quarta-feira, 16 de maio de 2012

Aviãozinho de papel não é só brincadeira de criança

Bem antes de aprender que o brasileiro Santos Dumont fez História ao voar no 14-Bis, os estudantes já entendem muito bem de aviões sem motor. E as gaivotas de papel, consideradas o símbolo máximo da juventude distraída nas salas de aula, viraram uma competição mundial que está se profissionalizando cada vez mais. Nos dias 4 e 5 de maio, 249 pilotos do papel se reuniram em Salzburgo, na Áustria, para a corrida Paper Wings - inusitada competição que já teve dois brasileiros entre seus campeões e que impressiona ao aliar muita celulose, rasantes, loopings, espírito jovem e uma boa porção de marketing esportivo.


Idealizada em 2006, a competição de aviõezinhos de papel, realizada de três em três anos, contou em sua primeira edição com 161 competidores, selecionados em eliminatórias em 40 países. Na disputa, estudantes universitários sem restrição de curso, mas com a cabeça nas nuvens, dispostos a testar suas habilidades na criação e no lançamento de gaivotas em três categorias principais: distância, tempo de voo e acrobacia.

Neste ano, o evento bancado pela fabricante de energéticos austríaca Red Bull tomou proporções ainda maiores. Foram 634 seletivas regionais (29 no Brasil), em mais de 80 países, onde 37.125 pessoas tentaram garantir sua participação na etapa final da competição, até então desconhecida para muitos dos praticantes da aviação de papel na infância. Foi o caso do estudante de engenharia mecânica João Antônio Wendt Dreveck, 23 anos, classificado ao lançar seu avião a 33,53 metros na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

- Até participo de um projeto de aerodesign na UFSC, que compete com diversos grupos de outras universidades federais do país, mas só fui saber da existência do campeonato de aviões de papel quando meu grupo foi convidado a expor alguns de nossos modelos na seletiva na universidade. Como já estava lá, acabei participando e, com sorte, fiz a maior distância do Brasil - conta ele, cujas asas de celulose lhe permitiram sua primeira viagem em um avião de verdade. - Quando explicava às pessoas que estava saindo do país pela primeira vez por causa desse campeonato, sempre ficavam absolutamente incrédulas.

Com idades entre 17 e 30 anos, e reunidos durante dois dias inteiros no Hangar-7 - uma monumental estrutura de 6.400 metros quadrados composta por mais de 380 placas de vidro e que funciona como um restaurante e museu de veículos históricos na pacata Salzburgo -, os competidores, abraçados às bandeiras de seus países ou trajando roupas típicas, garantiram que o clima fosse de total descontração.

- Mais que uma competição, esse evento acaba servindo como um espaço de troca de ideias e cultura entre nós, e isso é o que está mais me agradando. Já conversei com americanos, espanhóis, alemães, japoneses - afirmou o português Fabrício Monteiro, de 17 anos. - Gente de culturas com que nunca imaginei interagir e que falam línguas incompreensíveis para mim. Ainda assim, é impressionante como todos conseguem brincar uns com os outros.

Campeão mundial em tempo de voo em 2009, e convidado a Salzburgo para defender seu título este ano, o paulista Leonard Ang, 30 anos, contou que o "clima" de festa continua mesmo fora do ambiente da competição.

- Após o primeiro dia, acabei indo parar em uma "luta" de sumô contra um dos participantes japoneses, em meio às zoações e brincadeiras que imperavam no hotel onde todos os competidores foram hospedados - contou Leonard, que desta vez não conseguiu superar seu tempo de voo de 11,6 segundos feito em 2009 e acabou ficando fora da final e do pódium.

Em um evento desse porte, nem tudo é informalidade ou brincadeira. Dividida em três eliminatórias e três provas finais, de que participam apenas os dez melhores de cada categoria, a competição tem sua cota de profissionalismo garantida pelas rígidas regras da Paper Aircraft Association (PPA) - uma organização fundada em 1987 com o objetivo de "trabalhar para o aprimoramento da tecnologia dos aviões de papel" e que estabelece as diretrizes para os recordes internacionais. Afinal, eram os títulos de melhores do mundo em avião de papel que estavam em jogo - e neste ano ficaram com o tcheco Tomas Beck (distância); o libanês Elie Chemaly (tempo de voo); e, empatados em acrobacia, o americano Ryan Naccarato e o polonês Tomasz Chodyra.

Também ajuda o fato de o júri de acrobacia ter entre seus componentes, além de dois atletas de esportes radicais, dois profissionais tarimbados das asas de papel: o engenheiro aeronáutico da Força Aérea dos EUA Ken Blackburn, quatro vezes recordista mundial de tempo de voo; e John Collins, projetista do planador de papel que tem o atual recorde mundial de distância percorrida em lançamento (68,92 metros). -

É impressionante como esse tipo de competição está se tornando cada vez maior e mais profissional - afirma Ken Blackburn, cujo último recorde de 27,6 segundos de voo, de 1996, foi superado em 2009 pelo japonês Takuo Toda, com 27,9 segundos. - Participo da competição como jurado desde a primeira edição, e a cada ano é notável como as pessoas estão aprimorando seus modelos, pesquisando mais sobre o assunto e aprendendo muito mais sobre a aviação de papel.

A observação de Ken ganha dimensão quando se observa o desempenho de alguns dos competidores deste ano, em especial aqueles que disputaram o troféu em acrobacia, categoria que claramente exigiu uma preparação mais intensa. O colombiano Alfredo Ramirez, de 23 anos, arrancou urros do público, e o segundo lugar em acrobacia, ao controlar o voo de seu avião com as mãos, mas sem tocá-lo, durante cerca de um minuto.

- Participei da edição de 2006, mas somente desta vez resolvi me preparar de verdade. Passei quatro meses treinando quase todos os dias, pesquisando e testando modelos para achar o ideal - afirma o estudante de engenharia aeronáutica. - Uma vez escolhido o modelo que usei na apresentação, o treinamento passou a ser aprender a controlá-lo com a maior exatidão e o máximo de tempo possíveis. A dificuldade de se treinar para uma competição dessas é encontrar um local onde seja possível simular as condições do hangar. Ou seja, espaçoso e sem influência de vento.

O polonês Chodryra levou ouro em acrobacia ao apostar em uma variedade de aviões que se destacaram pelos loopings e por voltarem para as suas mãos após serem lançados. O uso de um balão de ar simulando uma torre mostrou como cada momento de sua performance foi devidamente planejado e ensaiado.

De planadores a dardos voadores, de aviões especiais para loopings a helicópteros de papel que desciam dos ares girando em torno do próprio eixo, os modelos apresentados na competição impressionaram pela diversidade e pela inventividade, o que, de acordo com o recordista mundial John Collins, jamais deve acabar no mundo das naves de papel:

- É impossível saber quantos modelos de avião de papel podem ser feitos. Existem infinitos jeitos de se dobrar uma folha em duas. Por isso, eu não acho que um dia os modelos irão se esgotar. O número de técnicas de origami, combinadas com a variedade de tipos de papel, torna possível continuarmos a inventar modelos de aviõezinhos por milênios.

Mas a modalidade ainda não alcançou status profissional suficiente para garantir o ganha-pão de ninguém, nem mesmo de alguém com a fama de Collins, mais conhecido nos EUA como "paper airplane guy" ("o cara do avião de papel", em tradução livre).

- Até faço apresentações em escolas, bibliotecas, museus e eventos, mas mesmo um recordista mundial ainda não consegue se sustentar só com os aviões de papel - explica Collins, que trabalha como apresentador e produtor em um canal de televisão. - Seria divertido viver só do trabalho com os aviões de papel, não? Quem sabe um dia eu não consiga fazer do "paper airplane guy" meu emprego regular.

Qual seria o sentido de organizar um campeonato de uma modalidade esportiva ainda incapaz de sustentar seus atletas, mesmo os melhores, e bancar, com ou sem auxílio de comerciantes de Salzburgo, a hospedagem e a passagem de mais de 200 participantes?

Professor de marketing da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e especialista em marketing esportivo, Luiz Henrique Gullac afirma que ações como essa são hoje uma tendência no mundo esportivo, mas não são recentes. Têm sido feitas por grandes empresas há algum tempo, desde a criação do time de futebol New York Cosmos pela Warner Communications, em 1971.

- Quando uma empresa se associa a um esporte que lhe convém e faz esse esporte funcionar, a modalidade, ou evento, acaba servindo como uma grande ferramenta de marketing institucional e persuasivo. É uma tendência que vem se acentuando devido às mudanças no perfil dos consumidores, das tecnologias e das mídias - explica Luiz Henrique. - No caso do aviãozinho de papel, é algo que desperta na maioria das pessoas um grande sentimento de nostalgia e, principalmente, de brincadeira. E o esporte, no fim das contas, acaba sendo isso também, uma grande brincadeira.

Por nostalgia ou curiosidade, o público local compareceu ao hangar em Salzburgo e acabou contribuindo para a animação. Em meio aos treinamentos e etapas oficiais, crianças corriam pelo hangar com seus próprios aviões de papel. A animação infantil foi tanta que pelo menos duas vezes os pequenos tiveram que ser contidos ao invadir o espaço dos competidores, nas apresentações acrobáticas, em busca dos aviões dos participantes.

A moradora de Salzburgo Christiane Underberg, de 41 anos, foi atraída pelo caráter inusitado do evento. Também presente em 2009, desta vez ela foi ao Hangar-7 com os filhos, a mãe, a irmã e os sobrinhos: -

Acho incrível como um evento, que no fim das contas é sobre papel, pode conseguir reunir tanta gente. Minhas crianças, acostumadas a fazer aviões de papel em casa, claro, ficam loucas aqui.

Fonte: Thiago Jansen (thiago.jansen@oglobo.com.br) | Agência O Globo * O repórter viajou a convite da Red Bull - Imagem: Reprodução

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