears é com submarinos (Foto: Getty Images)
"A única forma garantida de retaliação ocorre quando você sabe [com certeza] que eles estão atacando. Nós nunca devemos reagir a um alarme que poderá ser falso", segundo Collina. E a única forma realmente confiável de garantir que uma ameaça é real é esperar que ela atinja a terra.

Reduzir a velocidade de reação faria com que os países mantivessem os benefícios de dissuasão oferecidos pela destruição mútua garantida, mas com redução significativa da possibilidade de iniciar uma guerra nuclear por engano, por exemplo, quando um urso começar a subir uma cerca.

Em segundo lugar, Perry e Collina defendem que as potências nucleares comprometam-se a usar armas nucleares apenas em retaliação, sem nunca serem as primeiras.

"A China é um exemplo interessante porque ela já tem uma política de não ser a primeira a usá-las", afirma Collina.

"E existe alguma credibilidade nessa política, já que a China separa suas ogivas [que contêm o material nuclear] dos mísseis [o sistema de lançamento]."

A China e a Índia são as duas únicas potências nucleares que se comprometeram
com a política da NFU (Imagem: Getty Images)
Isso significa que a China precisaria reunir os dois antes de lançar um ataque e, com tantos satélites observando constantemente, é de se supor que alguém notaria esse movimento.

Curiosamente, os Estados Unidos e a Rússia não têm essa política. Eles se reservam o direito de lançar armas nucleares, mesmo em resposta a métodos de combate convencionais.

A adoção da política de "não usar primeiro" foi analisada pelo governo de Barack Obama, mas eles nunca conseguiram chegar a uma decisão a respeito.

Por fim, os autores do livro argumentam que seria benéfico que os países se desfizessem por completo dos seus mísseis balísticos intercontinentais em terra.

Por poderem ser destruídos por ataques nucleares inimigos, eles são as armas que seriam mais provavelmente lançadas às pressas em caso de suspeita de um ataque sem confirmação.

Outra possibilidade seria permitir o cancelamento dos mísseis nucleares, caso se descubra que uma provocação é, na verdade, um alarme falso.

"É interessante, pois, quando fazemos voos de teste, eles conseguem fazer isso", afirma Collina. "Se saírem do curso, eles podem autodestruir-se. Mas não fazemos isso com mísseis vivos, com receio de que o inimigo consiga de alguma forma o controle remoto e possa desarmá-los."

E existem outras formas em que a tecnologia de um país pode ser usada contra ele próprio.

À medida que nos tornamos cada vez mais dependentes de sofisticados computadores, existe a preocupação crescente de que hackers, vírus ou robôs possam iniciar uma guerra nuclear.

"Acreditamos que a possibilidade de alarmes falsos tenha aumentado com o crescimento do risco de ciberataques", afirma Collina.

Um sistema de controle poderá, por exemplo, ser levado a acreditar que um míssil está a caminho, o que poderia convencer o presidente a contra-atacar.

O maior problema, naturalmente, é que as nações querem que suas armas nucleares reajam rapidamente e sejam fáceis de usar - disponíveis a apenas um botão de distância. Isso inevitavelmente dificulta o controle do seu uso.

Embora a Guerra Fria tenha terminado há muito tempo, Collina indica que ainda estamos preparados para um ataque não provocado vindo do nada - quando, na realidade, passamos anos vivendo em um mundo radicalmente diferente.

Ironicamente, muitos especialistas concordam que a maior ameaça ainda vem dos próprios sistemas de lançamento projetados para nos proteger.

Leia também:

Por Zaria Gorvett (BBC Future)

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