A teoria da conspiração sobre a "chemtrail" (do inglês, chemical trail: 'trilha química') alega que os rastros deixados por alguns aviões são na verdade agentes químicos ou biológicos.
Desde outubro de 2020, circulam fotos em postagens do Facebook que remetem à teoria dos "chemtrails", segundo a qual os rastros de aeronaves visíveis no céu são compostos por produtos químicos deliberadamente espalhados por motivos secretos. Mas as fotos na verdade mostram uma variedade de elementos, como tanques usados em voos de teste para simular o peso dos passageiros e dispositivos para apagar incêndios. Outras foram manipuladas.
“Rastros Químicos sao Lançados Diariamente pra envenenar a todos. E muitos estão #cegos”, afirma o texto de uma das publicações compartilhadas mais de 450 vezes no Facebook (1, 2).
Captura de tela feita em 6 de maio de 2021 de uma publicação no Facebook |
A teoria da conspiração dos “chemtrails”, também conhecida como "smart dust", garante que os rastros brancos deixados no céu por aviões contêm produtos químicos tóxicos que são lançados no ar com vários propósitos secretos: esterilização, controle da mente, redução da população ou controle do clima.
O Grupo Keith, da Universidade de Harvard, dedicado à pesquisa em ciência do clima, tecnologia e geoengenharia, publicou um artigo sobre essa teoria, concluindo que ela é infundada e que a implantação de um programa em larga escala não poderia ser sigilosa.
A Revista Nuevo Hospital do Complexo Assistencial Zamora, da Espanha, também publicou em sua edição de junho de 2018 um estudo sobre essas conspirações. Apesar de admitir que a aviação pode impactar o meio ambiente devido à combustão emitida pelas turbinas, o estudo explica que os rastros deixados pelos aviões são compostos de vapor d'água condensado e produtos da combustão, e aponta que muitas das conspirações estão relacionadas à pouca compreensão das pesquisas meteorológicas realizadas na Espanha.
Ao contrário do que as postagens das redes sociais afirmam, as fotos viralizadas não são evidências para respaldarrespaldar essas teorias.
Rastros tóxicos?
Entre as imagens viralizadas, está uma fotografia de rastros brancos (foto acima).
Como explica o artigo da Revista Nuevo Hospital, “os aviões comerciais saem dos céus que sulcam, sob certas condições atmosféricas, um rastro branco resultante do vapor d'água repentinamente condensado pelas baixas temperaturas da atmosfera nessas altitudes e que é expelido junto com outros produtos de combustão por seus motores”. Este é um fenômeno denominado "rastro de condensação".
“A comunidade científica não aceita a existência de chemtrails, considerando que são rastros, ou cirrus [um tipo de nuvem]. Não encontramos referências a chemtrails na literatura científica, exceto algumas muito recentes que analisam o fenômeno em si do ponto de vista da psicologia social, mas rejeitam seu conteúdo”, apontam os autores do artigo.
Em setembro de 2000, a Agência de Proteção Ambiental (EPA), a Administração Federal de Aviação (FAA), a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (Nasa) e a Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa) divulgaram uma declaração em resposta a "múltiplos pedidos" recebidos sobre este assunto.
Nela, eles detalham como são formados esses rastros, “nuvens em forma de linha compostas de partículas congeladas", e em que condições eles permanecem no céu por mais ou menos tempo. Embora reconheçam seu impacto negativo na atmosfera, eles observam que "não representam uma ameaça direta à saúde pública" e que "evaporam quando as condições atmosféricas locais ficam secas o suficiente" para permitir isso.
Os tanques azuis
Outras fotos mostram a chanceler alemã Angela Merkel verificando grandes tanques azuis.
Uma dessas fotos foi publicada originalmente no site oficial do governo alemão em maio de 2014 e foi apresentada como uma visita da chanceler a um Airbus A350 no Berlin Airshow.
Comparação feita em 6 de maio de 2021 entre uma postagem do Facebook (à esquerda) e uma captura de tela do site bundesregierung.de |
Os tanques vistos nas fotos não são nada incomuns: são tanques de lastro usados em voos de teste, conforme explicado no site especializado Aero.de, em artigo sobre a visita de Merkel em 2014.
“Esses ballasts [tanques de lastro] fixos permitem representar cargas típicas, cenários típicos que puderam ser vistos nas operações das companhias aéreas”, explica a partir do minuto 2:30 de um vídeo um engenheiro de testes de voo do grupo canadense Bombardier Transportation.
“Durante os voos de teste, quando o avião está completamente vazio, o peso dos passageiros e assentos é simulado, substituindo-os por grandes tanques cheios de água”, esclareceu Xavier Tytelman, consultor de segurança da aviação, à AFP.
“O objetivo é poder distribuir a carga e modificar o centro de gravidade do avião como se fossem passageiros reais”, disse. "Quando se coloca um equipamento de rúgbi na traseira de um avião, é preciso verificar se isso não afeta a segurança do voo. E é melhor verificar isso com pesos do que com passageiros reais", acrescentou.
A existência desses tanques de lastro está amplamente documentada, conforme mostram estas fotos da agência Getty (1, 2) e outras disponíveis no banco de imagens Alamy (1, 2).
Uma foto que mostra o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump em um Boeing Dreamliner carregado com tanques semelhantes foi postada no Twitter em fevereiro de 2017 pela Casa Branca.
Mais tanques
Em outra foto se vê um homem caminhando dentro do que parece ser uma aeronave que transporta vários tanques cilíndricos. Uma busca reversa mostra que a imagem foi registrada em setembro de 2009 por um fotógrafo da agência Getty e mostra um piloto andando dentro do avião de testes MSN1, um Airbus A380 Superjumbo, “cheio de equipamentos de testes e quilômetros de cabos”.
Há também uma outra foto que data de pelo menos 2011 e mostra quatro grandes tanques de líquido dispersante de petróleo a bordo de uma aeronave DC-4.
Comparação feita em 6 de maio de 2021 entre uma publicação no Facebook (à esquerda) e a foto publicada em 2011 no portal semissourian.com |
Uma antena de baixa frequência
Outra foto que aparece sem qualquer explicação é a de um dispositivo vermelho acoplado à asa de uma aeronave.
Com uma pesquisa pela imagem foi possível identificar em um vídeo que se trata de uma antena de baixa frequência do Boeing E-6 Mercury, uma aeronave de alta tecnologia equipada com um sistema de controle de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais utilizada pela Marinha dos Estados Unidos como apoio à força submarina de mísseis balísticos.
Comparação feita em 10 de maio de 2021 entre uma publicação no Facebook (à esquerda) e a imagem de um vídeo postado em 2020 no YouTube |
Módulos de combate a incêndios
Outra foto compartilhada é a de um avião com a bandeira americana, a inscrição “Charlotte” e o número 31458. Na parte traseira da aeronave se veem vários tanques de cor branca. Essa imagem circula desde, pelo menos, 2012.
Uma busca no Google pelas informações vistas na imagem levou à página do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, onde há uma outra foto da aeronave acompanhada por um texto que menciona o modelo Hercules C-130, ao qual se pode acoplar um Sistema Modular de Combate a Incêndio Aerotransportado, usado para o combate aéreo de incêndios florestais.
Uma foto idêntica à compartilhada foi encontrada no banco de imagens do banco de imagens Alamy com a seguinte legenda:
“A equipe de voo se prepara para inserir uma unidade do Sistema Modular de Combate a Incêndio Aerotransportado em uma aeronave Hercules C-130 (...) para combater incêndios florestais. O sistema de tanque pressurizado contém 3.000 galões de líquido retardador de chamas, que pode ser descarregado em menos de cinco segundos”.
Módulos de combate a mosquitos
Uma outra imagem de dois grandes módulos no que parece ser o interior de uma aeronave também foi compartilhada sem qualquer descrição.
A busca reversa no Google não levou à foto original, mas a um registro semelhante disponibilizado no banco de imagens Alamy. Pela legenda, compreende-se que se trata de um Sistema Modular de Pulverização Aérea da Reserva da Força Aérea (MASS, na sigla em inglês) no convés de carga de uma aeronave Hercules C-130 H.
O Departamento de Agricultura dos EUA explica em seu site que a Força Aérea americana utiliza a aeronave C-130 em operações de pulverização aérea em grandes áreas para o controle de insetos de importância médica.
No site da Popular Mechanics, revista especializada em inovações, há uma reportagem, de setembro de 2017, sobre o uso de aviões de transporte militar para espalhar inseticidas e combater mosquitos. Uma das fotos que ilustra o artigo se assemelha à compartilhada nas publicações. A imagem creditada à Força Aérea mostra o interior da aeronave C-103 e tem a seguinte legenda: “Tanques de pulverização MASS instalados dentro de um Hercules C-130H”.
Comparação feita em 11 de maio de 2021 entre uma publicação no Facebook (à esquerda) e a imagem de uma foto postada no site Popular Mechanics |
Um escudo irônico
Outras fotos das postagens viralizadas no Facebook mostram pilotos de companhias aéreas e dois homens com uniformes do Exército dos Estados Unidos e um escudo que diz #TEAMCHEMTRAIL
Capturas de tela feitas em 6 de maio de 2021 de um álbum postado no Facebook |
O escudo foi publicado pela primeira vez e colocado à venda como uma brincadeira em um site atualmente inativo. "Estamos constantemente trabalhando duro para apresentar a você novas e melhores maneiras de esclarecer e assustar todos os teóricos da conspiração", diz a seção "quem somos" do site.
"Este patch foi originalmente criado por pilotos americanos em resposta à teoria da conspiração de uma forma satírica", disse à AFP um dos administradores da conta alemã no Twitter, criada em 2011 para ironizar a teoria.
Um avião tanque
A busca reversa por outra imagem compartilhada sem explicação no Facebook levou a um site ucraniano onde a mesma foto pode ser vista com a especificação de que se trata de uma aeronave Ilyushin IL-78.
O avião-tanque de reabastecimento ar-ar Ilyushin IL-78 é um tanque de quatro motores usado principalmente para reabastecimento em voo, como pode ser visto neste vídeo.
A aeronave Ilyushin IL-78 pode reabastecer no máximo quatro aviões simultaneamente no solo e pode ser usada como uma aeronave de transporte militar.
O painel de controle
Outra das fotos viralizadas mostra um painel de controle de um avião com a inscrição “chemtrails”. Mas a foto é uma montagem.
Um piloto de avião explicou em 2015 que foi o criador desta fotomontagem. Ele publicou uma foto de melhor qualidade, apresentada como a original, mostrando a inscrição "APU" (para "Auxiliar power unit" ) em vez de "Chemtrails", em um Boeing 737.
Comparação feita em 6 de maio de 2021 entre uma publicação no Facebook (à esquerda) e a foto original do quadro postada no fórum Metabunk.org |
Outras fotos e vídeos, além de um manual do usuário, mostram o mesmo símbolo "APU" localizado no mesmo local nos painéis de instrumentos da aeronave.
Patentes
Outras imagens incluem detalhes de artefatos e aeronaves projetadas para dispersar partículas de aerossol, mas não fornecem nenhuma explicação para apoiar a teoria dos “chemtrails”, ou seja, nenhuma evidência de que estes sejam usados para dispersar elementos tóxicos.
Uma dessas imagens inclui uma captura de tela de uma patente para um dispersador de aerossol centrífugo “capaz de dispersar uma nuvem de material particulado de aerossol em uma configuração geométrica predeterminada”.
Na descrição fornecida na mesma patente é apontado que esses dispositivos podem ser usados para uma variedade de finalidades: para impedir a detecção de alvos por radares ou para melhorar as comunicações de rádio, entre outros.
Outra imagem mostra um desenho técnico que faz parte de uma patente para “supressão aérea de fogo que usa um sistema de dispersão para produtos químicos retardadores de fogo portáteis" para aplicar em focos de incêndio em florestas ou pastagens, e adaptável a várias marcas de aeronaves.
A patente detalha que o sistema “pode ser usado para combate a incêndios, descontaminação química, modificação do clima e para tratar contaminação por derramamento de petróleo, entre outros usos”.
Em conclusão, o conjunto de fotografias viralizadas em publicações como evidências que confirmam a teoria dos “chemtrails" correspondem, na verdade, a vários dispositivos, como tanques de lastro, módulos para combate a incêndios e módulos para combate a mosquitos. As fotos também mostram um escudo projetado por pilotos que queriam justamente zombar daqueles que acreditam nessas teorias da conspiração e incluem uma fotomontagem de um painel de controle de avião. Nenhuma das imagens prova a existência de chemtrails nocivos lançados do ar.
Via AFP