Repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, foi chamado para ir ao aeroporto na noite do dia 29 de setembro quando surgiram as primeiras informações sobre o desaparecimento do avião na floresta amazônica. No livro "Caçadores de Luz - Histórias de Fotojornalismo", editado pela Publifolha, Marques narra como foi a cobertura fotográfica do acidente, desde a primeira noite com os familiares dos passageiros no aeroporto até o resgate das vítimas, na Serra do Cachimbo.
Leia o trecho abaixo:
A LUTA PELA IMAGEM
VÔO 1907, por ALAN MARQUES
Para maioria dos brasileiros, sexta-feira é sinônimo de festa e de alegria. Para os jornalistas nem tanto, porque é nesse dia que os jornais costumam fechar as matérias quentes da próxima edição e os cadernos especiais de sábado e de domingo. Para nós, sexta-feira é o dia do "pescoção", com muito trabalho até a madrugada. Às 20h de 29 de setembro de 2006, no último dia útil da semana, antevéspera do primeiro turno das eleições para presidente da República, eu estava dispensado do fechamento (porque tinha de trabalhar no sábado e no domingo) e deixei a Redação brincando, com a frase-clichê: "Só me liga se cair um avião".
Uma hora depois, pronto para tomar uma chuveirada, o telefone tocou. Com uma voz carregada, o coordenador do plantão da Redação disse: "Não estou de brincadeira. Tem um avião da Gol sumido e há a possibilidade de ele ter caído entre Brasília e Manaus. Vá para o aeroporto, porque os familiares dos passageiros estão lá". Não pensei que fosse brincadeira. Tomei banho em dez minutos, peguei a minha câmera e me mandei. Ao chegar ao Aeroporto Internacional de Brasília, vi que a situação era grave: várias equipes de TV e jornais já estavam por lá. Todos estavam ávidos por informação das autoridades e o clima era muito tenso. No monitor de chegada dos vôos piscava "Gol 1907, procurar o balcão da companhia", mas no balcão não havia qualquer informação precisa sobre o que havia ocorrido com aquele vôo. Comecei a procurar uma foto que traduzisse o caos que me cercava.
A conta-gotas, as informações eram trazidas pela assessoria de imprensa da Infraero. Extra-oficialmente, falava-se que o avião tinha caído e que o número de pessoas no vôo era de 154, entre passageiros e tripulação. O desespero dos familiares aumentava com a entrada da noite e fazer fotos dessa situação causava um desconforto medonho. Os rostos cheios de desespero e as lágrimas descontroladas tiravam a vontade de fotografar. O meu trabalho se tornava penoso e irritava tanto a mim quanto aos personagens da reportagem. Mas tinha que fotografar. Entre produzir e transmitir o material do meu computador pessoal para a Redação da Folha de S.Paulo, o tempo passou lento. À meia-noite, fui dispensado, com o compromisso de estar cedo no hotel reservado pela empresa aérea aos familiares dos passageiros.
Dormi pouco. Cheguei cedo ao hotel, às sete da manhã, preparado para viajar para a área do acidente se fosse necessário. Na entrada do lobby encontrei um amigo fotógrafo sem o equipamento. Numa conversa breve, descobri que o pai dele estava no vôo. O personagem da matéria tinha cara, sentimento, sofrimento. Era um amigo sofrendo. Foi difícil trabalhar.
O meu fim de semana tinha mudado: de cobrir a eleição passei para a cobertura do maior acidente aéreo da história do país. O chefe do plantão da Redação me avisou que a Folha havia reservado um jato para que eu, outro fotógrafo e um repórter nos deslocássemos para a serra do Cachimbo (divisa de MT e PA), região da queda do avião. Um carro do jornal me pegou no hotel, levou-me até um hangar no aeroporto de Brasília e, em menos de trinta minutos, eu estava dentro de um jato particular em direção à área do acidente. Voei para Sinop (MT), peguei um carro e enfrentei mais duas horas de estrada até a cidade Peixoto de Azevedo (MT). Ali era o último ponto de asfalto antes de enfrentar as estradas da floresta Amazônica, até encontrar um repórter da Agência Folha já na região. Para seguir para a fazenda Jarinã, base de apoio montada pela Aeronáutica, tinha de enfrentar horas de estrada de terra, no meio da mata. Separei-me dos outros dois repórteres da Folha, que seguiram para a base militar na serra do Cachimbo. A segunda equipe tinha a missão de levantar a história de um avião particular da marca Legacy envolvido no acidente, pousado na base militar. Desejei boa sorte aos camaradas e procurei o caminho para chegar ao local da queda do avião de linha.
O vôo e a viagem de carro haviam consumido grande parte do sábado. Cheguei ao hotel para encontrar o repórter quando já começava a escurecer. Sentado na porta, estava ele, uma figura de mais de 1,90 m, forte, entre 40 e 50 anos, com um nariz de boxeador. Chamava-se José Maschio, o Ganchão. Conversei com ele e avisei que queria seguir direto para a fazenda onde a Aeronáutica havia montado a base de operação das equipes de resgate. Ganchão olhou para o carro de passeio que o jornal havia reservado para mim e riu. O carrinho podia ser valente no asfalto, mas, para Ganchão, não dava para enfrentar a floresta Amazônica. Não tinha escolha e era naquele carro de mil cilindradas que tínhamos que enfrentar a mata. Não havia outro jeito, então partimos.
Foram seis horas de buracos e lama. E de janela aberta, porque Maschio fumava como um "caipora". Descobri que o apelido de Ganchão vinha da adolescência dele, como zagueiro de um time do Paraná; que era um pequeno agricultor; que nas horas livres do jornal fabricava a própria lingüiça de porco; e que sentia uma afinidade anarquista com os movimentos de esquerda, principalmente o MST (Movimento dos Sem Terra). Nossa conversa acabou desmanchando aquela cara de poucos amigos do correspondente.
Chegamos na madrugada e aguardamos o sol nascer no campo de apoio da Aeronáutica, na fazenda Jarinã. A rotina rural foi totalmente modificada com os militares que usavam o galpão como dormitório e o campo de futebol como ponto de pouso dos helicópteros. A correria de soldados e o vaivém das aeronaves enchiam os olhos dos moleques e espantavam as vacas de um pasto próximo.
As primeiras notícias naquela manhã eram a inexistência de sobreviventes, a confirmação do choque entre os dois aviões, com o detalhe apavorante de que o avião da Gol havia se partido na colisão e lançado muitos passageiros no ar. A notícia boa era de que o outro jato havia pousado em segurança na base militar da serra do Cachimbo, com apenas parte da asa danificada. As causas teriam sido, primeiro, as torres de controle em terra autorizarem os dois aviões a ficar na mesma altitude e, depois, o fato de uma falha no sistema anticolisão (transponder) não ter alertado os pilotos.
A primeira equipe de resgate voltou no domingo para a base de operações na fazenda Jarinã, após localizar os corpos de um homem e de uma mulher. Os militares encontraram os dois passageiros muito distantes um do outro. Os corpos estavam nus e "enterrados" mais de meio metro no solo devido à queda. Os soldados desceram de pára-quedas na área do acidente, ainda no sábado, e dormiram no meio da mata. Como as partes do avião estavam espalhadas, o raio de ação do resgate seria maior, e seriam necessários mais homens. Os pedaços do avião passaram pela copa das árvores sem danificá-las e sem abrir uma clareira. O local estava na reserva indígena Capoto-Jarinã e os índios de lá tinham a fama de bater nos invasores. Desenhava-se uma cobertura longa e muito difícil.
Precisava fotografar a área da queda o mais rápido possível. Pode parecer um pensamento frio, mas fazer uma imagem do local do acidente era de interesse público, mostraria as condições de trabalho das equipes de resgate e deixaria mais transparente a ação das autoridades. Comecei a procurar uma caminhonete que me levasse ao local da queda, mas não havia transporte apropriado para a região. Nem mateiro-guia que conhecesse o caminho. Minha cabeça rodava à procura de uma solução que evitasse minha prisão, ou uma surra dos índios.
Mas ruim só é pouco até o pior chegar. Um fotógrafo de um jornal concorrente conseguiu uma picape com tração nas quatro rodas e dois mateiros-guia da região para conduzi-lo da fazenda até o local do acidente. Quando vi aquilo, fui falar com ele para ver se podia rachar o custo da viagem e ir com a excursão pela mata. Com um ar blasé, ele disse que não daria a carona porque o jornal para que ele trabalhava pagaria tudo e portanto não poderia me levar. O concorrente foi mais rápido e contratou alguém da fazenda para levá-lo pela mata."Comi mosca", pensei; "vou tomar um furo."
Tinha de conseguir uma maneira de chegar ao local da queda. Enquanto a solução do meu problema não vinha, comecei a fazer fotos da movimentação da equipe de resgate, para ter algo para transmitir à Folha. Sem nenhum plano genial em mente, sentei à mesa do refeitório da fazenda e comecei a escanear as fotos no meu laptop. Eis que uma mão bate no meu ombro e me tira a concentração. O mesmo fotógrafo concorrente, que havia negado a carona, pedia-me para eu levar o cartão de memória com as fotos feitas por ele sobre a movimentação das equipes de resgate até a cidade de Peixoto de Azevedo. Não seria problema para mim, porque era nessa cidade o meu ponto de transmissão das matérias; o favor seria entregar o cartão de memória com as fotos para o repórter do jornal concorrente e pedir que ele as enviasse.
Quando ele me negou a carona, entendi perfeitamente. Só não entendi se, agora, com aquela conversa, ele era ingênuo ou se debochava da minha inteligência. Respondi rápido que não podia levar as fotos dele porque era a Folha que pagava o meu salário, o aluguel e a gasolina do carro. Ele ficou pasmo, deu meia-volta, foi em direção à mata e nunca mais falou comigo. O concorrente e os dois mateiros se perderam na selva e tiveram que voltar para a fazenda Jarinã dois dias depois, sem ter conseguido alcançar o local da queda do avião.
No meio da manhã, chegou um grupo de índios para ajudar na busca. Liderados pelo cacique Megaron Txucarramãe, chegaram armados de enxadas, facões, com duas caminhonetes com tração nas quatro rodas e barcos. Megaron abria um sorriso falhado para os militares, ao afirmar que alguns de seus guerreiros já haviam chegado ao local. A informação que ele trazia era de que havia vários corpos no meio das árvores. Não tive dúvida, tentei convencer o cacique a me levar com o grupo. Depois de uma breve conversa, Megaron me autorizou a segui-los mata adentro. Juntei dois litros de água, comida e segui o comboio de duas caminhonetes com o meu carro de passeio.
Os índios não tinham pressa, ou pelo menos não tinham a afobação de quem precisava fechar uma edição de jornal. Pararam no meio do caminho para comer banana, colher goiaba e beber água. Iam sintonizados com o ritmo da floresta. Após quarenta minutos com os índios, tínhamos avançado um pouco mais de 10 km de estrada de terra. Na entrada de uma picada, o chefe do grupo me avisou que, a partir daquele ponto, eu teria que ir a pé. Quando estava pronto para me enveredar na mata, um agente da polícia militar da região passou pelo meu carro e me entregou um recado de um colega repórter da CBN, preocupado comigo. O aviso do amigo jornalista era pra eu voltar, porque a Força Aérea iria autorizar um helicóptero a sobrevoar o local do acidente. Mudou tudo. Agradeci Megarom e fui para a fazenda Jarinã. Cheguei em 15 minutos ao local de onde sairia o vôo, mas tive que esperar o horário da decolagem. Só depois descobri que Megaron levou uma semana de caminhada na mata para chegar perto dos destroços.
A autorização para voar até o local tinha restrições que demonstravam a preocupação dos militares em não comprometer a operação de resgate dos corpos, evitar que o local fosse invadido por curiosos e não deixar a imprensa captar imagens grotescas. O helicóptero que me levaria ao local seria um dos últimos do dia, o mesmo usado para a troca de times de resgate (para evitar o desperdício de um vôo só para a imprensa) e teria limite de carga. O ponto de pouso seria uma das duas clareiras abertas pelos militares, no braço, no meio do mato, perto de duas grandes partes do avião da Gol - o ponto de partida para entrar na mata e receber suprimentos.
O tempo passava e nada de vôo. O dia perdia a luz do sol e nada. O comandante da missão de resgate avisou que havia limite de passageiros, porque a nossa oportunidade de sobrevoar a área seria na carona da troca de equipes de resgates, e era necessário sortear entre os repórteres. Ninguém queria ficar para trás. Tive sorte e embarquei. O helicóptero decolou às 17h para uma das clareiras, mas tinha me comprometido, como todos os outros jornalistas, a não sair da aeronave no momento em que ela tocasse o solo. Tinha de me sintonizar com o ritmo do resgate.
Finalmente decolamos. O helicóptero voava com as duas portas fechadas e o espaço era dividido com uma equipe de militares que substituiria a que estava em terra. Sentado numa cadeira e amarrado pela cintura a um cabo de aço, eu esperava chegar ao local para que as portas fossem abertas para fotografar. O barulho do motor e da lataria era ensurdecedor e apavorante. Depois de cerca de 40 minutos sobre mata fechada, sobrevoamos o local do acidente e as portas foram abertas. O vento forte forçava os meus óculos de grau contra o rosto, a ponto de eu não poder tirar a câmera fotográfica da minha frente, para não perdê-los. Estávamos nos aproximando de pequenos pontos brancos misturados ao tapete verde da floresta. Aquilo que pareciam cascas de ovos eram pedaços do avião acidentado. Uma fileira de cadeiras de passageiros pendia no topo de uma árvore da altura de um prédio e a parte da asa do avião onde fica o trem de pouso repousava no solo. Enchi o meu cartão de um gigabyte de memória em poucos segundos. Abasteci a máquina com um novo cartão de um gigabyte para registrar o pouso na clareira e a troca do time de resgate.
O acordo imposto pelos militares era de que quando o helicóptero pousasse no local do acidente para trocar as equipes de resgates, nenhum jornalista poderia descer - não só por conta do risco da operação, mas porque era necessário preservar o local para a perícia. O helicóptero começou a descer em uma clareira feita sob medida, onde a cauda dele ficava a poucos metros de árvores maiores do que prédios de seis andares. A precisão era essencial para garantir a segurança de todos. O suor escorria pelo meu rosto e embaçava as lentes dos meus óculos Os soldados prontos para desembarcar estavam com feições duras, suados. Cheirava a óleo diesel. Tocamos o solo. O grupo que viajou conosco correu abaixado para não ser pego pela hélice e cruzou com a outra equipe no meio do caminho. Os soldados que voltavam traziam o rosto carregado. Tive só alguns minutos para transformar a operação em imagem jornalística. Tudo aconteceu muito rápido - e decolamos.
A volta parecia ser mais longa. Chegamos à base de operações na fazenda perto das 19h. Tinha que me apressar para mandar as fotos antes do fechamento e antes dos outros fotógrafos. Era uma corrida contra o relógio. Precisava voltar para a cidade de Peixoto de Azevedo, a seis horas da base de operações. Fiz contato com o jornal pelo rádio da fazenda para confirmar o horário do fechamento da Folha naquele domingo. Como havia o primeiro turno das eleições gerais naquele dia, o jornal só fecharia após o resultado da apuração das urnas. Eu tinha até as 23h para mandar a foto. Durante o vôo de helicóptero, Ganchão havia conseguido uma carona na fazenda e se mandou para transmitir a matéria. Precisava me virar para mandar as fotos. Na fazenda mesmo, tratei meu material e o deixei pronto para transmissão. Precisava de uma linha telefônica. Começou a chover. O ritmo do fechamento do jornal era a única coisa que me preocupava.
A estrada de terra virou lama. O farol do carro de mil cilindradas não rompia o breu da floresta. O barro escorregadio teimava em me forçar para cima das árvores. Meu braço doía por conta da luta que travava para me manter no caminho. O carro começou a puxar com muita força para o lado direito e parecia estar mais lento e difícil de controlar. Tinha furado um pneu. Encostei e comecei o processo para a troca. Levantei o carro com o macaco, arranquei o pneu, mas antes mesmo de colocar o estepe no lugar do pneu avariado, o chão encharcado e enlameado engoliu o macaco. Joguei os tapetes do carro no chão para usar como apoio do macaco, que mais uma vez afundou. Fui para o meio da mata para arranjar um pedaço de madeira para usar e, mesmo com tantas árvores ao meu redor, não consegui algo que servisse de apoio. Faltavam duas horas para o fechamento e eu ainda estava a pouco mais do meio do caminho. O desespero me fez começar a usar tudo que tinha dentro do carro para fazer a base do macaco mecânico. Finalmente tive a idéia de usar o pneu furado, que consegui tirar do eixo do carro antes de o macaco afundar. Funcionou. Mais 20 minutos de esforço e continuei a viagem. Não dava tempo para chegar a Peixoto de Azevedo e precisava arranjar um telefone para conectar o computador.
Parei num posto de gasolina de povoado. Abasteci o carro e pedi para usar o telefone. O frentista me deixou usar o aparelho após uma conversa que me custou mais que a gasolina. Mas o telefone era via rádio e não funcionava para conexão de computador. Segundo o frentista, havia uma casa do outro lado da pista, com um telefone fixo; era a residência de uma vereadora de Peixoto de Azevedo, moradora da região. Eu estava todo sujo de barro, com o meu equipamento pendurado no pescoço e o computador no ombro. Bati na porta da vereadora. Ela me recebeu com um sorriso, autorizou o uso do telefone e pude conectar meu computador para mandar as fotos. Passava da meia-noite, mas todas as minhas fotos estavam na Redação em São Paulo. Precisava agora enfrentar outras duras horas até chegar à cidade.
A noite foi curta. Com o primeiro raio de sol, já tinha que voltar para a base da Aeronáutica. O carro que alugara estava detonado e a concorrência tinha alugado todas as caminhonetes da cidade. Como voltaria para a base? A resposta veio com o repórter Ganchão, que havia chegado antes de mim na cidade e conseguido uma caminhonete cabine única, mas de carroceria fechada. Era o carro de uma empresa funerária chamada Santa Clara e tinha a parte traseira coberta para o transporte de caixões. A cabine do carro ficou pequena com o volume do motorista e o tamanho do Ganchão. E como eles fumavam! Não tive dúvida: arranjei um colchão e um travesseiro e pulei para a carroceria da caminhonete.
No caminho, cada vez que o rabecão Santa Clara parava, os curiosos corriam para ver se transportava um corpo do acidente. Às vezes, eles se assustavam comigo deitado ou, os mais engraçadinhos, soltavam "corre que esse já está fedendo". Entre paradas para esticar as pernas e para abastecer, levamos apenas cinco horas na viagem. Conseguimos chegar à fazenda Jarinã para mais um dia de cobertura às 10h.
A estrutura para a operação de resgate impressionava pelo profissionalismo e pela dedicação de todos os envolvidos. O Instituto Médico Legal de Brasília montara uma zona de identificação dos corpos perto do ponto de decolagem e pouso. A Força Aérea usava cinco helicópteros, um avião radar, um avião de carga de transporte de equipamentos e uma UTI aérea; havia cerca de 180 soldados envolvidos diretamente. A busca pelos corpos foi ampliada para 20 km2 do local em torno do possível ponto inicial da queda.
As equipes de resgate saíam da fazenda Jarinã de helicóptero e desciam por corda no meio da mata. Depois, o grupo caminhava em linha, ombro a ombro, para passar "um pente fino" em cada ponto. Ao localizar um corpo, ele era preparado para ser içado por helicóptero, transportado para a fazenda e guardado em caminhão frigorífico, para ser identificado pelos peritos do IML. Naquela manhã, haviam resgatado algumas dezenas de corpos e já havia começado o processo de coleta das impressões digitais. A distância passava de mil metros, mas dava para fotografar o trabalho dos legistas - não sem ser afetado pelo cheiro dos corpos. Minha maior preocupação era não mostrar nada que identificasse os passageiros.
Os dias passavam. Minha rotina começava às cinco da manhã com a viagem de cinco horas dentro de um rabecão da cidade até a base da Aeronáutica. Fotografava o que podia até as duas da tarde e enfrentava mais horas de volta dentro da carroceria. As fotos se repetiam. O texto tornava-se mais burocrático com a contabilidade dos corpos resgatados e pequenos detalhes do resgate, como uns passageiros que previram a tragédia e guardaram o documento de identidade dentro da cueca ou cruzaram os dedos antes da queda.
O interesse do jornal passou a ter mais foco nas causas do acidente. A minha função no meio da mata perdia força e duas semanas após chegar à selva amazônica, fui avisado de que devia voltar para Brasília. A cobertura me fez perder quatro quilos. Tinha dormido em média quatro horas por noite, mas o que me marcou mais foi o cheiro, que não saía da roupa mesmo depois de lavada e parecia me seguir mesmo a centenas de quilômetros do local. Para voltar pra casa, tive que dirigir de Peixoto de Azevedo até a cidade de Sinop e pegar um avião para Campo Grande (MS). Deveria dormir naquela capital porque o último vôo para Brasília saía 20 minutos depois da minha chegada. Estava exausto, sentia um vazio no peito e tinha muitas saudades da minha família. Para minha sorte, assim que desembarquei caiu uma tempestade forte, que provocou falta de luz no aeroporto - onde não havia gerador de emergência. Com o fim da energia, o último vôo para Brasília atrasou mais de uma hora e meia, que foi o tempo certo para embarcar. O pensamento que martelava a minha cabeça era de que o mais importante dessa viagem, afinal, foi conseguir voltar para casa em segurança.
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"Caçadores de Luz - Histórias de Fotojornalismo"
Autores: Sérgio Marques, Lula Marques e Alan Marques
Editora: Publifolha
Páginas: 240
Quanto: R$ 37,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha.