“Não é nem por briga que a gente não desiste, não, mas por amor e saudade. Levaram aquelas 154 pessoas do nosso convívio e nos querem tirar também a dignidade. Não existe ainda o fechamento dessa história; não é só no dia 29 [de setembro] que a gente quer ser lembrado. Espero mesmo que um dia isso seja respeitado”.
Cinco anos depois, ainda é com lágrimas e uma nada imperceptível revolta na voz que a empresária de Curitiba Rosane Amorim Gutiah, 53, se refere ao acidente que matou as 154 pessoas a bordo do Boeing 737-800 que fazia o voo 1907, da Gol Linhas Aéreas. Entre as vítimas estava o marido da empresária, Rolf Ferdinando Gutjahr, então com 51 anos.
Familiares de passageiros choram enquanto aguardam informações sobre o voo 1907 da Gol, em Brasília. Foto: Denio Simões/Reuters |
Assim como Rosane, outros personagens envolvidos na tragédia que chocou o país e estampou as capas de jornais em todo o mundo ainda acompanham abismados a falta de respostas –da Justiça e das autoridades brasileiras e norte-americanas– proporcionais a um acidente que, na ocasião, se apresentava como o pior na história da aviação nacional. Além da grande comoção pelas histórias de vida das 154 pessoas, o episódio também maculou definitivamente, com reflexos vistos ainda hoje, a aparentemente inviolável segurança do espaço aéreo do país.
O Boeing havia decolado de Manaus (AM) com destino ao Rio, com escala em Brasília, mas foi atingido pelo Legacy da empresa de táxi aéreo americana ExcelAire, fabricado pela Embraer, pilotado pelos norte-americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino.
A FAB (Força Aérea Brasileira) e a Polícia Federal apontaram nas investigações do acidente que Paladino e Lepore agiram com "negligência" ao voarem durante cerca de 50 minutos com o transponder (equipamento anticolisão) desligado. Mesmo assim –e a despeito de outros relatórios técnicos que apontaram uma sequência de outras imperícias dos dois pilotos–, o máximo obtido por amigos e familiares das vítimas que buscaram algum tipo de conforto nas condenações judiciais foram penas revertidas em serviços comunitários.
Cronologia do caso
29.set.2006 - O Legacy se choca com Boeing da Gol a a 37 mil pés de altitude, na região norte de Mato Grosso, próximo ao município de Peixoto de Azevedo; o Boeing cai e o Legacy consegue pousar cerca de 20 minutos depois
01.jun.2007 - Processos contra os pilotos norte-americanos Jan Paul Paladino e Joseph Lepore e cinco controladores de voo são instaurados na Justiça Federal de Sinop (MT)
10.dez.2008 - relatório final do Cenipa apontou que uma série de fatores causaram o acidente, tais como o pouco conhecimento dos pilotos sobre a aeronave, ausência de planejamento de voo, falta de comunicação entre pilotos e o controle do espaço aéreo e falhas técnicas cometidas por controladores
08.dez.2008 - Juiz Federal Murilo Mendes absolveu, em primeira instância, os dois pilotos das acusações de negligência e mantêm as de imperícia; três controladores são absolvidos, e o controlador Lucivando Tibúrcio de Alencar é condenado
Fev.2009 - MPF recorre da decisão e pede que sejam mantidas as acusações contra os pilotos e controladores. A Procuradoria solicitou também que o processo fosse julgado no TRF, alegando que a Justiça de Sinop não tinha condições de julgar o processo
11.jan. 2010 - TRF suspende absolvição aos pilotos do Legacy e manteve a mesma decisão da Justiça de Sinop sobre os controladores. Processo volta à primeira instância
30.mar.2011 - Joshep Lepore e Jan Paul Paladino são interrogados pela Justiça brasileira via videoconferência
16.mai.2011 - Pilotos são condenados a mais de quatro anos de prisão em regime semiaberto; a pena foi substituída por serviços comunitários
19.mai.2011 - Justiça condena controlador Lucivando à pena de três anos e quatro meses de reclusão, substituída pela prestação de serviços comunitários e proibição do exercício da profissão
18.jul.2011 - MPF recorre da decisão, alegando que as penas não deveriam ser cumpridas com serviços comunitários
Providências à Justiça, cobranças ao governo
No próximo dia 5 de outubro, membros da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907, organização criada em 18 de novembro de 2006, se reúnem com representantes do Ministério das Relações Exteriores, no Palácio do Itamaraty. O objetivo é solicitar ao governo brasileiro que sejam cobradas providências por erro grave dos dois pilotos à agência que regula a aviação civil nos EUA.
O grupo ainda tenta marcar uma audiência com a presidente Dilma Rousseff para entregar a ela um abaixo-assinado em que já constam aproximadamente 160 mil assinaturas com o pleito apresentado ao ministério.
Na Justiça, mês passado a associação interpôs um recurso de apelação ao juízo de segundo grau, no TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), em Brasília, solicitando a reconsideração da decisão de primeira instância. O caso ainda não foi julgado no tribunal.
“Cinco anos após e ainda estamos começando a segunda instância dos processos criminais. O Código Penal até prevê a substituição da pena, mas não em um caso em que houve 154 mortos –isso é absolutamente desproporcional”, afirma o advogado da associação, Dante Daquino.
Para o advogado, a culpa pela tragédia, diferentemente do atestado pela Justiça a partir de posicionamento do MPF (Ministério Público Federal), não pode se estender também aos controladores de tráfego aéreo que não teriam passado as instruções corretas aos pilotos norte-americanos.
“Não entendemos que eles foram culpados: consultamos experts da área e verificamos que, pela caixa de voz, nos diálogos dos dois pilotos, a responsabilidade foi deles. Fazendo uma analogia, é como se em um acidente de trânsito com mortes, com o causador acima da velocidade permitida, na via errada e com a luz apagada, o responsável fosse o guarda de trânsito”, disse.
"Ali morreram passado, presente, planos, sonhos"
"Ali morreram passado, presente, planos, sonhos"
À frente nas decisões da associação, da qual é uma das diretoras –ela representa os familiares da região Sul do Brasil–, a empresária Rosane não esconde a revolta com a decisão da Justiça Federal do MT. O sentimento, diz ela, é de desolação.
“Com todas as provas técnicas de que os pilotos erraram, com caixas de voz que revelam que eles levantaram voo com o TCAS [do inglês, Traffic Collision Avoidance System, ou "Sistema Anticolisão de Tráfego"] desligado, com a falsa afirmação deles de que estavam habilitados a voar em uma distância de 1.000 pés para outra aeronave –o que o próprio Cenipa atestou depois que era mentira... Eles vieram, mataram 154 pessoas e agora querem tirar de nós também a dignidade?”, questiona. “Imagine que muitos morreram com a queda da aeronave no solo, após quase dois minutos em queda; o corpo de uma mulher estava agarrado ao filho de oito meses, alguns mal tiveram o que enterrar...”, relata.
No caso da empresária, o marido voltava de Manaus, onde a família tem negócios na área de eletrônicos na Zona Franca. Ela conta que ele estava habituado a fazer o percurso a cada 15 dias, mas mudou a frequência para uma vez por semana depois que o casal adotou uma criança –à época do acidente, com quatro anos.
“Morreram junto um passado, presente, futuro, planos, sonhos, e não só meus como de uma porção de gente. Morreram muitas coisas ali. Até há pouco tempo minha filha deixava os chinelos do pai na porta porque ela tinha esperança de que ele voltaria. E como ele disse que vinha vê-la, nesses anos todos ela achou que fosse a culpada”.
A empresária admite que o processo judicial é moroso, mas diz ter esperanças de que o governo brasileiro cobre o norte-americano com ênfase. “Qualquer um que veja as transcrições dos diálogos dos pilotos [do Legacy] entende com muito mais propriedade toda a nossa revolta. Por isso capitulamos que esse caso seja julgado como homicídio com dolo eventual [em que o autor, mesmo que sem intenção de matar, assume os riscos da prática do ato]”, pondera a empresária. “A gente espera que no TRF os juízes sejam imparciais, olhem e analisem as provas e julguem como juristas, como seres humanos, que não permitam que esse crime fique dessa forma”.
E é a prevenção a novas tragédias, diz a representante das famílias, o que norteia o abaixo-assinado que a associação espera entregar a Dilma –a qual, ainda candidata à presidência, disse no debate promovido pelo UOL e pela Folha de S.Paulo, taxativa: o choque entre as aeronaves fora por “falha humana”. “Que a presidente nos ajude a dar um fechamento nisso. Não vai nos ajudar a trazer de volta as pessoas que se foram, mas impede que se deixe um precedente aberto”.
O abaixo-assinado e todo o material compilado pela associação a respeito das investigações, nos últimos cinco anos, está no site da organização. No Facebook, o movimento busca adesões na causa "190 milhões de vítimas – voo 1907".
O que aconteceu no dia 29 de setembro de 2006
Por Janaina Garcia (UOL Notícias)