domingo, 24 de abril de 2022

Como estes aviões voam contra as nuvens para fazer com que chova e neve mais

Com 61% dos estados contíguos dos Estados Unidos da América em seca, não seria agradável se pudéssemos “fazer chover” ou simplesmente “fazer mais neve”?

Via CNN Portugal

Cientistas norte americanos voam contra nuvens para fazer com que neve mais
Bem, algumas zonas do país estão a fazer exatamente isso, em certa parte. Chama-se inseminação de nuvens, e não é nada de novo. Existe desde os anos 40 e vários países têm-no feito por diversas razões (sobretudo a China), mas é uma prática crescente nos EUA, especialmente no Ocidente ameaçado pela seca.

E é um tópico rodeado de controvérsia.

Conversámos com Julie Gondzar, a gestora do Programa de Modificação Climática do Wyoming, que admite receber muitas chamadas em relação ao que estão a fazer.

Gondzar conta que algumas pessoas alegam que “estão a tentar fazer o papel de Deus”, outros que dizem “estão a roubar a humidade da tempestade”, fazendo com que outras áreas fiquem mais secas do que normalmente estariam, como se estivessem a tirar de um lado para pôr no outro.

Há também fatores ambientais a considerar, bem como a relação custo-eficácia, visto que no Ocidente, hoje em dia, a água é ouro líquido.

“Em poucas palavras: pensem nisto como se fosse um armazenamento de água, mas durante o inverno, no topo das montanhas”, foi como Gondzar descreveu o que a inseminação de nuvens está a tentar realizar no seu estado.

Wyoming iniciou este processo em 2003 como parte de um estudo. Deste modo, há dois anos, começaram a fazê-lo oficialmente depois do seu estudo de dez anos ter comprovado a sua eficácia.

Consequentemente, durante esta época, o Programa de Modificação Climática do Wyoming já fez 28 missões de voo para efetuar a inseminação de nuvens no estado norte americano.

O avião bimotor King Air que é utilizado para a inseminação de nuvens
Quando se compara Wyoming a outros estados como Utah e Dakota do Norte, que têm vindo a inseminar nuvens desde os anos 70 e 80, o estado é relativamente novo nesta prática.

A inseminação de nuvens utiliza uma nuvem já existente e injeta-a com iodeto de prata, o que adiciona pequenas partículas chamadas núcleos de gelo (que a água precisa para congelar). Em termos básicos, as nuvens são uma aglomeração de gotículas de água e/ou gelo cristalino que flutuam no céu.

Os núcleos ajudam a nuvem a produzir precipitação, e, por sua vez, os núcleos de gelo artificiais ajudam a criar mais precipitação do que a nuvem produziria caso contrário.

Pode ser feito de duas maneiras: uma a partir do céu, com iodeto de prata, e a outra do chão.

“Os geradores terrestres assemelham-se a pequenas estações meteorológicas, têm cerca de seis mil metros, e emitem aerossóis para a atmosfera”, explicou Gondzar. “Mas é necessário esperar pelas condições atmosféricas adequadas para que a penachoeira atravesse a cordilheira”. Isto torna a inseminação um pouco mais complicada, pois se o vento estiver a soprar na direção errada, falhará completamente o seu alvo.

No entanto, a forma mais popular é por avião, utilizando foguetes. “São colocados foguetes na asa e na barriga dos aviões com iodeto de prata no interior de caixas de cartão”, apontou Gondzar.

Esta fotografia mostra os foguetes colocados na asa do avião que alberga o
iodeto de prata utilizado para a inseminação de nuvens
Depois de o piloto voar em direção da tempestade, incendeiam-se as caixas de cartão cheias de iodeto de prata e “inseminam” as nuvens. O que resulta em mais humidade na nuvem, e, por conseguinte, mais precipitação.

O iodeto de prata é “é um componente salino natural”, salienta Gondzar. “A razão pela qual é utilizado é porque a forma geométrica reduzida a um nível molecular é muito semelhante à de um cristal de gelo. Sem esse fator fundamental, não é possível criar cristais de gelo adicionais, que se acumularão então em flocos de neve”.

Mas, se acham que podemos pôr um fim à seca através do uso de aviões para modificar questões climáticas, estão muito enganados, diz Gondzar.

Está funcionando?


“A inseminação de nuvens não vai resolver a seca”, comentou Gondzar. “Não podemos acabar com a seca através da inseminação. É uma ferramenta dentro de uma caixa cheia de outras ferramentas.”

Gondzar admitiu que, embora eles saibam que o método faz mais neve do que de outra forma obteriam, é difícil saber com precisão quanto mais é que estão a conseguir.

“Há evidências disso no radar e em todo o tipo de artigos escritos”, observou Gondzar. “A questão que eles estão a tentar responder agora é: até que ponto funciona bem? E essa é uma pergunta complicada de se responder. Porque há uma parte abstrata nisto. Não há realmente maneira de saber quanta neve um determinado sistema produziria”.

Gondzar tem noção de que a inseminação de nuvens não produz muita neve adicional, mas cada pedacinho ajuda.

De acordo com o Mapa de Dados dos Sistemas de Água do Wyoming, algumas áreas no estado encontram-se apenas a 60% da média para ter neve no solo, e, consequentemente, a janela para neve adicional está a fechar-se lentamente à medida que a época vai acabando.

Dado que a maior parte do Ocidente obtém a maior parte da sua água da neve, Gondzar espera que o que eles estão a fazer ajude um pouco a longo prazo.

“É uma pequena modificação incremental ao longo de um extenso período de tempo. É por isso que a consistência é importante”, exortou Gondzar. Acrescentou ainda que a 28-34 dólares por 1.233 metros cúbicos, a inseminação é relativamente barata.

“Estes números indicam-nos que esta é uma forma barata de ajudar a adicionar água ao sistema. Essencialmente, estamos a criar um pouco de neve adicional, que, mais tarde, se torna um fluxo de água suplementar na Primavera e no Verão".

Mas é preciso haver uma nuvem, para se fazer a inseminação de nuvens. Não podemos ir para o meio do Deserto de Mojave e fazer com que chova.

“Não é algo que podemos fazer acontecer do nada”, advertiu Gondzar. “O critério é muito específico para que isto funcione de forma eficaz”.

Só pode ser feito em nuvens já existentes que iriam produzir neve de qualquer das formas e tem de haver uma certa amplitude térmica. “O iodeto de prata na nuvem desencadeia essa neve”, explica Gondzar. “Mas não se pode simplesmente fazer neve do nada”. É preciso haver água líquida sobrearrefecida na nuvem".

Gondzar explicou ainda que parte do que tornou este ano complicado foi o clima muito mais seco durante o último mês. Houve menos oportunidades para fazer a inseminação. “Muita gente pensa que estamos a manipular o padrão do tempo”, referiu ela. “Estamos essencialmente apenas a brincar com a dinâmica e a física das nuvens, numa escala muito, muito pequena”.

Para além de gerente do projeto, Gondzar é também meteorologista e indica que a humidade dos sistemas meteorológicos vem de áreas muito maiores, tal como o Golfo do México ou o Pacífico. “Há sempre um enorme fluxo de humidade no qual os nossos sistemas estão a entrar em contato, e a inseminação de nuvens traz provavelmente mais um a 2% para a superfície”.

Fazer o papel de Deus


Embora Gondzar esteja confiante de que a inseminação de nuvens não rouba a neve de outra área, alguns cientistas discordam.

Daniel Swain é um cientista climático da UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles) e conversou com a minha colega e escritora climática Rachel Ramirez.

Ele explicou-lhe: “É possível que estejam realmente a roubar água de outra pessoa quando o fazem, porque pode ser, pelo menos numa escala regional, um jogo de soma zero em que se a água cair da nuvem num ponto, estará ainda mais seca quando chegar à próxima bacia hidrográfica.”

E prosseguiu, questionando: “Até que ponto é que não estão apenas a alterar a distribuição espacial da precipitação durante um período de escassez, em vez de fazer chover ou nevar mais em geral?”

Swain acredita que as questões de equidade da água precisam de ser investigadas mais aprofundadamente.

Um outro fator de controvérsia tem sido a segurança dos produtos químicos utilizados na inseminação de nuvens. Gondzar frisou que o processo não é feito com produtos químicos nocivos, como algumas pessoas alegam. Ela salientou que a equipa fez inúmeros testes antes de começarem oficialmente a inseminação e não conseguiram encontrar quaisquer vestígios de substâncias nocivas de prata.

“Há prata em níveis de base naturais na água, no solo, em toda a parte na superfície da terra”, observou Gondzar. “Portanto, já existem níveis naturais de prata. Tem sido extremamente difícil encontrar outros vestígios para além desses.

Gondzar refere ainda que a quantidade de iodeto de prata utilizada é de apenas algumas gramas por vez, o que ela considera ser um pequeno preço a pagar por recompensas vantajosas ao longo deste processo.

Por conseguinte, tem havido preocupações climáticas relativamente à inseminação de nuvens. Ramirez, o cientista climático, recorreu a alguns cientistas para ouvir as suas opiniões acerca deste fenómeno científico.

Os cientistas climáticos mantêm-se céticos


Apesar da inseminação de nuvens já existir há décadas e estar atualmente a ser realizada em cerca de 50 países, muitos cientistas climáticos ainda se mantêm cépticos quanto à eficácia desta tecnologia, como também quanto ao tempo e esforço investidos na tentativa de manipular o clima. Swain salienta que, historicamente, tem sido difícil elaborar experiências científicas para testar a eficácia deste processo, deixando para trás um rasto de provas pouco claras e intangíveis sobre quais são os seus benefícios.

“Como é que sabem qual será a quantidade de precipitação que caíra daquela nuvem devido à inseminação? Ou quanta teria caído sem ocorrerem ao uso desse processo?", disse Swain à CNN. “Este não é um caso em que se pode fazer uma experiência controlada.”

De acordo com Swain, as experiências de inseminação de nuvens lidam normalmente com um conjunto limitado de parâmetros, tendo em conta as condições meteorológicas, incluindo a cobertura de nuvens, a hora do dia e a localização. Para além disso, a rápida mudança climática acrescenta mais um ponto à lista de variáveis. À medida que o planeta aquece, os padrões meteorológicos e as nuvens estão em constante evolução, muitas vezes de forma inesperada.

E é precisamente disto que Sarah Tessendorf, uma cientista do Centro Nacional de Investigação Atmosférica, e outros investigadores de universidades e uma empresa de energia de Idaho, se propuseram a analisar em 2017. Os seus resultados, publicados em 2020 no jornal Proceedings of the National Academies of Sciences, conseguiram determinar a eficácia da inseminação de nuvens. No entanto, as incertezas ainda persistem.

Durante os meses mais frios do inverno em 2017, os investigadores sobrevoaram Payette Basin em Idaho, injetando iodo de prata nas nuvens, utilizando simultaneamente radares e modelos para medir o seu impacto na queda de neve.

Durante três ocasiões em que foi feita a inseminação, foram identificados “padrões de inseminação inequívocos” em grupos de nuvens frias que não produzem gelo, mas, após serem inseminadas, cristais de gelo formaram-se no interior da nuvem reproduzindo o mesmo padrão em que a aeronave tinha voado. Seguidamente, foram capazes de rastrear o gelo formado e a neve até ao solo e medir a quantidade de neve adicional que caiu das nuvens inseminadas.

Apesar dos resultados, Tessendorf afirmou que precisam de ser feitas mais experiências de forma a melhorar a tecnologia para que esta se torne numa solução significativa para a crise climática. A quantidade de precipitação produzida pela inseminação, até 10%, não é suficiente para saciar o Ocidente afetado pela seca.

"Poderia ajudar ao longo dos anos a aumentar os níveis de armazenamento nos reservatórios, de modo a que, quando estivéssemos numa situação mais delicada, fosse possível termos um pouco mais de água, chuva e neve, do que normalmente teríamos", disse ela. “A meu ver, essa é forma como a inseminação de nuvens devia ser interpretada. Não uma solução milagrosa, mas uma ferramenta útil na caixa de ferramentas de um gestor de água”.

Quando se trata de combater as alterações climáticas muitos também questionam métodos como a utilização de aviões abastecidos com combustível fóssil para injetar iodeto de prata nas nuvens, argumentando que é contra-intuitivo para os objetivos climáticos que visam reduzir as emissões de combustíveis fósseis. Porém, a Tessendorf argumentou que é um pequeno preço a pagar para melhorar a tecnologia.

“Direi que o número de aviões e a duração destes voos para fazer a inseminação e os programas que a estão a fazer atualmente, são insignificantes em comparação com o número de voos comerciais e aviões que temos nos céus espalhados pelo mundo inteiro neste momento”, defendeu ela. “Portanto, isso para mim é uma gota num oceano de combustíveis fósseis extra que estão a ser queimados”.

“Mas isso não significa que não haja espaço para melhorias de modo a que o processo seja mais limpo”, acrescentou Tessendorf.

​​Com a crise climática a intensificar-se, os cientistas climáticos como Swain dizem que os recursos são muito mais bem investidos em soluções climáticas que já garantem impactos significativos e equitativos.

“É necessário haver estudos controlados que demonstrem que foi a inseminação que aumentou a precipitação de uma forma significativa”, afirmou Swain. “O cenário ideal consiste num pequeno acréscimo a outras medidas de poupança ou conservação de água durante períodos escassos, mas mesmo isso não é claro se funcionaria realmente nessa capacidade de uma forma sistemática”.

Por Jennifer Gray e Rachel Ramirez (CNN) - O meteorologista da CNN Judson Jones colaborou neste artigo

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