Jim Mitchell e Bruce Jessen são militares reformados e psicólogos, e estavam à procura de oportunidades de negócio. Encontraram um excelente cliente na Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, onde em 2002 se transformaram em arquitetos do mais importante programa de interrogatórios na história do combate ao terrorismo pelos americanos.
Os dois até então jamais haviam realizado um interrogatório real - apenas sessões simuladas no treinamento militar que supervisionavam. Não tinham formação acadêmica relevante - suas teses de doutorado eram sobre hipertensão arterial e terapia familiar. Não dominavam os idiomas falados pelos prisioneiros e não tinham conhecimento específico sobre a Al-Qaeda.
Mas dispunham de credenciais em psicologia e de um conhecimento profundo sobre o brutal regime de tratamento a prisioneiros empregado décadas atrás pelos comunistas chineses. E, para um governo disposto a tratar com dureza os responsáveis pela morte de 3 mil americanos, isso bastava.
Assim, "Doc Mitchell" e "Doc Jessen", como os dois eram conhecidos na força aérea, ajudaram a conduzir os Estados Unidos a um conflito dilacerante, sobre tortura, terrorismo e valores, que passados sete anos ainda não foi decidido.
Mitchell, dotado de um forte sotaque sulista e da autoconfiança ocasionalmente opressiva de um homem que conquistou o sucesso sem ajuda, era um antigo especialista em explosivos na força aérea e tinha talento natural como vendedor. Jessen, que cresceu em uma fazenda de batatas no Idaho, se uniu ao seu colega de força aérea para construir um próspero negócio que faturou milhões de dólares vendendo serviços de treinamento e interrogatório para a CIA.
Sete meses depois que o presidente Barack Obama ordenou seu abandono, o programa de interrogatórios da CIA continua a atrair atenção. Nas próximas semanas, o secretário da Justiça, Eric Holder, deve decidir se conduzirá uma investigação criminal na qual o papel dos dois consultores certamente seria examinado. O serviço de ética do Departamento da Justiça deve apresentar um relatório sobre os advogados que consideraram legais esses métodos de interrogatório. E a CIA em breve divulgará um relatório altamente crítico sobre o programa, produzido em 2004 pelo inspetor geral da agência.
O coronel Steven Kleinman, um especialista em interrogatórios e inteligência da força aérea que conhece Mitchell e Jessen, afirma acreditar que a lealdade ao país no pânico que se seguiu ao 11 de setembro os tenha motivado a iniciar seu trabalho no ramo dos interrogatórios. Ele acredita que o resultado tenha sido uma tragédia não só para os Estados Unidos como para os dois homens.
"Creio que a motivação primária deles era o fato de que acreditavam ter conhecimentos e percepções que tornariam o país mais seguro", disse Kleinman. "Mas boas pessoas podem fazer coisas horríveis, em situações extremas".
Para a CIA, bem como para Mitchell, 58 anos, e Jessen, 60 anos, a mudança de governo foi um choque. Por anos, o presidente George W. Bush declarou que o programa de interrogatórios era legítimo e o elogiou por ter servido para deter ataques. Obama, em contraste, diz que a brutalidade dos métodos empregados ajudou a Al-Qaeda a obter recrutas; definiu um dos métodos utilizados, o chamado "waterboarding", como tortura; e, em sua primeira visita à CIA, sugeriu que o programa de interrogatórios havia sido um dos "erros" da agência.
A perda dos favores oficiais sofrida pelos psicólogos foi tão súbita, depois disso, quanto sua ascensão havia sido em 2002. Hoje, o escritório que sediava a Mitchell Jessen & Associates, a lucrativa empresa que operavam de um edifício centenário em Spokane, Washington, estão vazios, depois do cancelamento abrupto dos contratos que tinham com a CIA, no trimestre passado.
Dada a possibilidade de um inquérito criminal, Mitchell e Jessen contrataram um conhecido advogado de defesa, Henry Schuelke. O advogado informou que seus clientes não se pronunciariam para este artigo, que se baseia em dezenas de entrevistas com seus colegas e atuais e antigos funcionários do governo.
Em uma breve troca de e-mails, em junho, Mitchell diz que seu acordo de confidencialidade com a CIA o proibia de comentar. Mas sugeriu que seu trabalho estava sendo mal representado.
"Se você procurar", ele escreveu, "tenho certeza que encontrará toda espécie de 'especialistas' que se disporão a inventar o que você quiser ouvir, sem se preocupar com a realidade".
Mudança de carreira
Na época do 11 de setembro, Mitchell acabara de se reformar de seu último posto militar, como psicólogo de uma unidade de operações especiais na Carolina do Norte. Exibindo seu talento empresarial, ele fundou a Knowledge Works, uma empresa de treinamento que ele dirigia de sua nova casa, na Flórida, para suplementar a aposentadoria.
Mas, para alguém com sua formação, parecia evidente que a campanha contra a Al-Qaeda ofereceria oportunidades. Começou a fazer contato nas forças armadas e agências de inteligência, aproveitando as amizades construídas ao longo da carreira.
Mitchell disse a amigos que havia tido uma infância pobre na Flórida e que se alistou na força aérea em 1974 em busca de aventura. Estacionado no Alasca, ele aprendeu a desarmar bombas e conquistou diplomas de graduação e mestrado em psicologia.
Robert Madigan, professor de psicologia na Universidade do Alasca que trabalhou com ele, recorda uma visita de Mitchell, anos mais tarde. Ele havia completado seu doutorado pela Universidade do Sul da Flórida, em 1986, com uma tese que comparava a eficiência de dietas e exercícios no controle da hipertensão, e estava trabalhando para a força aérea em Spokane.
"Lembro que ele me contou que estavam preparando pessoas para suportar interrogatórios intensos", afirmou Madigan. Depois da guerra da Coreia, o treinamento de sobrevivência das forças armadas americanas foi expandido, porque falsas confissões por prisioneiros americanos resultaram em acusações sensacionalistas de "lavagem cerebral" comunista.
Os militares decidiram que oferecer aos soldados uma amostra das técnicas chinesas de interrogatório os prepararia para resistir ao sofrimento.
O treinamento de sobrevivência da força aérea foi consolidado em 1966 na base aérea de Fairchild, próxima a Spokane. O curso, chamado Sobrevivência, Evasão, Resistência, Escape, ou SERE, ensinava aviadores a viver com os recursos encontrados onde caíssem e evitar captura, bem como a resistir caso aprisionados.
Nos anos 80, Jessen se tornou o psicólogo no curso, e avaliava os instrutores que assumiam o papel de interrogadores inimigos na prisão simulada operada pela escola de sobrevivência; seu papel era garantir que a brutalidade do tratamento não fosse excessiva. Ele cresceu em uma comunidade mórmon, e conquistou seu doutorado na Universidade Estadual do Utah com uma tese sobre "esculpir a família", um trabalho no qual pacientes produzem modelos físicos de suas famílias a fim de retratar relações emocionais.
Jessen assumiu em 1988 o principal posto de psicologia na "escola de pós-graduação" em sobrevivência, instalada em uma área próxima ao curso da força aérea, e foi substituído por Mitchell. Os dois se tornaram parte daquilo que alguns dirigentes do Departamento da Defesa definem como "máfia da resistência" - os especialistas em resistir a interrogatórios inimigos. Ambos tenentes-coroneis, e ambos casados e com filhos, os dois fizeram amizade e costumavam praticar escaladas nos finais de semana.
Embora muitos subordinados os vissem como inteligente e capazes, alguns colegas psicólogos tinham dúvidas. Na conferência anual de psicólogos do SERE, lembram dois colegas, Mitchell costumava arrasar quaisquer apresentações das quais discordasse.
Na escola, Mitchell era conhecido por proteger a segurança dos interrogados; talvez surpreenda seus críticos posteriores saber que ele proibiu o uso de uma técnica de interrogatório que causou uma série de lesões de pescoço aos interrogados, disse um colega.
Jesse é lembrado no curso de pós-graduação em sobrevivência por sua transição incomum de funções - de encarregado de proteger os interrogados a falso interrogador inimigo.
Nesse papel, ele se tornou tão agressivo que colegas intervieram para moderar seu comportamento, exibindo vídeos de seu desempenho "assustador", lembra outro colega.
E antigos e atuais integrantes do SERE afirmam que sempre foi entendido que o treinamento imitava os métodos de inimigos inescrupulosos. Mark Mays, o primeiro psicólogo do SERE, diz que para criar um campo de prisioneiros realista, os dirigentes consultaram prisioneiros de guerra retornados das apavorantes prisões norte-vietnamitas.
"Era claro que isso era o que esperávamos dos inimigos", diz Mays, hoje psicólogo clínico e advogado em Spokane. "Não era algo que eu jamais imaginasse ver feito pelos americanos".
Início do programa
Em dezembro de 2001, um pequeno grupo de professores, policiais e agentes de inteligência se reuniu na casa de um conhecido psicólogo, Martin Sligman, perto de Filadélfia, para discutir o extremismo muçulmano. Mitchell acompanhou Kirk Hubbard, um psicólogo da CIA, à reunião.
Em um intervalo, Mitchell se apresentou a Seligman e declarou sua admiração pelo trabalho dele sobre "desamparo aprendido". Os elogios escancarados o impressionaram a ponto de mencioná-los em conversa com sua mulher, naquele noite. Mais tarde, diz, ele ficou "horrorizado e pesaroso" ao saber que seu trabalho havia sido citado para justificar interrogatórios brutais.
Seligman havia descoberto nos anos 60 que cachorros que nada podiam fazer para evitar pequenos choques elétricos perdiam a energia e simplesmente grunhiam e aceitavam os choques mesmo que tivessem uma chance de escapar.
O conceito de "desamparo", que veio mais tarde a influenciar o tratamento da depressão humana, era muito discutido no treinamento militar de sobrevivência. Os instrutores tentavam evitar produzir essa sensação de desamparo nos participantes, porque a meta era fortificar o espírito dos militares capturados.
Mitchell, dizem colegas, acreditava que produzir desamparo aprendido em um cativo da Al-Qaeda que estivesse sendo interrogado garantiria que este aceitasse as ordens do interrogador. Muitos interrogadores experientes discordavam, alegando que prisioneiros desmoralizados a esse ponto diriam o que quer que imaginassem satisfaria o interrogador.
Na CIA, em dezembro de 2001, as teorias de Mitchell estavam atraindo a atenção dos dirigentes. Ele foi convidado a revisar um manual da Al-Qaeda apreendido na Inglaterra, que ensinava os terroristas a resistir a interrogatórios. Contactou Jensen, e os dois escreveram a primeira proposta de usar as técnicas brutais do inimigo - tapas, posições forçadas, privação de sono, empurrões e waterboarding - para um programa de interrogatórios americano.
No começo de 2002, Mitchell estava contratado como consultor no centro de combate ao terrorismo da CIA, cujo diretor, Cofer Black, e chefe de operações, Jose Rodriguez Jr., se deixaram impressionar por sua mistura de dureza e jargão psicológico. Uma pessoa que ouviu algumas discussões entre eles conta Segundo essa fonte, Mitchell sugeriu que os interrogatórios requeriam "nível comparável de medo e brutalidade ao de voar um avião contra um edifício".
Pelo final de março, quando agentes da CIA capturaram Abu Zubaydah, inicialmente descrito como terceiro em comando da Al-Qaeda, o plano de interrogatório Mitchell-Jessen estava pronto. Em uma prisão secreta da CIA na Tailândia, dois agentes do Serviço Federal de Investigações (FBI) estavam usando métodos convencionais de aproximação com o prisioneiro para extrair informações vitais de Zubaydah. Então, chegou a equipe da CIA, acompanhada por Mitchell.
Com aprovação dos diretores da CIA, ele ordenou que Zubaydah fosse despido, exposto ao frio e bombardeado com rock em alto volume para que não pudesse dormir. Os agentes do FBI e funcionários locais da CIA tinham dúvidas quanto ao tratamento áspero. Entre aqueles que questionaram o método, diz um agente que acompanhou o interrogatório, estavam o chefe da estação da CIA na Tailândia, o diretor da prisão, um importante interrogador e um psicólogo da agência.
Não se sabe se eles protestaram junto ao comando, porque o volumoso tráfego de mensagens entre a Tailândia e a sede da CIA continua sigiloso. Uma testemunha diz que, dada a controvérsia posterior sobre a tortura, alguns dos participantes talvez tenham decidido exagerar a posteriori as suas objeções.
Com o passar das semanas, o psicólogo da CIA que havia protestado partiu, seguido primeiro por um e depois pelo outro agente do FBI. Mitchell começou a dirigir o interrogatório e a falar ocasionalmente com Zubaydah, diz uma testemunha.
No final de julho de 2002, Jessen foi se unir ao sócio na Tailândia. Em 1° de agosto, o Departamento da Justiça divulgou parecer formal autorizando os métodos da SERE, e os psicólogos reforçaram a pressão. Zubaydah passou duas semanas confinado em uma caixa, foi lançado repetidamente contra a parede e interrogado com o uso de waterboarding 83 vezes.
O tratamento brutal só parou depois que Mitchell e Jessen decidiram que Zubaydah não tinha mais informações a fornecer. Dirigentes da CIA chegaram e assistiram a mais uma sessão de waterboarding antes de decidirem que era hora de parar, de acordo com relatório do Departamento da Justiça.
Trabalho lucrativo
O caso de Zubaydah levou ao questionamento do método Mitchell-Jessen: as informações mais importantes que ele forneceu surgiram sem coerção. Mas os dirigentes da CIA mantiveram o método, que seria usado em pelo menos 27 outros prisioneiros, entre os quais Khalid Shaikh Mohammed, que passou por 183 interrogatórios com waterboarding.
Os planos de negócios de Mitchell e Jessen, enquanto isso, iam muito bem. Eles recebiam de US$ 1 mil a US$ 2 mil por dia, cada um, segundo um funcionário. Tinham mesas no centro de combate ao terrorismo e podiam alegar experiência real no interrogatório de líderes da Al-Qaeda.
Mitchell continuou trabalhando fora da CIA, além disso. Em outubro de 2003, ele fez uma palestra em um seminário de alto preço no hotel Ritz-Carlton, em Maui, Havaí, sobre como se comportar quando sequestrado. Criou novas empresas, a Wizard Shop (posteriormente Mind Science) e a What If. Sua primeira companhia, a Knowledge Works, ganhou certificação da Associação Psicológica Americana em 2004 como provedora de cursos de extensão. (A certificação foi cancelada no ano passado.)
Em 2005, eles criaram a Mitchell Jessen & Associates, com escritórios em Spokane e na Virgínia, e cinco outros acionistas, quatro dos quais oriundos do SERE. Em 2007, a empresa tinha 60 funcionários, alguns dos quais com notáveis currículos, a exemplo de Deuce Martinez, um dos principais interrogadores de Mohammed para a CIA; Roger Aldrich, lendário especialista em treinamento militar de sobrevivência; e Karen Gardner, ex-dirigente da FBI Academy.
Os contratos da empresa com a CIA são sigilosos, mas seu valor está na casa dos milhões de dólares. Em 2007, Mitchell comprou uma casa com piscina no subúrbio de Tampa, Flórida, hoje avaliada em US$ 800 mil. A influência dos psicólogos se manteve forte na CIA sob quatro diretores gerais diferentes. Quando a secretária de Estado Condoleezza Rice e seu assessor jurídico John Bellinger pressionaram contra o programa de detenção secreto da CIA e seus métodos, o então diretor, Michael Hayden pediu que Mitchell e Jessen informassem funcionários do Departamento de Estado e os persuadissem a abandonar as objeções - sem sucesso.
Àquela altura, o debate nacional sobre a tortura já havia começado, e isso destruiria o negócio dos psicólogos. Em mensagem aos funcionários da CIA, em 9 de abril, Leon Panetta, o diretor da agência apontado por Obama, anunciou o fechamento das prisões secretas e repetiu a promessa de não usar coerção. E havia um item adicional: "Não usaremos pessoal externo para interrogatórios".
A CIA cancelou os contratos com a Mitchell Jessen and Associates, e os sete lucrativos anos da companhia se acabaram. Dias depois, a empresa entregou o escritório de Spokane. Os telefones foram desligados e, nos escritórios vizinhos, ninguém sabe para onde eles se mudaram.
Fonte: The New York Times via Terra - Tradução: Paulo Migliacci
Os dois até então jamais haviam realizado um interrogatório real - apenas sessões simuladas no treinamento militar que supervisionavam. Não tinham formação acadêmica relevante - suas teses de doutorado eram sobre hipertensão arterial e terapia familiar. Não dominavam os idiomas falados pelos prisioneiros e não tinham conhecimento específico sobre a Al-Qaeda.
Mas dispunham de credenciais em psicologia e de um conhecimento profundo sobre o brutal regime de tratamento a prisioneiros empregado décadas atrás pelos comunistas chineses. E, para um governo disposto a tratar com dureza os responsáveis pela morte de 3 mil americanos, isso bastava.
Assim, "Doc Mitchell" e "Doc Jessen", como os dois eram conhecidos na força aérea, ajudaram a conduzir os Estados Unidos a um conflito dilacerante, sobre tortura, terrorismo e valores, que passados sete anos ainda não foi decidido.
Mitchell, dotado de um forte sotaque sulista e da autoconfiança ocasionalmente opressiva de um homem que conquistou o sucesso sem ajuda, era um antigo especialista em explosivos na força aérea e tinha talento natural como vendedor. Jessen, que cresceu em uma fazenda de batatas no Idaho, se uniu ao seu colega de força aérea para construir um próspero negócio que faturou milhões de dólares vendendo serviços de treinamento e interrogatório para a CIA.
Sete meses depois que o presidente Barack Obama ordenou seu abandono, o programa de interrogatórios da CIA continua a atrair atenção. Nas próximas semanas, o secretário da Justiça, Eric Holder, deve decidir se conduzirá uma investigação criminal na qual o papel dos dois consultores certamente seria examinado. O serviço de ética do Departamento da Justiça deve apresentar um relatório sobre os advogados que consideraram legais esses métodos de interrogatório. E a CIA em breve divulgará um relatório altamente crítico sobre o programa, produzido em 2004 pelo inspetor geral da agência.
O coronel Steven Kleinman, um especialista em interrogatórios e inteligência da força aérea que conhece Mitchell e Jessen, afirma acreditar que a lealdade ao país no pânico que se seguiu ao 11 de setembro os tenha motivado a iniciar seu trabalho no ramo dos interrogatórios. Ele acredita que o resultado tenha sido uma tragédia não só para os Estados Unidos como para os dois homens.
"Creio que a motivação primária deles era o fato de que acreditavam ter conhecimentos e percepções que tornariam o país mais seguro", disse Kleinman. "Mas boas pessoas podem fazer coisas horríveis, em situações extremas".
Para a CIA, bem como para Mitchell, 58 anos, e Jessen, 60 anos, a mudança de governo foi um choque. Por anos, o presidente George W. Bush declarou que o programa de interrogatórios era legítimo e o elogiou por ter servido para deter ataques. Obama, em contraste, diz que a brutalidade dos métodos empregados ajudou a Al-Qaeda a obter recrutas; definiu um dos métodos utilizados, o chamado "waterboarding", como tortura; e, em sua primeira visita à CIA, sugeriu que o programa de interrogatórios havia sido um dos "erros" da agência.
A perda dos favores oficiais sofrida pelos psicólogos foi tão súbita, depois disso, quanto sua ascensão havia sido em 2002. Hoje, o escritório que sediava a Mitchell Jessen & Associates, a lucrativa empresa que operavam de um edifício centenário em Spokane, Washington, estão vazios, depois do cancelamento abrupto dos contratos que tinham com a CIA, no trimestre passado.
Dada a possibilidade de um inquérito criminal, Mitchell e Jessen contrataram um conhecido advogado de defesa, Henry Schuelke. O advogado informou que seus clientes não se pronunciariam para este artigo, que se baseia em dezenas de entrevistas com seus colegas e atuais e antigos funcionários do governo.
Em uma breve troca de e-mails, em junho, Mitchell diz que seu acordo de confidencialidade com a CIA o proibia de comentar. Mas sugeriu que seu trabalho estava sendo mal representado.
"Se você procurar", ele escreveu, "tenho certeza que encontrará toda espécie de 'especialistas' que se disporão a inventar o que você quiser ouvir, sem se preocupar com a realidade".
Mudança de carreira
Na época do 11 de setembro, Mitchell acabara de se reformar de seu último posto militar, como psicólogo de uma unidade de operações especiais na Carolina do Norte. Exibindo seu talento empresarial, ele fundou a Knowledge Works, uma empresa de treinamento que ele dirigia de sua nova casa, na Flórida, para suplementar a aposentadoria.
Mas, para alguém com sua formação, parecia evidente que a campanha contra a Al-Qaeda ofereceria oportunidades. Começou a fazer contato nas forças armadas e agências de inteligência, aproveitando as amizades construídas ao longo da carreira.
Mitchell disse a amigos que havia tido uma infância pobre na Flórida e que se alistou na força aérea em 1974 em busca de aventura. Estacionado no Alasca, ele aprendeu a desarmar bombas e conquistou diplomas de graduação e mestrado em psicologia.
Robert Madigan, professor de psicologia na Universidade do Alasca que trabalhou com ele, recorda uma visita de Mitchell, anos mais tarde. Ele havia completado seu doutorado pela Universidade do Sul da Flórida, em 1986, com uma tese que comparava a eficiência de dietas e exercícios no controle da hipertensão, e estava trabalhando para a força aérea em Spokane.
"Lembro que ele me contou que estavam preparando pessoas para suportar interrogatórios intensos", afirmou Madigan. Depois da guerra da Coreia, o treinamento de sobrevivência das forças armadas americanas foi expandido, porque falsas confissões por prisioneiros americanos resultaram em acusações sensacionalistas de "lavagem cerebral" comunista.
Os militares decidiram que oferecer aos soldados uma amostra das técnicas chinesas de interrogatório os prepararia para resistir ao sofrimento.
O treinamento de sobrevivência da força aérea foi consolidado em 1966 na base aérea de Fairchild, próxima a Spokane. O curso, chamado Sobrevivência, Evasão, Resistência, Escape, ou SERE, ensinava aviadores a viver com os recursos encontrados onde caíssem e evitar captura, bem como a resistir caso aprisionados.
Nos anos 80, Jessen se tornou o psicólogo no curso, e avaliava os instrutores que assumiam o papel de interrogadores inimigos na prisão simulada operada pela escola de sobrevivência; seu papel era garantir que a brutalidade do tratamento não fosse excessiva. Ele cresceu em uma comunidade mórmon, e conquistou seu doutorado na Universidade Estadual do Utah com uma tese sobre "esculpir a família", um trabalho no qual pacientes produzem modelos físicos de suas famílias a fim de retratar relações emocionais.
Jessen assumiu em 1988 o principal posto de psicologia na "escola de pós-graduação" em sobrevivência, instalada em uma área próxima ao curso da força aérea, e foi substituído por Mitchell. Os dois se tornaram parte daquilo que alguns dirigentes do Departamento da Defesa definem como "máfia da resistência" - os especialistas em resistir a interrogatórios inimigos. Ambos tenentes-coroneis, e ambos casados e com filhos, os dois fizeram amizade e costumavam praticar escaladas nos finais de semana.
Embora muitos subordinados os vissem como inteligente e capazes, alguns colegas psicólogos tinham dúvidas. Na conferência anual de psicólogos do SERE, lembram dois colegas, Mitchell costumava arrasar quaisquer apresentações das quais discordasse.
Na escola, Mitchell era conhecido por proteger a segurança dos interrogados; talvez surpreenda seus críticos posteriores saber que ele proibiu o uso de uma técnica de interrogatório que causou uma série de lesões de pescoço aos interrogados, disse um colega.
Jesse é lembrado no curso de pós-graduação em sobrevivência por sua transição incomum de funções - de encarregado de proteger os interrogados a falso interrogador inimigo.
Nesse papel, ele se tornou tão agressivo que colegas intervieram para moderar seu comportamento, exibindo vídeos de seu desempenho "assustador", lembra outro colega.
E antigos e atuais integrantes do SERE afirmam que sempre foi entendido que o treinamento imitava os métodos de inimigos inescrupulosos. Mark Mays, o primeiro psicólogo do SERE, diz que para criar um campo de prisioneiros realista, os dirigentes consultaram prisioneiros de guerra retornados das apavorantes prisões norte-vietnamitas.
"Era claro que isso era o que esperávamos dos inimigos", diz Mays, hoje psicólogo clínico e advogado em Spokane. "Não era algo que eu jamais imaginasse ver feito pelos americanos".
Início do programa
Em dezembro de 2001, um pequeno grupo de professores, policiais e agentes de inteligência se reuniu na casa de um conhecido psicólogo, Martin Sligman, perto de Filadélfia, para discutir o extremismo muçulmano. Mitchell acompanhou Kirk Hubbard, um psicólogo da CIA, à reunião.
Em um intervalo, Mitchell se apresentou a Seligman e declarou sua admiração pelo trabalho dele sobre "desamparo aprendido". Os elogios escancarados o impressionaram a ponto de mencioná-los em conversa com sua mulher, naquele noite. Mais tarde, diz, ele ficou "horrorizado e pesaroso" ao saber que seu trabalho havia sido citado para justificar interrogatórios brutais.
Seligman havia descoberto nos anos 60 que cachorros que nada podiam fazer para evitar pequenos choques elétricos perdiam a energia e simplesmente grunhiam e aceitavam os choques mesmo que tivessem uma chance de escapar.
O conceito de "desamparo", que veio mais tarde a influenciar o tratamento da depressão humana, era muito discutido no treinamento militar de sobrevivência. Os instrutores tentavam evitar produzir essa sensação de desamparo nos participantes, porque a meta era fortificar o espírito dos militares capturados.
Mitchell, dizem colegas, acreditava que produzir desamparo aprendido em um cativo da Al-Qaeda que estivesse sendo interrogado garantiria que este aceitasse as ordens do interrogador. Muitos interrogadores experientes discordavam, alegando que prisioneiros desmoralizados a esse ponto diriam o que quer que imaginassem satisfaria o interrogador.
Na CIA, em dezembro de 2001, as teorias de Mitchell estavam atraindo a atenção dos dirigentes. Ele foi convidado a revisar um manual da Al-Qaeda apreendido na Inglaterra, que ensinava os terroristas a resistir a interrogatórios. Contactou Jensen, e os dois escreveram a primeira proposta de usar as técnicas brutais do inimigo - tapas, posições forçadas, privação de sono, empurrões e waterboarding - para um programa de interrogatórios americano.
No começo de 2002, Mitchell estava contratado como consultor no centro de combate ao terrorismo da CIA, cujo diretor, Cofer Black, e chefe de operações, Jose Rodriguez Jr., se deixaram impressionar por sua mistura de dureza e jargão psicológico. Uma pessoa que ouviu algumas discussões entre eles conta Segundo essa fonte, Mitchell sugeriu que os interrogatórios requeriam "nível comparável de medo e brutalidade ao de voar um avião contra um edifício".
Pelo final de março, quando agentes da CIA capturaram Abu Zubaydah, inicialmente descrito como terceiro em comando da Al-Qaeda, o plano de interrogatório Mitchell-Jessen estava pronto. Em uma prisão secreta da CIA na Tailândia, dois agentes do Serviço Federal de Investigações (FBI) estavam usando métodos convencionais de aproximação com o prisioneiro para extrair informações vitais de Zubaydah. Então, chegou a equipe da CIA, acompanhada por Mitchell.
Com aprovação dos diretores da CIA, ele ordenou que Zubaydah fosse despido, exposto ao frio e bombardeado com rock em alto volume para que não pudesse dormir. Os agentes do FBI e funcionários locais da CIA tinham dúvidas quanto ao tratamento áspero. Entre aqueles que questionaram o método, diz um agente que acompanhou o interrogatório, estavam o chefe da estação da CIA na Tailândia, o diretor da prisão, um importante interrogador e um psicólogo da agência.
Não se sabe se eles protestaram junto ao comando, porque o volumoso tráfego de mensagens entre a Tailândia e a sede da CIA continua sigiloso. Uma testemunha diz que, dada a controvérsia posterior sobre a tortura, alguns dos participantes talvez tenham decidido exagerar a posteriori as suas objeções.
Com o passar das semanas, o psicólogo da CIA que havia protestado partiu, seguido primeiro por um e depois pelo outro agente do FBI. Mitchell começou a dirigir o interrogatório e a falar ocasionalmente com Zubaydah, diz uma testemunha.
No final de julho de 2002, Jessen foi se unir ao sócio na Tailândia. Em 1° de agosto, o Departamento da Justiça divulgou parecer formal autorizando os métodos da SERE, e os psicólogos reforçaram a pressão. Zubaydah passou duas semanas confinado em uma caixa, foi lançado repetidamente contra a parede e interrogado com o uso de waterboarding 83 vezes.
O tratamento brutal só parou depois que Mitchell e Jessen decidiram que Zubaydah não tinha mais informações a fornecer. Dirigentes da CIA chegaram e assistiram a mais uma sessão de waterboarding antes de decidirem que era hora de parar, de acordo com relatório do Departamento da Justiça.
Trabalho lucrativo
O caso de Zubaydah levou ao questionamento do método Mitchell-Jessen: as informações mais importantes que ele forneceu surgiram sem coerção. Mas os dirigentes da CIA mantiveram o método, que seria usado em pelo menos 27 outros prisioneiros, entre os quais Khalid Shaikh Mohammed, que passou por 183 interrogatórios com waterboarding.
Os planos de negócios de Mitchell e Jessen, enquanto isso, iam muito bem. Eles recebiam de US$ 1 mil a US$ 2 mil por dia, cada um, segundo um funcionário. Tinham mesas no centro de combate ao terrorismo e podiam alegar experiência real no interrogatório de líderes da Al-Qaeda.
Mitchell continuou trabalhando fora da CIA, além disso. Em outubro de 2003, ele fez uma palestra em um seminário de alto preço no hotel Ritz-Carlton, em Maui, Havaí, sobre como se comportar quando sequestrado. Criou novas empresas, a Wizard Shop (posteriormente Mind Science) e a What If. Sua primeira companhia, a Knowledge Works, ganhou certificação da Associação Psicológica Americana em 2004 como provedora de cursos de extensão. (A certificação foi cancelada no ano passado.)
Em 2005, eles criaram a Mitchell Jessen & Associates, com escritórios em Spokane e na Virgínia, e cinco outros acionistas, quatro dos quais oriundos do SERE. Em 2007, a empresa tinha 60 funcionários, alguns dos quais com notáveis currículos, a exemplo de Deuce Martinez, um dos principais interrogadores de Mohammed para a CIA; Roger Aldrich, lendário especialista em treinamento militar de sobrevivência; e Karen Gardner, ex-dirigente da FBI Academy.
Os contratos da empresa com a CIA são sigilosos, mas seu valor está na casa dos milhões de dólares. Em 2007, Mitchell comprou uma casa com piscina no subúrbio de Tampa, Flórida, hoje avaliada em US$ 800 mil. A influência dos psicólogos se manteve forte na CIA sob quatro diretores gerais diferentes. Quando a secretária de Estado Condoleezza Rice e seu assessor jurídico John Bellinger pressionaram contra o programa de detenção secreto da CIA e seus métodos, o então diretor, Michael Hayden pediu que Mitchell e Jessen informassem funcionários do Departamento de Estado e os persuadissem a abandonar as objeções - sem sucesso.
Àquela altura, o debate nacional sobre a tortura já havia começado, e isso destruiria o negócio dos psicólogos. Em mensagem aos funcionários da CIA, em 9 de abril, Leon Panetta, o diretor da agência apontado por Obama, anunciou o fechamento das prisões secretas e repetiu a promessa de não usar coerção. E havia um item adicional: "Não usaremos pessoal externo para interrogatórios".
A CIA cancelou os contratos com a Mitchell Jessen and Associates, e os sete lucrativos anos da companhia se acabaram. Dias depois, a empresa entregou o escritório de Spokane. Os telefones foram desligados e, nos escritórios vizinhos, ninguém sabe para onde eles se mudaram.
Fonte: The New York Times via Terra - Tradução: Paulo Migliacci
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