Para sobreviver, ela passou 15 horas agarrada a um pedaço da fuselagem.
Em meados do ano passado, um avião com 153 pessoas a bordo caiu no litoral africano e só uma pessoa sobreviveu. Bahia Kassim tinha 12 anos quando foi resgatada do Oceano Índico, onde o avião em que viajava com outras 152 pessoas - inclusive a mãe dela - se espatifou.
A menina, agora com 13 anos, aos poucos recupera o sorriso. Bahia vive na periferia de Paris, com o pai e os três irmãos menores.
Bahia e a mãe, Aziza, iam ao casamento de um parente nas Ilhas Comores, na costa leste africana. O pai de Bahia, lixeiro, conta que decidiu dar a viagem à filha mais velha como um prêmio pelas boas notas na escola.
“Como não tinha dinheiro para toda família, decidi enviar apenas as duas. E eu fiquei em casa, com as crianças” conta o pai, Bakari Kassim.
Primeira viagem
A adolescente ia conhecer a terra dos pais, que migraram para a França na década de 80. Praticamente, era sua primeira viagem de avião. “Viajei uma vez quando era pequena, mas nem lembrava mais”, diz Bahia.
A viagem começou em Paris. Em Sanaa, capital do Iêmen, mãe e filha trocaram de aeronave e embarcaram em um airbus 310 da Yemenia, a principal companhia aérea do Iêmen, rumo às Ilhas Comores.
Mesmo inexperiente em viagens aéreas, Bahia percebeu que o segundo avião tinha algo de errado. Ela não se sentiu à vontade no voo 626 da Yemenia.
“Dos banheiros vinha um mau cheiro e tinha até moscas a bordo”, lembra Bahia. A menina trocou de lugar com outro passageiro para ficar ao lado da mãe e sentou-se junto à janela. “Eu não estava no lugar onde deveria estar”, conta.
Quatro horas depois de decolar, o avião se aproximou do aeroporto de Moroni, a capital do arquipélago de Comores. As aeromoças pediram para apertar os cintos. Através da janela, Bahia enxergou as luzes da cidade. Eram 3h40 da madrugada de 30 de junho.
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De acordo com as investigações feitas pelas autoridades da França, do Yêmen e de Comores, ventos fortes atingiam a região. “Neste momento, quando descíamos, eu senti o avião tremer. Achei que isso não era normal. E olhei para a minha mãe”, lembra Bahia. De repente, um estrondo. Bahia sente um choque, como uma descarga elétrica no corpo, e desmaia.
Ela acorda no mar, na escuridão do Oceano Índico. “No início, ouvia vozes de mulheres que gritavam ao meu redor”, conta. Atordoada, Bahia dorme agarrada a um pedaço da fuselagem do Air Bus. Quando desperta, não há mais vozes.
Ainda confusa, a menina acha que somente ela caiu do avião. Imagina que tenha despencado pela janela e acredita que todos os demais passageiros estão no aeroporto, à sua espera. Parece um pesadelo. "Na minha cabeça, minha mãe estava preocupada, perguntando por mim. Naquele momento, eu só queria encontrá-la", diz Bahia.
As buscas começaram imediatamente. Equipes de resgate, da França e de Comores, sobrevoaram o oceano à procura dos destroços.
Bahia passou 15 horas à deriva, engolindo àgua salgada misturada com querosene do avião. “Mesmo tentando fechar a boca, de vez em quando, entrava água” conta a jovem.
Ao responder como ela fez para não se afogar, Bahia afirmou: “Só sei que agarrei um pedaço da fuselagem e que dormi em cima. E não larguei mais”.
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Enquanto isso, na França, o pai de Bahia esperava, angustiado, por notícias. “Confesso que já tinha perdido as esperanças” admite Bakari.
Bahia também achava que não seria encontrada. Mas um barco pesqueiro localizou a menina. "De repente, escutei a voz de um homem me chamando”, ela lembra.
A jovem estava tão fraca que não conseguia responder. Ela foi resgatada e levada de barco à terra firme. O pai só acreditou quando viu a filha no hospital. “Fiquei dividido, porque perdi a mãe dela... Era tristeza de um lado, mas alegria do outro”, revela Bakari .
Bahia teve queimaduras no rosto, nas pernas, quebrou a clavícula e o quadril. Como é que um ser humano pode sobreviver a um acidente aéreo e passar 15 horas em condições extremas?
Ela conseguiu passar por alguma fresta do avião, por algum buraco da fuselagem que não a levou para baixo do oceano.
“Ou ela, instintivamente, soltou o cinto ou ela estava sem o cinto, porque ela também não afundou com a poltrona”, explica Agnaldo Pispico, da Sociedade de Cardiologia de São Paulo.
A água provavelmente não estava muito gelada.
“Ela teve sorte, de estar com a sua maior superfície do corpo fora da água, só ficando as pernas. Ela perdeu pouco calor”, diz o médico. Assim, a adolescente evitou a hipotermia, o choque térmico causado pelo frio.
Ainda importante no caso da sobrevivente é que ela não teve sangramentos importantes. Não teve hemorragia interna.
O Airbus A310 era uma das piores aeronaves de uma companhia de 'sucatas'. Há três anos, a Yemenia foi reprovada em uma inspeção e ficou proibida de voar na Europa. A caixa preta foi encontrada no Oceano Índico, mas as investigações, até hoje, não chegaram a uma conclusão.
“Não recebemos indenização alguma. Mas não esperamos nada da empresa. Continuamos nossas vidas, pois mesmo que eles nos deixassem ricos agora, nada substituiria a falta que faz a mãe dos meus filhos”, revela o pai da jovem.
Pesadelo
Ao responder se Bahia tem pesadelos, a menina diz que tinha no início, mas agora passou. E sente muitas saudades da mãe: “A última lembrança que tenho é do cansaço da minha mãe, preparando a viagem, os presentes. Eu não tenho mais a minha mãe, isso é fato. Mas meu caráter e minha personalidade penso que isso não mudou, não. Nem minha maneira de agir”.
Depois de pensar um pouquinho, ela completa: “Bem, tudo muda um pouco, sim”.
Oito meses depois da tragédia, Bahia tenta reconstruir a vida. Sorridente, diz que continua sendo uma boa aluna. E o pai confirma. Ao responder se ela seria uma boa filha também, ele diz, mantendo o tom de brincadeira: “Isso eu já não sei, não”.
E o que a sobrevivente de uma tragédia aérea espera do futuro? “Continuar meus estudos, me tornar médica, poder curar”, diz Bahia.
Bahia responde por que ela acha que Deus apontou o dedo para ela, no meio de 153 pessoas: “Não tenho a menor idéia”.
Um livro sobre a incrível história de Bahia foi lançado na França. “Naquele avião morreu muita gente. Mas Bahia está aqui. Ela é como um símbolo. Por isso aceitamos dar esta entrevista, para que pais e filhos brasileiros percebam que enquanto há vida, há esperança”, afirma o pai Bakary.
Fonte: Fantástico (TV Globo) via G1 - Stephane De Sakutin/AFP/Getty Images - Arte: AFP