Nenhuma informação coletada é deixada de lado, dizem.
Vinte dias depois do acidente envolvendo o voo AF 447, que ia do Rio de Janeiro a Paris com 228 pessoas a bordo, as equipes francesas de investigação dizem estar próximas de descobrir o que fez o Airbus cair no oceano. Mesmo sem as peças mais importantes deste intricado quebra-cabeça -as caixas-pretas até agora desaparecidas-, os analistas partem em busca das informações mais minuciosas para compreender as circunstâncias do desastre, indo da estrutura organizacional da empresa e do histórico da aeronave ao estado psicológico do piloto e de sua tripulação.
Veja o que diz o manual de investigação do Brasil, com base em acordo internacional.
Tudo é levado em consideração, segundo pilotos e analistas de segurança de voo ouvidos pelo G1, para apontar o que fez o avião cair: a vida do avião, a vida dos pilotos, os dados das caixas-pretas, a análise dos corpos e dos destroços, tudo é estudado. Mesmo negando-se a se envolver em especulações externas à investigação oficial, eles explicaram o processo de análise, ressaltaram que nenhum acidente acontece por uma única causa e que a investigação busca resolver problemas e evitar novas falhas, e não encontrar um culpado.
“Na investigação aeronáutica, tudo é relevante”, disse o diretor da Faculdade de Ciências Aeronáuticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Elones Ribeiro. “Mesmo sem a caixa-preta, os investigadores têm uma série de informações, como as mensagens automáticas da aeronave [Acars], que ajudam a compreender o que houve. Acidentes de avião não acontecem por uma única causa. Funciona como um efeito dominó, em que cada pedra é uma causa, que desencadeia outras, em série, mas que, sozinha, não seria capaz de derrubar a aeronave. Em caso de falhas, cabe ao piloto tirar uma das peças e interromper o processo, para que não haja o acidente”, completou.
Segundo Roberto Peterka, perito em investigações de acidentes aéreos, descobrir as causas do acidente é um processo complicado e demorado, e é impossível, para quem está de fora, dizer o que pode ou não ter causado o acidente. “Mesmo para quem está investigando, é improvável que descubram logo o que ocorreu, pois são muitas informações e variáveis que precisam ser analisadas, e não há apenas uma causa que tenha determinado o acidente. Acidentes são causados por uma sequência de eventos, não por um único fato”, disse.
No caso do voo 447, explicou, nenhuma das causas apontadas até o momento como prováveis seria capaz de causar, sozinha, o acidente. “A tempestade sozinha não derrubaria, uma falha elétrica sozinha não derrubaria... É preciso uma conjunção de fatores para que o acidente tenha ocorrido. E é neste ponto que o fator humano se torna relevante, para tentar explicar como a tripulação reagiu a cada um dos problemas.”
Segundo Peterka, tudo o que está sendo apontado como procedimento da tripulação aparenta estar dentro da normalidade. “Os investigadores têm N variáveis e analisam uma a uma, descartando umas e admitindo outras. A partir dessa análise é que se percebe se o fator humano foi um fator contribuinte para o acidente ou não”, disse. Segundo Ribeiro, devemos considerar o que aconteceu com o piloto e como ele agiu, mas evitando culpá-lo. “Seria simples responsabilizar quem não pode se defender. Um piloto com experiência, como o que comandava o avião acidentado, tem controle da aeronave, e é complicado responsabilizá-lo.”
Fator humano
Segundo o piloto e agente de segurança de voo Éder Henriqson, professor e líder do Grupo de Pesquisas em Ciências Aeronáuticas da PUC-RS, é difícil distinguir o que é falha mecânica e o que é falha humana, pois falhas mecânicas normalmente também são causadas por ação humana. “As falhas estão na interação entre o humano e o mecânico e procura-se entender os erros, as causas do acidente, pela relação entre o homem e a máquina”, explicou. “A análise de fator humano vai pesquisar o histórico dos tripulantes, o treinamento deles, a experiência, o que fizeram até 72 horas antes do acidente. Mas vai observar também a cultura de segurança da empresa, a forma de pensar da companhia aérea. O acidente acontece dentro de organizações, que têm uma estrutura social interna, uma cultura organizacional.”
Se, ainda assim, disse, houve realmente um problema mecânico na origem das causas do acidente, é preciso fazer engenharia reversa, juntar os pedaços do problema para entender a situação como um todo. “É preciso desconstruir cada peça, sua forma de funcionamento, para descobrir o motivo de haver falhas. O trabalho refaz os cálculos, as ações mecânicas. A investigação deve analisar as formas como cada sistema operativo falhou, entender os cálculos e buscar entender cada peça que pode ter falhado.”
Segundo Henriqson, todas as peças de uma aeronave passam por um sistema de certificação internacional, que garante que elas não podem falhar. “Os sistemas de controle do avião têm que ter uma possibilidade de falha inferior a 1 para um bilhão, e a busca é pelo mínimo risco. O problema é que pode haver falhas também nesse sistema de certificação de segurança.”
O professor explicou que dar importância ao fator humano não significa responsabilizar os profissionais que tripulavam a aeronave acidentada. Para demonstrar o que quer dizer com a análise da interação entre homem e máquina, ele relembrou o caso do acidente do avião que caiu próximo ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1996, quando o reverso da turbina se abriu na decolagem. “Algumas pessoas tentaram culpar o piloto, alegando que era possível controlar o avião e voar mesmo com a falha mecânica, que foi a abertura do reverso. É verdade que a abertura do reverso pode ser contornada, mas a análise por engenharia reversa e por estudo de interação de fator humano mostra que aquele piloto não sabia que tinha havido abertura de reverso, já que o avião não tinha um alerta para isso, ele não tinha treinamento para lidar com esta situação, não havia um check list, que explicasse o procedimento, e tudo foi muito rápido. O critério de certificação garantia a improbabilidade de aquilo acontecer, mas aconteceu”, disse.
Por isso é preciso estudar a tripulação, explicou, pois é importante saber se ela estava preparada para lidar com a possível falha que pode ter ocorrido e que pode ser determinada pela investigação. “É uma análise de treinamento, e mesmo um piloto experiente e competente é uma vítima, que podia não ter um treinamento específico para falha pouco provável, que pode não ter sido informado da falha.”
Segundo ele, na investigação são feitas entrevistas com amigos, colegas de trabalho, familiares, tudo para traçar este perfil psicológico. É traçado um perfil psicológico e psicossocial da tripulação, investigando a forma como ele se comportou em situações de voo. Verifica-se a condição por que ele estava passando na época do acidente, para saber se havia pressões da empresa, da família, qualquer coisa que possa ter afetado suas ações durante o voo.
Lição
Sem buscar responsáveis diretos pelo acidente, os investigadores tentam achar a sequência de falhas que podem ter causado o acidente para tirar uma lição e evitar outras falhas. “O lado ‘positivo’ do desastre é que se aprende com esses erros, e a probabilidade de falha, que já é mínima, passa a ser acompanhada de treinamento e alerta para poder evitar que aconteça o mesmo”, disse Henriqson. O diretor do curso da PUC-RS concorda. “Descobrir o que deu errado é muito importante para que saia algo de positivo da tragédia, uma lição para que nada parecido volte a ocorrer. A investigação leva à prevenção, corrigindo possíveis falhas”, disse Ribeiro.
A investigação sobre o que aconteceu com a aeronave está sendo coordenada pelo Escritório de Investigações e Análises (BEA, na sigla em francês). O BEA é o organismo nacional do país encarregado das investigações técnicas relacionadas com incidentes da aviação civil, com autoridade para intervir até fora da França.
A apuração feita por eles busca coletar e analisar informações e recomendações de segurança para prevenir futuros incidentes envolvendo aeronaves. O investigador encarregado pela BEA de analisar as informações relacionadas ao voo 447 é Alain Bouillard. Ele foi um dos responsáveis por suspender a licença de voo do Concorde, em 2000, após o acidente que matou 113 pessoas na França. Desde o dia do acidente, o BEA designou uma equipe de investigações para avaliar as informações coletadas pela companhia aérea e pela fabricante da aeronave. O escritório recomenda que sejam evitadas especulações sobre as causas do acidente até que haja uma apuração detalhada dos fatos.
Fonte: Daniel Buarque (G1)