terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Dia do Abate - Parte 2

Guerra no Morro dos Macacos após queda do helicóptero da PM

Um ano depois do ataque do tráfico ao helicóptero da PM no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, o jornal EXTRA apresenta histórias exclusivas sobre o episódio no especial 'O Dia do Abate' - parte 2.



No último voo do Fênix 3, o sorriso de todos sumiu

No fim da madrugada, a Grajaú-Jacarepaguá ainda está mergulhada numa neblina leve, herança da noite, que embaça os para-brisas dos carros. Naquele sábado não era diferente. De passagem por ali, levando a mulher e a filha para a casa da sogra, o soldado Marcos Stadler até podia não ter a melhor visão do caminho. Mas o som dos tiros chegava nítido. Reconheceu sem dificuldade a origem dos disparos. Vinham do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, bem perto dali.

- Hoje os meninos estão animados - brincou Marcos, referindo-se aos traficantes.

Tá entrando fumaça! Se o Vaz já perdeu o controle, eu já perdi também. Será que a gente vai morrer? O campo tá chegando, tá chegando. A gente vai cair. Meu Deus...
A noite da véspera foi estranha para a mulher do soldado Edney Canazaro. Quando o marido foi deitar, pediu a companhia dela. Verônica conhecia aquele rosto há quase sete anos, mas, ao se enroscar nos braços do marido, achou tudo meio diferente.

- Mô, você tá mais bonito hoje - soprou ao mesmo ouvido que, cinco meses antes, em frente ao padre, ela havia dito "sim".

Canazaro e Stadler chegaram ao GAM cedo, às 7h, como de costume. O cabo Anderson Fernandes já estava lá. Morador de Santíssimo, na Zona Oeste, acordara às 4h30m para chegar ao trabalho. A baldeação em três ônibus tinha ajudado a dissipar um desentendimento da véspera com a mulher. Mas trabalho era trabalho. Vibração era palavra de ordem para quem se dispõe a guerrear pelo ar nas favelas cariocas.

Esse era o espírito do capitão Marcelo Mendes. Estava ansioso, pois agora estava apto a participar de combates em favela. Naquele dia, talvez surgisse uma oportunidade. Ele e o piloto Marcelo Vaz, capitão como ele - os dois entraram juntos na PM, em 2000 - preparavam o helicóptero Fênix 3 para o abastecimento no Aeroporto Santos Dumont.

A calma do dia foi quebrada por um sargento de 1,60m. Numa empolgação inversa à sua altura, Jefferson Cordeiro já estava no tal estado de vibração típico de quem serve no GAM.

- Tá tendo um problema nos morros dos Macacos e São João, uma invasão, troca de tiro, policial encurralado - contou Cordeiro, que, apesar do tamanho, representava com perfeição o tal ideal de vibração.

Logo depois, o coronel Eduardo Luiz, comandante do GAM, telefonou para Mendes.

- Decola pro Morro dos Macacos, para dar apoio. Faz contato com o telefone de alguém que esteja em terra - ordenou Luiz.

Foi Cordeiro que definiu quem seriam os quatro tripulantes que acompanhariam o piloto Vaz e o copiloto Mendes. Fernandes, Stadler, Canazaro e Patrício.

O cabo Izo Patrício já estava lá desde cedo. Quando dava tempo, aproveitava para correr antes do trabalho. Era um hábito antigo. Corria, malhava, jogava futebol. Aos 36 anos, parecia um garoto de 20.

Rola, Patrício. Rola! E se eu bater nele com o meu macacão? Não tenho mais o que fazer... Quase não tem mais colete, é só carne queimando. Deus, ajuda o Patrício.
Prestes a decolar, Mendes ligou para o tenente Luiz Fernando Aca, do GAT do 6º BPM, desde a véspera no Macacos.

- Tamo ficando encurralado, sem munição. Ajuda a gente - Aca se desesperava.

Mendes correu na reserva de armamento e pegou duas caixas com 50 projéteis de fuzil 556 cada. Decolaram sem informações precisas. Não tinham ideia do que encontrariam. Numa ação orquestrada, traficantes de diversas favelas tentavam tomar o Macacos de seus rivais. A PM também estava lá.

Dizem que, em tempos de guerra, não há sol. No Rio, havia. Os raios das 8h30m já despontavam no horizonte. Vaz, à direita. Ao lado, Mendes assumiria se o chefe fosse atingido. Atrás, do lado direito, estavam Fernandes e Stadler. Na outra ponta, Patrício e Canazaro debruçavam-se para escolher o ângulo de tiro. A adrenalina já corria nas veias.

Vai ficar tudo bem. Tenho que passar tranquilidade para ele. A dor... As queimaduras...

Começaram o voo pela Radial Oeste, deram um rasante no Macacos e avistaram o grupo de Aca. Segundos depois, os dedos dos homens do Fênix 3 já apertavam os gatilho dos fuzis. Veio a recíproca dos traficantes, e um tiro entra pela porta direita. Perfura o banco e só para a quatro dedos da região lombar de Mendes. Patrício tinha visto o lugar de onde haviam sido feitos os disparos.

- Foi de uma casa. Eu vi, vamos voltar lá! - pedia, na última voltagem de excitação.

- Vaz, tô bem - alegou Mendes.

- Se eu disse que vamos sair, vamos sair.

Rumo ao Santos Dumont, Vaz testa o comando do helicóptero.

- Mendes, assume a aeronave, pra você estar pronto, caso a gente tenha que adotar algum procedimento de emergência.

Ainda no GAM, o sargento Luiz Afonso Xavier havia orientado a equipe do Fênix 2 para ficar de prontidão. Além de Cordeiro, decolariam os cabos Nilson Gonçalves e William Xavier, e o major Miguel Ramos. Afonso era um dos mais antigos do GAM. Fez contato com o Fênix 3 e decidiu ir ao Santos Dumont para discutir a volta ao Macacos.

- Aí, Mendes, estreou com tudo, hein! - os amigos encarnavam no novato.

- Pô, lá é muito pior, hein?

Mal o Fênix 2 chega ao Santos Dumont, Cordeiro recebe pelo rádio a notícia de que André Guedes, do 6 BPM, estava ferido. Tinham de voltar para a guerra.

- Ele é gordo? Leva pro alto do morro.

O resgate foi rápido. Deixaram Guedes no Batalhão de Choque, o clima bem mais tenso. Discutiram se deveriam voltar. Patrício ainda não tinha conseguido encontrar a tal casa de onde saíra o tiro.

- Parece que a situação lá está mais tranquila - disse um dos tripulantes.

- Situação de combate em favela nunca é tranquila - alertou Afonso, um dos mais experientes do grupo.

Sem saber por que, Afonso pega sua câmera e tira uma foto da tripulação da Fênix 3. Vaz, Mendes, Canazaro, Patrício, Stadler e Fernandes. Segundos antes de decolar, no último voo do Fênix 3, o sorriso de todos sumiu.

Tenho que sair daqui, voltar pra casa. Que voz é essa? Tudo bem, vou sair, vou sair...

Do alto do Fênix 3, os quatro praças escrutinavam cada metro da favela.

- Cuidado, não sai atirando. Tem policial no mato - dizia Vaz, precavido.

- Ali! Ali! Tem mais de 20 vagabundos.

- Tem mais, tem mais!

Os bandidos se protegiam por trás de uma imensa pedra. Mas os seis homens do Fênix 3 só viram os traficantes tarde demais. Agora, eram cerca 30 bandidos contra seis PMs.

- Atira, atira! É pra derrubar as duas - ordena um dos traficantes do grupo.

Fernandes leva um tiro no fêmur. Canazaro tenta ajudá-lo e é atingido na cabeça. A chuva de tiros também silencia Stadler.

De dentro do Fênix 2, mais desespero:

- A traseira de vocês tá pegando fogo!

Seis tiros atingem o Fênix 3: a pá, a base das pás, a parte de baixo e a frente do helicóptero. Lutando para manter o comando, Vaz avista um campo de futebol para pousar. É a Vila Olímpica do Sampaio. Joga para a direita, tenta controlar a perda de altura e consegue, tudo em 40 segundos. A cauda partida, o helicóptero tomba para a esquerda. O calor cresce e tudo vira uma panela. O cheiro de carne queimada empesteia o ambiente.

Ao ver a queda do Fênix 3, Afonso ignora o risco e mergulha na mesma direção.

-Vamos preparar pra desembarcar - ordena, aos berros, Afonso. - Pega o extintor - a ordem sintonizava no desespero.

Cadê Stadler? Canazaro? Protege os dois, protege eles, Deus...

O capacete de Mendes sai na velocidade com que ele deixa o helicóptero. O macacão ainda pega fogo, ele manca devido ao tiro no pé esquerdo. Cai sentado e, com a ajuda de Vaz, apaga as chamas. Com destreza, o piloto havia saído atrás dele. Vaz procura Fernandes. O "fiel" do Fênix 3 ainda estava lá dentro.

Fernandes briga com o cinto, o fogo queima seu braço. Ferido na perna, tudo é mais difícil. Mas tem que sobreviver. Tinha que fazer as pazes com Elisângela, sua mulher. Mas, como ia sair dali? Fernandes ouve uma voz. É Deus, ele tem certeza.

- Levanta, fica em pé e sai da aeronave - Ele diz. Era um milagre.

Fernandes consegue sair, mas o fogo lambe metade de seu corpo. Os homens do Fênix 2 correm em direção ao 3 e ajudam a tirar o policial de perto do fogo. As labaredas crescem e todos saem de perto, com medo da explosão.

- Fernandes, vai lá ajudar o Patrício.

- Mendes, não dá. Eu tô baleado.

Não está só baleado. As coxas, o braço direito e a barriga queimaram.

Com esforço, Patrício sai pelo espaço entre a aeronave e o chão. Era dali que vazava o combustível. Agoniza, encharcado de querosene. Todos lutam para apagar o fogo do amigo, à medida que o cheiro de carne queimada se alastra. Rastejando, envolvido numa bola de fogo, o homem berra por ajuda.

- Arranca o meu colete! Arranca!

Vaz queima a mão tentando apagar o fogo de Patrício. Instantes depois, os traficantes do São João recomeçam a atirar. Os homens do Fênix 2 trocam tiros e defendem o grupo. O som da munição explodindo dentro do Fênix 3 faz os traficantes fugirem.

- Não liga pra minha família, vai assustar - Patrício fala, com clareza.

Alegando haver risco, os bombeiros se recusam a voar até lá para o resgate. O major Ramos e o cabo Gonçalves erguem o pesado Patrício e o carregam até o Fênix 2. Voam para o Hospital da Força Aérea. O socorro por terra chega aos poucos. Prestes a partir, os olhos de Vaz percorrem o campo. Era verdade: Canazaro e Stadler não tinham escapado.

Habituados a deixar os combates em favela pelo ar, naquele dia os seis saíram por terra. Vivos ou mortos, todos de cabeça erguida.

Fonte: Fernando Torres, Guilherme Amado e Guto Seabra (Extra) - Fotos (na sequência): Reprodução / Pablo Jacob / Reprodução de vídeo / Bruno Gonzalez

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