segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Oito anos depois do 11 de setembro, o legado sangrento dos erros de Cheney

Depois dos atentados de 11 de setembro, Cheney reinou sobre os Estados Unidos. A "guerra contra o terror" foi ideia dele, e isso levou a guerras reais no Afeganistão e no Iraque - e à tortura que ele aprovou e defende. Enquanto Cheney está escrevendo suas memórias para influenciar a forma como as pessoas veem o seu papel, o resto do mundo preferiria simplesmente continuar limpando a bagunça que ele deixou - com o ex-vice-presidente americano fora de cena.

Dick Cheney (foto acima) comprou uma casa em McLean, uma comunidade de classe alta na Virgínia, Estado em grande parte rural. Apesar de estar convenientemente localizada perto de Washington, DC, parece de certa forma isolada da movimentada capital dos EUA. Oito presidentes norte-americanos nasceram nesse Estado, e pode ser, simplesmente, que Cheney veja a si mesmo como um igual, uma vez que, afinal de contas, ele também serviu como presidente - por três anos e meio. Ou talvez seja mais acurado dizer que George W. Bush serviu como presidente no governo de Cheney, cuidando de assuntos menores enquanto Cheney tomava conta do mais importante. Dick foi responsável pela estratégia dos EUA no século 21.

Cheney está ocupado escrevendo suas memórias. Levando em conta que ele é um homem reservado, conhecido por manter as coisas em segredo, a notícia deixou muitas pessoas espantadas nos EUA. Ele é alguém que costumava fazer perguntas ou apenas ouvir em silêncio e fazer anotações para uso pessoal depois de muitas reuniões na Casa Branca, no Pentágono e nos escritórios da CIA. Ele é o informante máximo - e alguém que não dá muito valor ao reconhecimento por parte do público em geral.

Ao escrever suas memórias, um homem como este é motivado por mais do que uma boa opinião sobre si mesmo. O pouco que sabemos sobre as memórias vêm de alguns de seus seguidores fieis que receberam o sinal verde para deixar vazar que Cheney está usando a oportunidade para esclarecer várias coisas que ele acha que foram deturpadas. Ele atribui a culpa pela infeliz mudança de rumo dos últimos anos ao governo de George W. Bush, o homem que o desapontou enormemente durante seu segundo mandato ao ignorar seus conselhos. Na visão de Cheney, Bush mostrou fraqueza moral e não percebeu que o foco de todas as considerações precisava continuar na "guerra contra o terror". Isso foi um erro imperdoável de proporções históricas, que - como Cheney vem dizendo publicamente há meses - Barack Obama está prolongado por ignorância.

Explicando porque você não precisa explicar

A guerra contra o terror foi ideia de Cheney. Desde 11 de setembro, ela guiou as relações dos EUA com o resto do mundo, e ela se tornou uma guerra real, no mundo real, duas vezes. Começar a guerra no Afeganistão foi algo politicamente óbvio; visto como uma guerra boa e justa que infelizmente não levou aos resultados desejados, conforme os EUA estão lentamente começando a perceber. Cheney pressionou incansavelmente pela guerra no Iraque e manipulou as justificativas para a intervenção militar. Desde o início, esta tem sido uma guerra ruim - e uma guerra errada. E, apesar de ele ter feito muita pressão para que ela acontecesse, a guerra contra os alvos nucleares do Irã nunca se materializou.

Agora ele está ocupado defendendo sua criação. Desde o 11 de setembro, ele também foi um homem particularmente entusiasmado. Em sua própria imaginação, ele foi escolhido para educar seu país, para assegurar que os EUA de fato compreendam o perigo mortal que virá à tona se os terroristas colocarem as mãos sobre as armas nucleares. Desde os ataques assassinos nos Estados Unidos há oito anos, ele desenvolveu uma teoria de "1%", que diz o seguinte: se houver apenas uma possibilidade remota de que países ou grupos possam representar perigo, os EUA precisam agir como se essa ameaça já estivesse firmemente estabelecida.

Hoje, agora que o mundo sabe tudo isso sobre ele, Cheney é um leproso político. Eles sabem de sua vontade de expandir os poderes presidenciais, da alegria que ele tem em manipular as agências de inteligência e de seu apoio a métodos de tortura como a tábua de água.

Eles sabem que Cheney está convencido de que pessoas como ele nunca devem admitir erros ou falhas e acredita que não seria inteligente para esse tipo de gente dar explicações sobre suas ações. "Nunca peça desculpas", diz ele. "Nunca explique". Então parece muito estranho que Cheney esteja escrevendo suas memórias.

"Você nunca sabe onde vai parar"

Ainda assim, é compreensível que a doutrina de Cheney tenha ganho um amplo apoio e parecido cada vez mais plausível, pelo menos por um tempo. Os responsáveis pelos ataques de 11 de setembro haviam se preparado para sequestrar quatro aviões e colidir com as Torres Gêmeas, o Pentágono e o Capitólio - ou seja, bem no coração dos Estados Unidos. Três dos aviões encontraram seus alvos; o quarto caiu na zona rural da Pennsylvania depois que passageiros heroicos invadiram a cabine e derrotaram os sequestradores.

Cerca de 3.000 pessoas morreram em Nova York, Pennsylvania e Washington. Mas os ataques também serviram como um toque de despertar repentino e horrível para o mundo e, acima de tudo, para os Estados Unidos. Não haveria nenhum "fim da história", como o escritor Francis Fukuyama havia previsto depois do colapso comunista. Agora, a solitária superpotência do mundo estava vulnerável e forçada a lidar com mais confusão e diferentes ameaças do que tinha durante a Guerra Fria.

Quando a Casa Branca se recuperou do estado de choque pós-11 de setembro, o presidente e seu vice convocaram os conselheiros para incontáveis reuniões com o objetivo de produzir uma estratégia contra o terrorismo. Mesmo que fosse apenas para acalmar o público, eles precisavam urgentemente transmitir a mensagem de que estavam agindo com prudência e determinação. Em momentos históricos como este, respostas formuladas às pressas são tão arriscadas quanto inevitáveis.

A situação talvez tenha sido mais bem expressa num discurso lacônico atribuído a George Kennan, um diplomata norte-americano, cientista político e historiador, que surgiu com a estratégia de contenção durante uma era de intensa rivalidade entre os EUA e a União Soviética. "Você sabe onde você começa", teria dito Kennan. "Mas você nunca sabe onde vai terminar."

Descobrindo o "Delta do Terrorismo"

Hoje, o mundo sabe que muito mais poderia ter começado depois do 11 de setembro.

A maioria das reuniões de estratégia depois do 11 de setembro foram assunto para oficiais de alto escalão, mas algumas não. Só depois de alguns anos vazou a informação sobre um grupo de intelectuais e professores que tinham o nome otimista de "Bletcheley II". Esse apelido foi cunhado em referência a Bletchley Park, uma propriedade rural na Inglaterra que ficou famosa durante a Segunda Guerra Mundial porque abrigava uma equipe de matemáticos e criptógrafos responsável por decifrar o código da máquina de guerra alemã.

Christopher DeMuth tinha algo semelhante em mente quando reuniu o grupo depois do 11 de setembro. Na época, DeMuth era presidente do American Enterprise Institute, um centro de estudos conservador que abriga a elite do Partido Republicano. Foi lá que Cheney fez (e continua fazendo) seus raros discursos que estabelecem o tom da reunião, que atraiam muita atenção. No que diz respeito à política, DeMuth e Cheney estão definitivamente do mesmo lado.

Bletchley II tinha o objetivo de descobrir o código dos terroristas aliados a Osama bin Laden. Os resultados foram resumidos num documento intitulado "Delta do Terrorismo". A palavra delta se refere a uma tríade que inclui a Arábia Saudita e o Egito, os dois países de onde vieram a maioria dos 19 sequestradores; o terceiro é o Irã.

O grupo pensou muito sobre as perspectivas para uma mudança de regime nesses países-chave, dois dos quais - a Arábia Saudita e o Egito - estavam entre os principais aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio há vários anos. De acordo com a conclusão final do grupo, um objetivo como este seria desejável, mas impraticável, e o mesmo valia para o Irã. Cheney, entretanto, sentiu que decidir contra a intervenção era um erro. Da mesma forma, na época, ninguém sabia com que ambição os mulás perseguiam as armas nucleares.

Mas o grupo pensava diferente no que dizia respeito ao Iraque.

Conforme DeMuth disse ao historiador Bob Woodward em seu livro "State of Denial", de 2006: "Concluímos que um confronto com Saddam era inevitável. Ele era uma grande ameaça - a mais perigosa, ativa e inevitável ameaça." Uma conclusão como esta deve ter soado como música para os ouvidos da Casa Branca.

E então os Estados Unidos entraram na "guerra contra o terror".

Zbigniew Brzezinski, que serviu como conselheiro de segurança nacional sob o governo do presidente Jimmy Carter, comentou ironicamente que isso era equivalente aos Aliados declararem guerra contra a blitzkrieg - a forma revolucionária de guerra motorizada dos nazistas - e não contra a Alemanha nazista propriamente dita. Na sua visão, o terror era uma tática - e não um indivíduo que podia ser combatido.

Mas Saddam Hussein era um indivíduo, um ditador que o mundo acreditava ser capaz de fazer praticamente tudo, incluindo produzir armas de destruição de massa e passá-las a grupos terroristas. E Osama bin Laden era um indivíduo, também, que poderia ser caçado no Afeganistão.

As lições do fracasso

Hoje, os Estados Unidos estão reduzindo seu envolvimento no Iraque, um movimento que é visto como um passo adiante. Ainda assim, uma nova onda de ataques está varrendo o país, apesar de ser difícil dizer se é o início de uma guerra civil entre sunitas e xiitas ou se a Al Qaeda se tornou mais ativa novamente. O passo adiante - pelo menos no que diz respeito a Washington - é que raramente há soldados norte-americanos entre as vítimas dos ataques.

As coisas também mudaram para pior no Afeganistão. Enquanto o país promoveu eleições que foram destruídas pela corrupção e compra de votos, um grande número de soldados da Otan morreu - e a aliança sofreu mais de 300 baixas apenas este ano. O Taleban está mostrando sua força ao lançar ataques no coração de Cabul. Depois de quase oito anos de guerra, há poucos sinais de estabilidade e reconstrução.

Se a missão toda continuar a estagnar durante os próximos meses, o governo Obama pode ter de considerar retirar as tropas do país. O que se provaria pelo menos tão difícil quanto foi no Iraque, pois a guerra e o terrorismo já se tornaram parte da vida diária nessa parte da Ásia e deixaram a região muito menos segura do que antes.

Na análise final, o fracasso na guerra serve como um ótimo aprendizado para as democracias. O fracasso foi a principal razão pela qual Bush virou as costas para o conselho de Cheney - e por que os Estados Unidos viraram as costas para os dois.

Quando o ex-secretário de Estado Henry Kissinger - o mestre da política exterior realista e de sangue frio - foi questionado certa vez sobre o motivo por que apoiava a guerra contra Saddam Hussein, ele deu esta resposta elucidativa: "Porque o Afeganistão não foi suficiente."

"O Afeganistão não foi suficiente"

O Afeganistão não foi suficiente porque a primeira parte da guerra contra o Taleban foi fácil de ganhar. Talvez o Afeganistão fosse suficiente se Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri tivessem sido capturados. Mas, em vez disso, a ferida continua aberta. Para os Estados Unidos, a tragédia é que os dois líderes da Al Qaeda escaparam.

Mas o que teria acontecido se o rico saudita e seu assistente, o cirurgião egípcio, tivessem sido mortos ou capturados? Essas perguntas de "e se" são populares nos Estados Unidos; são voos de imaginação que têm a vantagem de facilmente transcender a lógica da realidade. E a história sempre poderia ter sido diferente. Mas como?

Ninguém argumenta que isso teria evitado a guerra no Iraque. Mas, ao mesmo tempo, não há dúvida de que a habilidade desses dois altos comandantes da Al Qaeda para fugir de seus perseguidores acelerou as preparações para a guerra em Bagdá.

No final, uma vez que a boa guerra no Afeganistão não era suficiente, os Estados Unidos entraram numa guerra ruim contra Saddam Hussein.

Visto sob essa perspectiva, toda essa conversa sobre armas de destruição em massa não é nada mais do que uma grande ilusão, apoiada pela manipulação do governo sobre informações de inteligência da CIA para justificar a guerra. A retórica ideológica do "fim da tirania" e "extinguir o mal no mundo" é vista sob uma nova luz, como uma simples lábia neoconservadora. Os Estados Unidos foram humilhados; agora outros têm de sê-lo, também.

O legado de Cheney

A humilhação pode ser um impulso irresistível quando 3.000 pessoas morrem. A humilhação pede vingança, retaliação. Mas, então, um país como os Estados Unidos se permitiu ter ilhas totalitárias dentro de seu sistema legal, como a base naval norte-americana na baía de Guantánamo, onde a tortura era praticada. Isso não pode ser simplesmente varrido para debaixo do tapete. Essa ferida, também, está sangrando.

Obama presumivelmente não será capaz de evitar que acusações criminais sejam feitas contra alguns dos responsáveis. E, com frequência, a rede de comando terminava em Dick Cheney.

A guerra contra o terrorismo foi consequência do 11 de setembro; ela moldou a política externa dos Estados Unidos a partir daquele ponto.

Ela foi baseada no medo de que a história se repetisse. Mas embora as ditaduras possam ser permanentemente governadas pelo medo, as democracias não podem. As democracias se baseiam no otimismo, na esperança de que - apesar de todas as crises - as coisas ficarão melhores. E elas também se baseiam na expectativa de que medidas para combater ameaças como o terrorismo possam ser tomadas, mesmo que um alto risco persista.

Verdadeiras democracias só podem ser governadas pelo medo e a humilhação temporariamente. E elas aprendem com seus erros. Mas é precisamente aí que Cheney errou. Sua teoria é baseada numa pergunta , "e se?", voltada para o futuro. E se, ele pergunta, os terroristas atacarem com a bomba?

Mas o fato é que qualquer governo em qualquer país precisa tomar medidas de precaução, e daí é papel das instituições - como a polícia, fiscais de alfândega, guardas de fronteira, guarda costeira e, acima de tudo, agências de inteligência - colocar essas medidas em prática.

Depois do estado geral de ignorância que imperava no país antes do 11 de setembro, teria feito sentido chacoalhar essas agências do governo, reorganizá-las e prepará-las para qualquer contingência.

As estruturas burocráticas de poder estão no lugar certo para tomar as medidas que os ataques de oito anos atrás fizeram necessárias. É aí que o medo de que a história se repita deve levar a uma melhora na eficiência - dentro do espectro da lei.

Em suas memórias, Cheney defende sua criação. Mas, no mundo real, ela ruiu. Nós sabemos o que começou depois de 11 de setembro. Mas a pergunta real é: onde isso vai acabar - para os Estados Unidos, para o mundo e para Dick Cheney?

Fonte: Gerhard Spörl (Der Spiegel) - via UOL Notícias - Tradução: Eloise De Vylder - Foto: seattleweekly.com

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