segunda-feira, 9 de maio de 2011

O que aconteceu com o voo 447 da Air France? - Parte 6


Imagens do resgate da segunda caixa-preta do voo 447 - Foto: AP

No Alucia nesta primavera, enquanto os cientistas de Woods Hole examinavam as primeiras fotos do voo 447, eles viram mais do que um trem de pouso, turbinas e asas. Eles também viram corpos de pelo menos 50 passageiros espalhados por uma planície abissal na base das montanhas. Enquanto continuavam as buscas, eles encontraram uma parte da fuselagem danificada não muito longe e grande o suficiente para conter mais passageiros. Membros da equipe me disseram que um silêncio sombrio caiu sobre o navio e à medida em que a notícias dos corpos se espalhava pelo mundo, uma questão perturbadora começou a surgir.

Na água quase congelada, a duas milhas de distância, os corpos seriam extraordinariamente frágeis, mas também estariam conservados mais completamente que os daqueles que foram encontrados flutuando na superfície dois anos antes. Protegidos pela luz e quase que sem nenhuma presença de microorganismos, eles podem oferecer novas respostas não apenas sobre o que aconteceu no voo 447, mas também sobre como foi o fim dos homens e mulheres a bordo. A pergunta é se alguém vai querer saber sobre isso.

Uma manhã em Paris, parei no apartamento de Perola Milman, uma física quântica que perdeu seu marido, Ivan, no acidente. Milman é uma mulher esbelta e atlética que nasceu no Brasil, com pele cor de caramelo e um nariz aquilino. Nos sentamos de frente um para o outro na sala de estar, enquanto seus dois filhos brincavam por perto. Antes do acidente, Perola e Ivan sonhavam se mudar para a cidade francesa. Depois da tragédia, ela finalmente se mudou sem ele.

“Eu não podia mais ficar na nossa casa”, disse ela. “Não podia. Tive que seguir adiante. Por isso simplesmente fui embora. Deixei toda a mobília lá. Todas as minhas roupas. Tudo. Eu tinha de fazer isso.”

Ela virou a cabeça para ver os filhos, depois disse: “Crianças são incríveis, sabe? Uma psicóloga me disse depois do acidente que as crianças não têm senso de morte até os 6 ou 7 anos.

Mas eu questiono isso radicalmente. Quando aconteceu, José tinha 4 anos. E é claro que é uma conversa que nunca vou esquecer. Eu disse a ele, 'olha, houve um acidente com o avião do papai e ele não vai voltar pra casa.' E ele começou a chorar e eu nunca o havia visto chorando antes. Ele dizia 'mas tinha tantas coisas que eu queria fazer pra ele'.”

Os olhos de Milman ficaram marejados de lágrimas, mas ela continuou. “Sou uma cientista. Sei que algo concreto aconteceu com aquele avião. Mas não posso deixar de desejar o mistério. Não quero que tragam os corpos à tona. Não quero que isso tudo venha à superfície. Tenho essa necessidade de virar a página. É muito estranho imaginar que existe esse lugar e que meu marido está lá, vestindo as mesmas roupas que usava na última que o vi... E seu anel... E sua corrente no pescoço...” Sua voz desapareceu e ela sorriu.

No dia seguinte, visitei o apartamento de John Clemes, cujo irmão, Brad, havia partido do Rio num avião que iria se tornar o voo 447, à bordo do qual ele subiu novamente quando descobriu que não poderia entrar no Brasil sem um visto. Depois do acidente, Clemes e Milman ficaram amigos, mas a questão sobre trazer à tona os mortos pairava sobre eles.

Por mais que Milman sentisse o desejo profundo de deixar se marido nas profundezas, Clemes sentia uma obrigação de trazer seu irmão de volta para casa. “É horrível pensar que eles estão perdidos”, ele me disse. “Não existe corpo, não existe adeus, apenas... Sumiu. Nas primeiras semanas eu achei que eles iam achar o avião. Não podia imaginar que eles não iriam conseguir.”

Antes do anúncio feito pelo Alucia no mês passado, essas diferenças poderiam ser colocadas de lado, consideradas distantes e imateriais, mas a descoberta fez com que elas se manifestassem. Depois de menos de 24 horas, a ministra francesa da ecologia e transporte, Nathalie Kosciusko-Morizet, anunciou na televisão que "os corpos serão trazidos à tona e identificados.” Mas ainda não se sabe se será possível manter essa promessa. O BEA afirma que a o navio de recuperação no Ponto Tasil irá tentar localizar a caixa preta primeiro. Numa recente reunião, a ministra declarou que a embarcação tentará trazer um corpo usando o mesmo sistema com garra-e-cesta.

Especialistas em medicina legal afirmam que o procedimento é perigoso e arriscado. Depois de dois anos, os copos podem ser recuperáveis, mas eles terão uma consistência frágil e mole, que pode se desintegrar na garra robótica. Alguns especialistas dizem que os corpos deveriam ser fotografados exaustivamente por câmeras 3D antes que a recuperação da caixa preta tenha início. O processo de recuperação os destroços já pode ter dado inicio a turbulências no fundo do mar.

Mesmo que os corpos possam ser removidos, a questão de se eles devem ou não ser recuperados ainda é difícil de responder. No fim, a decisão é binária: ou todos os corpos são recuperados, ou eles são deixados no fundo. Mas essa é uma escolha que não poderia existir há uma década; é uma que só poderia ter surgido das estranhas circunstâncias do voo 447. Devido ao fato de o avião ser utilizado de forma tão ampla que seu desaparecimento teve de ser explicado. Porque a única explicação está na recuperação da caixa preta – um equipamento arcaico que está caminhando para se tornar obsoleto, mas ainda não estã. Porque as ferramentas e tecnologias para localizar essas caixas nas profundezas da dorsal oceânica estão disponíveis pela primeira vez agora. E assim, para desvendar o mistério mecânico, a conclusão para as famílias terá de esperar. Eles terão de se perguntar se suas mães e irmãos e irmãs voltariam para casa. Eles teriam de se debater com essa possibilidade, cada família sozinha, dividida dentro de si mesma e as vezes também por dentro.

Descendo de um avião no Brasil numa tarde, percebi que havia um e-mail marcado como urgente de Mary Miley, cuja irmã, Anne Debaillon Harris, estava no avião com seu marido, Mike, indo passar duas semanas em Paris. Anne e Mike eram os dois únicos americanos a bordo, e eu havia conversado com Miley talvez uma dúzia de vezes, às vezes por mais de duas horas.

Havia algo em Anne que me fazia voltar a ela. Eu poderia dizer que eram seus olhos, seu sorriso ou algum outro detalhe das fotos dela que eu vi, mas as histórias de Miley sobre sua irmã eram nostálgicas. Ela descreveu a luta de Anne contra o câncer aos 20 e poucos anos, o miniderrame no seu lado esquerdo, suas enxaquecas e ataques de fibromialgia que a acometiam por dias seguidos. Mas eu também ouvi os amigos de Anne falando sobre como no Rio muitos desses problemas pareciam desaparecer, pelo menos o bastante para permitir que Anne, uma garota da cidade de Lafayette, Louisiana, pudesse experimentar uma vida completamente diferente daquela que ela conhecida, passeando por mercados metropolitanos, barganhando com vendedores de rua e aprendendo a sambar. Eu me flagrei explorando seu bairro no Rio e dirigindo pelos morros no lado oeste da cidade para conhecer o bar num terraço onde ela e seus amigos iam à noite, olhando as praias enquanto as ondas se quebravam nas rochas lá embaixo.

E como sempre, eu entrava em contato com Miley para compartilhar com ela o que eu havia visto e ouvido – e para fazer mais perguntas sobre Anne. Agora Miley também tinha uma pergunta para fazer. Depois da queda, a empresa de petróleo de Mike havia fechado o apartamento deles, suas contas, e enviado para casa todos os seus pertences. Com uma exceção: as joias de Anne, ela havia descoberto recentemente, ainda estavam na empresa no Rio. Ela se perguntava se eu poderia trazê-las para ela. Na minha última manhã no Brasil, peguei três caixas de joias de Anne na empresa de petróleo e, alguns dias depois, aterrissei em Louisiana para entregá-las à senhorita Miley. Ela me recebeu na porta com um abraço e nos sentamos juntos diante uma mesa enquanto ela colocava os objetos de Anne na nossa frente – uma anel turquesa, uma bracelete fino, um colar com minúsculas pedras escarlates – dizendo coisas como "oh, Anne, este aqui, não sei não..."

Mas, quando abriu a última caixa, ela ficou congelada. A cor sumiu de seu rosto enquanto ela colocava a mão dentro da caixa, tirando um colar de pérolas. Ela as abraçou contra o peito e apertou os olhos. Depois de um longo silêncio, ela olhou para cima. “São as pérolas da mamãe”, disse. No dia anterior, eu havia ligado para Miley para lhe contar a respeito do voo 447 e sabia que ela ainda estaria lutando com os próprios sentimentos. Durante semanas, ela havia ido e voltado entre emoções diferentes. Um dia, ela dizia: “Não me importo se a encontrarem. Não vou trazer Anne de volta”.

Mas, no dia seguinte, ela me enchia de perguntas sobre como os submarinos funcionavam e se eles tinham mesmo uma chance de conseguir. Agora ela estava sentada tranquilamente com as pérolas. Ela as rolava entre os dedos. “Esta talvez seja a última coisa dela que terei”, disse ela. Seus olhos estavam vermelhos e cansados. “Espero que eles possam trazê-la de volta. Quando não havia motivo para ter esperança, eu não tinha. Mas agora que existe, eu tenho esperança.”

Leia a reportagem original publicada neste domingo no New York Times.

Fonte: Wil S. Hylton (New York Times) via G1

Um comentário:

Unknown disse...

Acho muito interessante essa história, quero me aprofundar mais no conteúdo