por Camila Hessel, de Memphis
Bii-biiip...vroooooooom... zzzzziiiiiiiiinn.... bii-biiiiiiiip. Com a mão na buzina e os olhos no relógio, o motorista do tratorzinho branco tem menos de 30 segundos para alcançar o avião que acaba de pousar na pista do aeroporto de Memphis, no estado americano do Tennessee, onde a FedEx mantém o maior terminal aéreo de cargas do mundo. Relógios digitais de 2 metros de largura por meio metro de altura espalhados pela pista marcam 23h13. Para chegar a tempo no ponto exato, o pequeno veículo, conhecido como tug, precisa vencer uma massa de outros 1.199 minitratores, e tantas outras vans e micro-ônibus que transportam as 50 equipes, com de dez a 15 funcionários cada, responsáveis por descarregar as aeronaves que começam a aterrissar. Serão 153 aviões nesta noite. Um pouso a cada 96 segundos. Às 23h16, nove deles estão enfileirados no ar. Como garotas em um filme de Esther Williams – a vovó do nado sincronizado –, os aviões de cauda púrpura se alternam em curvas à direita e à esquerda assim que tocam o solo, desenhando um grande leque.
Em exatos 20 minutos, os contêineres retirados de um avião devem ser colocados na plataforma, que será puxada pelo tug até um grande armazém chamado de matriz primária. Ali, cada pacote dará continuidade à sua viagem, zigue-zagueando pelos 483 quilômetros de esteiras rolantes, entrando e saindo de túneis com escâneres a laser até desembocar em um novo contêiner, que será, então, conduzido por um tug a outro avião. Tudo isso precisa ocorrer em menos de quatro horas, já que as aeronaves devem iniciar o processo de decolagem rumo ao destino final daqueles milhões de pacotes até as 2h40. A partida ocorre em ritmo ainda mais frenético, já que o intervalo entre decolagens é quase a metade do observado entre as aterrissagens. Para que o cronograma seja mantido e os pacotes possam ser entregues até as 10 horas da manhã do dia seguinte, um avião deve deixar o aeroporto a cada 45 segundos. Isso significa que, em uma noite como a de terça-feira, 13 de janeiro de 2009, serão necessárias quase duas horas para despachar as 153 aeronaves que ocupam a pista. Poucos segundos de atraso em uma só decolagem podem comprometer um acordo vital para a continuidade da operação da FedEx: a exclusividade de uso do aeroporto de Memphis durante a madrugada, entre 23h e 5h.
A necessidade de processar 3,3 milhões de pacotes, em média, por dia num intervalo de apenas seis horas ajuda a entender a obsessão da FedEx pelo gerenciamento do tempo. Há relógios digitais por toda parte. Alguns deles marcam a hora, outros funcionam como cronômetros, em contagem regressiva para o tempo-limite de uma determinada tarefa – uma fronteira que, no jargão da companhia, é conhecida como “hora zero”. Frederick Winslow Taylor, o pai da administração científica, sairia para lá de orgulhoso de uma visita ao maior terminal de cargas da FedEx. Poucas empresas empregam tão bem quanto ela seu método de organização de trabalho, calcado em tarefas delimitadas, que obedecem a uma sequência e a um tempo pré-programados e constantemente controlados para evitar desvios que resultariam em desperdício.
“O tempo nos controla sem piedade. Ele não liga se estamos doentes, com fome, com sede, se somos russos, americanos ou seres de Marte. O tempo é como o fogo: ele pode nos destruir ou nos aquecer. Todo escritório da FedEx tem um relógio. Ele nos salva ou nos mata, porque vivemos ou morremos pelo tempo. Nunca voltamos as costas para ele e nunca, jamais, permitimos o pecado de perder a noção do tempo. O relógio é o temível capataz que pode nos tirar do negócio.”
As palavras acima poderiam ser atribuídas a Frederick Wallace Smith, 64 anos, o fundador e CEO da FedEx. O discurso sintetiza com perfeição o senso de urgência estampado no rosto de cada funcionário da companhia. Mas foram proferidas por Chuck Noland, personagem interpretado por Tom Hanks em O Náufrago, filme lançado no ano 2000. Nele, Hanks vive um analista de sistemas da FedEx responsável por implantar as operações da empresa na Rússia e é obrigado a viver numa ilha deserta depois que um avião da companhia cai no Oceano Pacífico. Tamanha fidelidade à filosofia da FedEx só foi possível graças ao envolvimento de Fred Smith, que rejeitou nada menos do que 32 versões do roteiro original. Sem a participação do fundador da empresa, os roteiristas do filme dificilmente teriam criado a cena em que os funcionários da filial russa improvisam uma linha de triagem de encomendas no meio da Praça Vermelha, em Moscou, para evitar que o pneu furado de uma van atrase as entregas previstas para o dia. O que eles fazem ali, com duas mesas, é uma reprodução fiel do que ocorre todas as madrugadas em Memphis.
Logo que são retirados de dentro do avião, os contêineres de encomendas são colocados em plataformas móveis e, em grupos de três ou quatro são conduzidos pelos tugs até a matriz primária. Ali, funcionários descarregam até 5 mil caixas e envelopes por hora, colocando-os em esteiras rolantes, que os redistribuem para dez áreas diferentes de triagem. Seis delas são dedicadas ao serviço doméstico, que processa as encomendas destinadas às diferentes regiões dos Estados Unidos. As outras quatro áreas de triagem destinam-se a materiais perigosos, entregas internacionais, cargas pesadas e documentos – os envelopes branco e laranja que fizeram a fama da FedEx no mundo e que correspondem à menor parte dos volumes transportados pela empresa. A redistribuição para as dez áreas de triagem é feita graças a um sistema de informação desenvolvido pela própria FedEx e que tem como chave o código de barras impresso em cada caixa ou envelope. Esse código de barras é o mapa da jornada que cada pacote deve percorrer pelo terminal de cargas naquela noite.
No exato minuto em que o pacote é colocado na esteira rolante, o código de barras estampado em uma de suas faces é escaneado. O escâner envia informações como peso, volume e CEP de destino para olhos eletrônicos posicionados ao longo da esteira principal. Estes, por sua vez, direcionam as encomendas às esteiras secundárias. Tem início, então, o segundo estágio do processo de triagem. Os pacotes são enviados para outras 20 áreas de processamento, onde são redistribuídos de acordo com critérios cada vez mais específicos, capazes de determinar a que aeronave cada um deles deverá ser destinado. As esteiras se bifurcam em labirintos a perder de vista, perfazendo um total de 483 quilômetros, ao final dos quais as encomendas serão acondicionadas manualmente em novos contêineres.
Nada é feito aleatoriamente. Como num jogo de peças de montar, a distribuição da carga no avião deve obedecer a um encaixe perfeito. Além de agrupar os itens por endereço de destino, é preciso distribuir o peso por igual, além de posicionar produtos inflamáveis próximos dos extintores de incêndio automáticos, por exemplo. Isso faz com que o processo de carregamento seja mais complexo e tome um tempo maior do que o de descarregamento. Enquanto o processo de retirada leva cerca de 20 minutos, o de embarque pode chegar a 60 minutos. Natural, portanto, que nenhum funcionário do terminal de cargas se arrisque a dizer mais do que um apressado boa noite ao grupo de jornalistas que visita a operação. Eles são corteses, mas nunca tiram os olhos das esteiras ou dos monitores.
A rotina do terminal de cargas se repete diariamente (com exceção dos domingos), o ano inteiro, desde abril de 1973, quando a FedEx remeteu 186 pacotes de Memphis para outras 25 cidades nos Estados Unidos, utilizando 14 pequenos jatos Dassault Falcon. Hoje, o volume médio é de 7,6 milhões de encomendas por dia – 3,3 milhões delas processadas em Memphis –, que são transportadas entre os 220 países e territórios em que a empresa atua. Hoje a frota de 677 aeronaves é a segunda maior do mundo. Fica atrás apenas da Delta Airlines, companhia áerea dedicada ao transporte de passageiros, que conta com 780 aviões. Em 36 anos, a Fedex só esteve ausente dos céus de Memphis por 52 horas, em setembro de 2001, quando o espaço aéreo americano ficou fechado para pousos e decolagens por causa do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York. Uma reportagem publicada pelo jornal The New York Times, em 14 de setembro de 2001, conta que, no dia seguinte à retomada dos voos, o diretor de operações do terminal de cargas de Memphis encontrou em sua caixa de correio o bilhete de um vizinho. “O som mais incrível que ouvi em muitos anos foi o dos aviões da FedEx sobrevoando minha casa ontem à noite. Aquele barulho colocou as coisas de volta em seu devido lugar.”
planejamento preciso Por trás do crescimento vertiginoso dessa empresa que faturou US$ 39 bilhões em 2008 está um modelo de negócios inovador, desenhado por Fred Smith ainda na faculdade. A premissa, que hoje soa quase óbvia, era que, com o avanço da globalização e a popularização da tecnologia da informação, seria preciso substituir os estoques, até então confinados em grandes depósitos, por um ciclo de distribuição mais ágil, que desse conta da nova velocidade de demanda. Um serviço de transporte expresso seria a opção para esse novo sistema de logística, em que insumos como peças de automóveis e componentes de computador seriam conduzidos entre os pontos de distribuição e consumo da noite para o dia.
“Quando começamos, há 36 anos, tínhamos 400 funcionários nos Estados Unidos. Hoje a equipe é formada por 290 mil pessoas ao redor do globo. Isso exigiu uma evolução contínua nos processos de gestão”, afirmou Fred Smith a Epoca NEGÓCIOS (leia entrevista à pág. 123). “Desde o princípio, adotamos um sistema de planejamento muito preciso, o que permitiu construir uma rede de operações flexível e ágil.”
Para convencer os potenciais clientes a trocar a segurança dos estoques fixos pelos serviços da FedEx foi preciso fazer mais do que apresentar argumentos sobre redução de custos ou ganhos de agilidade. Smith sabia bem disso. Era fundamental que os clientes fossem capazes de monitorar a carga em trânsito. “A informação sobre uma encomenda é tão importante quanto a encomenda em si”, diz Smith. Ao permitir que cada empresa ou consumidor conheça sua localização exata, a FedEx lhes oferece segurança equivalente à de um depósito fixo, do qual apenas o proprietário tem as chaves. Isso foi possível com a utilização de um terminal central de carga (o hub), combinado a uma sistemática de planejamento e controle. Cada movimento é parametrizado, ensaiado e supervisionado. Os dados coletados são usados para melhorar os serviços – e a eficiência operacional.
É por isso que, entre o ponto de retirada e o de destino, cada pacote é escaneado em média 15 vezes. Em encomendas internacionais, pode chegar a 23. O cronograma de voos e viagens terrestres é planejado com 140 dias de antecedência. Ajustes às previsões iniciais são realizados diariamente. O departamento responsável por planejamento e controle é formado por 200 funcionários, a maioria engenheiros. O centro nervoso desse trabalho é a sala de controle localizada no campus da FedEx em Memphis. Um mapa do mundo é projetado numa tela de 80 polegadas e mostra o movimento de todos os aviões, segundo por segundo. Uma das paredes é ocupada pela projeção da planilha com as escalas de voo e a manutenção de aeronaves. Na sala ao lado, uma equipe de 15 meteorologistas trabalha para prever fenômenos climáticos que podem afetar o tempo de voo e as condições de pouso e decolagem, desenvolvendo planos de contingência para evitar atrasos. Todas essas informações são cruzadas e acompanhadas por executivos encarregados de transmitir orientações às torres de controle dos aeroportos e aos pilotos. A disciplina imposta por esse modelo de operação levou à criação de rotas fixas, que conferem uma previsibilidade às entregas que era inviável no sistema de rotas aleatórias que existia no início da empresa. Não é à toa que o modelo foi adotado por concorrentes em todo o mundo, como a alemã DHL, a holandesa TNT e a americana UPS.
Presente no Brasil desde 1989, a FedEx opera cinco voos semanais entre o seu terminal de carga no aeroporto de Viracopos, em Campinas, a 100 quilômetros da capital, e o de Memphis. São transportadas, em média, mil toneladas por mês – um volume pequeno quando comparado ao dos principais terminais da empresa pelo mundo. Embora não revele faturamento ou participação de mercado por país, a FedEx afirma que o Brasil é um dos países de grande importância estratégica e hoje responsável por 70% dos volumes transportados pela empresa no Cone Sul. “O Brasil é o foco das operações na região”, afirma Carlos Ienne, diretor-geral da FedEx para o Mercosul. Em 2008, a empresa lançou no Brasil um novo serviço de liberação alfandegária, que dispensa a contratação de despachantes aduaneiros para o serviço de encomendas expressas. Isso deve impulsionar o crescimento dos volumes processados pela empresa.
Com a crise econômica, está mais difícil prever como será a evolução do desempenho da FedEx no curto prazo. De olho nos países com maior potencial de crescimento – e na China, em especial –, a empresa não brecou os investimentos. Em fevereiro deste ano, inaugurou o terminal chinês de cargas de Guangzhou, que irá permitir a realização de entregas em até 24 horas entre as 24 maiores cidades da Ásia. Mas isso não quer dizer que a FedEx esteja passando incólume pela crise. Ao contrário. Os lucros do trimestre encerrado em fevereiro registraram uma queda de 75%, bem maior do que as expectativas. Em dezembro de 2008, a empresa já havia cancelado o pagamento de bônus, e todos os funcionários da matriz concordaram em reduzir seus salários. O corte foi de 7,5% a 10% para os executivos de alto escalão e de 5% para os assalariados. Agora a empresa vai aumentar os cortes, que passarão a incluir funcionários baseados fora dos Estados Unidos. A companhia quer diminuir despesas em US$ 1 bilhão até 2010. Fred Smith reduziu sua remuneração em 20%. “Reconheço que essas são medidas duras, mas vivemos um cenário econômico sem precedentes, que requer atitudes decisivas. Esses passos difíceis irão conduzir a uma FedEx mais forte”, disse Smith aos funcionários. “Já vivemos isso antes e sei que vamos sair dessa.”
Fonte: Época Negócios (Abril de 2009 - Número 26)
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