Um objetivo em comum lança todos na água, mesmo quem não sabe nadar. Em terra firme, apóiam-se em galhos e pedras para escalar uma encosta íngreme. No fim, ainda encontram o fogo pela frente. Tudo isso para um dia poderem encarar o ar. O Diário participou do curso de sobrevivência para comissários de bordo e experimentou na pele as agruras daqueles que não se contentam em apenas servir um cafezinho durante os voos.
O céu de Santo André está nublado e a sexta-feira anoitece fria para quem pretende ir à praia. Não são empecilhos para os cerca de 80 alunos que aguardam pela viagem a Bertioga, onde viverão de forma intensa as próximas 24 horas. Durante o período, nada de sono. Comida e água racionadas. Esforço físico e desgaste mental temperam a receita.O primeiro exercício é leve. Um por um, todos seguem para uma cabine esfumaçada e às escuras, onde se deve encontrar extintores e a "vítima fictícia", tirando-a para fora da aeronave de mentira. Instrutores dão a carga emocional, gritando que o avião está prestes a explodir. Alívio quando se abre a porta e surge a luz.
No salão da ABC Fly (escola de aviação de Santo André responsável pelo curso), os instrutores formam quatro grupos e promovem a interação entre os alunos. Parece brincadeira, mas fortalece a solidariedade.
Dois ônibus lotados levam à praia de Indaiá. É o meio da madrugada e os botes são inflados. Um aquecimento rápido é seguido da instrução sobre sinalizadores. Um clarão ilumina o céu e, a partir daí, é hora do embarque. No breu.
A água está menos gelada do que se imaginava antes de se descer a serra, mas a escuridão impera. Os botes se distanciam 500 metros da costa. É lá onde se pratica os exercícios, com coletes salva-vidas. Mais instruções. Não é fácil se jogar no mar, mas todos experimentam a água salgada.
A calça jeans vai virar uma bóia, capaz de suportar um deslocamento de até 400 metros. O repórter afunda e volta para a superfície, no primeiro teste. Falta familiaridade com o mar, consequência de uma vida toda em terra firme, mesmo conhecendo algumas barcas furadas nesses 32 anos. Sobrevive-se, enfim.
Testa-se o nado centopéia, com uma "fila indiana", e apenas os braços servindo à natação, até para quem não sabe nadar. É uma forma de se manter o grupo aquecido e de se transmitir confiança. Depois, nado em dupla até a areia. O repórter refuga, humildemente, e se arrepende depois.
Onde dá pé, o bote é virado. Mergulha-se e se entra debaixo da embarcação, depois de um mergulho. É o teto que todo marinheiro quer em dias de chuva. É o fim do treinamento na água. Hora de conhecer os "Outros", neste Lost real.
Profissão motiva curso de resistência
A vontade de ganhar a vida nos ares e se aventurar pelo mundo é o que move quem busca a carreira de comissário de bordo. Explica também porque aqueles que nunca tiveram contato com a água e a mata se lançam desesperadamente em um curso de sobrevivência como o descrito acima.
No treinamento, os futuros comissários não recebem instruções sobre como servir café e refrigerante durante os voos, aquilo que todos estão mais acostumados a ver. Os profissionais da área são na verdade técnicos em segurança, os responsáveis por checar equipamentos e orientar passageiros em uma tragédia. A sobrevivência entra aí.
Imaginar o que poderia acontecer em uma situação real foi o que motivou Eliane Alves da Silva, 31 anos. Ela enfrentou a mata e se surpreendeu ao ver o desempenho de outras colegas. "Algumas meninas extremamente delicadas se mostraram bastante persistentes e corajosas", afirmou.
A aluna Cristiane Barcelo, 29, caiu pela primeira vez no mar. O batismo serviu para que saísse renovada. "Tinha pânico de água, até por não saber nadar. Foi uma surpresa notar que todo o suporte e instrução permitiram que agora eu saiba o que fazer."
Personal trainer no dia a dia, Vivian de Souza Milani Viaro, 27, enfrentou pela primeira vez o tipo de dificuldade apresentada no curso. "Deu para aprender bastante coisa. Nem imaginava como se monta um acampamento, por exemplo. Só achei exagerada a descida na lama", afirmou.
Instrutor, Ednei Fernando dos Santos é pós-graduado em Educação Física, comissário e especialista em sobrevivência em selva, mar, gelo e deserto. Ele acredita que muitos alunos chegam ao curso com uma visão superficial. As dificuldades trazem a realidade. "Quando ganham noção do que pode acontecer na mata ou no mar, passam a ter controle da situação, e sabem o que fazer."
Um salário inicial de aproximadamente R$ 2.000 está na outra ponta do sonho de quem busca nas empresas aéreas uma carreira sólida. Depois de dois anos, como se fosse um estágio probatório, o comissário pode ganhar até R$ 3.500.
Durante o curso de formação, alunos têm acompanhamento psicológico e são orientados sobre o que as empresas procuram. Por fim, se submetem a um teste da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
O mercado teve momentos de alta nos dois últimos anos. As empresas aéreas buscavam até 120 comissários por mês. "Chegou-se ao ponto de não ter profissionais disponíveis, tamanha a procura", explica o diretor da ABC Fly, José Luiz Ferreira de Mattos Júnior, que forma 150 alunos por ano. Neste semestre, porém, está em baixa, reflexo da crise mundial.
A professora de Inglês Vanessa Johvem, 18, está disposta a encontrar um espaço. "É algo mágico, que quero vivenciar. Um sonho. Mesmo sabendo que vai interferir na minha vida pessoal, na dificuldade em formar uma família, por exemplo."
Mesmo na mata, vaidade impera
Estancados diante da mata fechada, intransponível. É a encosta da Serra do Mar, no Litoral Norte paulista. Futuras comissárias representam 90% do grupo. Algumas delas não descuidam da vaidade e aproveitam a breve parada para retocar a maquiagem e arrumar os cabelos. Mochilas nas costas, todos serpenteiam pela trilha enlameada. É barro dali até o fim.
Na base do morro, espanto diante das dificuldades que se apresentam à frente. Uma subida íngreme, que é encarada com respeito por quem conhece a selva. Aqui, nada é ornamental, e samambaia vira comida - o broto dela, pelo menos. É hora de se agarrar ao que tiver pela frente. Principalmente, a própria confiança.
A primeira parte da subida é prova de determinação pura. A segunda, de sorte, solidariedade, compaixão, fé. Na mata, isso é real. Pela primeira vez, o repórter do Diário dependeu do auxílio de comissárias de bordo fora de um avião.
Não é só apertar os cintos e aguardar. Para chegar ao alto, apega-se às raízes. Pedras com limo, como bagres ensaboados, viram pontos de salvação, quando não se tem apoio algum. Galhos podres deslizam barranco abaixo. E todos chegam ao topo. Vivos.
Descer é mais fácil. E pode ser incrivelmente mais fácil caso se jogue lá do alto. Mas todos querem chegar inteiros em casa. Alguns conseguem parar em pé, agarrando-se a cordas providencialmente colocadas depois da subida. É rapel. Mas também dá para transformar a ladeira num "tobobarro", deslizando até o pé. É a alegria dos fabricantes de sabão em pó. "Se sujar faz bem", diz o comercial. Não tem maquiagem. E a calça que já foi bóia vira cerâmica.
Na parte debaixo, um acampamento é montado em pouco mais de uma hora. Abrigo, fogo, água e alimento (as iniciais AFA+A) garantidos, parte-se então para a construção de cabana, moquém (fogão), filtro natural, armadilha, posto de observação, maca e latrina. Cobras e aranhas sempre à espreita. Às vezes, sobre os sobreviventes. Lei da selva.
À noite, é a hora de acabar com o incêndio. Desliga-se um botijão de gás em chamas, apaga-se tambores cheios de gasolina. Instrutores encorajam alunos diante da prova de fogo. Brilho nos olhos. É o fim, amigos, o fim. Um céu de brigadeiro para cada um.
Fonte: William Cardoso (Diário do Grande ABC)
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