Seu entendimento com os terroristas leva ao cerne do debate sobre os interrogatórios.
Microfone usado para tomar depoimentos dos acusados de terrorismo presos na base militar norte-americana em Guantánamo, Cuba. (Foto: The New York Times)
Em uma prisão temporária no norte da Polônia, o engenheiro de assassinatos em massa da al-Qaeda enfrentou o interrogador da CIA. Haviam se passado 18 meses dos ataques de 11 de Setembro, e a invasão ao Iraque dava novos motivos aos muçulmanos extremistas para atacar. Se alguém sabia sobre o próximo plano, era Khaled Shaikh Mohammed.
O interrogador, Deuce Martinez, um analista de voz suave que não falava árabe, havia recusado uma oferta da CIA para ser treinado numa forma de tortura chamada “afogamento simulado”. Ele escolheu deixar o uso da dor e do pânico para outros, os entusiasmados paramilitares, chamados de "knuckledraggers" pelos interrogadores mais cerebrais.
Martinez chegou depois da brutalidade. Era o mais novo bom policial com as habilidades clássicas: presença nada marcante, paciência incansável e uma disposição para ouvir as queixas e reflexões de um assassino cruel em inglês imperfeito e errado. Ele alcançou um entendimento com Mohammed que surpreendeu seus colegas da CIA.
Um sagaz oponente, Mohammed misturou desinformação e fanfarrice a detalhes de ataques, decorridos e planejados. No final, ele se tornou loquaz. “Eles tinham longas conversas sobre religião”, comparando observações sobre o Islã e o catolicismo de Martinez, lembra um oficial da CIA. Ele acrescenta que havia outro detalhe que ninguém poderia prever: “Ele escreveu poemas para a esposa de Deuce.”
Martinez, que até então já havia interrogado pelo menos três outros prisioneiros de alto nível, trazia aperitivos a Mohammed, geralmente tâmaras. Ele escutava o desespero de Mohammed sobre a probabilidade de ele nunca mais ver seus filhos de novo e seu catálogo de queixas sobre suas acomodações.
“Ele queria uma vista”, lembra o oficial da CIA.
O papel de Martinez no programa de interrogatórios da CIA oferece a melhor visão até hoje do que ocorre por baixo do véu que esconde o programa dos terroristas e dos críticos que acusam a agência de tortura.
Além do sucesso do interrogador, essa prestação de contas inclui novos detalhes sobre a campanha contra a al-Qaeda, incluindo a mensagem de texto que levou à captura de Mohammed, e as diferentes equipes que, nas prisões secretas da CIA, traziam agonia ou faziam perguntas.
O programa da CIA funciona da seguinte forma: um time paramilitar coloca pressão, usando baixas temperaturas, privação de sono, dor e medo para fazer um prisioneiro falar. Quando o prisioneiro demonstra assentimento, os torturadores saem de cena.
Depois de um intervalo que pode durar um dia ou mais, Martinez ou outro interrogador iniciam o questionamento.
O sucesso de Martinez em construir um entendimento com o mais cruel dos terroristas leva ao cerne do debate sobre o interrogatório. Isso sugeriria que os métodos tradicionais por si só poderiam ter servido para obter a mesma informação ou mais? Ou Mohammed só falou tão expansivamente por temer o brutal tratamento que já havia sofrido?
Khaled Sheikh Mohammed, acusado de ser o cérebro por trás dos atentados do 11 de setembro de 2001 nos EUA, em foto de arquivo (Foto: Reuters)
É improvável obter uma resposta definitiva sob a administração Bush, que insistiu no tribunal cujos 7.000 documentos não podem ser tornados públicos. A CIA se recusou a oferecer informações para esta matéria, em parte, segundo um porta-voz, porque a agência não queria interferir nos julgamentos militares planejados para Mohammed e quatro outros suspeitos de integrar a al-Qaeda presos na baía de Guantánamo, em Cuba.
Diversos funcionários americanos e estrangeiros da inteligência, atuais e aposentados, foram entrevistados para esta reportagem e ofereceram uma inquietante, porém incompleta descrição do programa de detenção da CIA. A maioria só falou do programa altamente confidencial sob a condição de anonimato.
Martinez recusou-se a ser entrevistado; sua função foi descrita por colegas.
O próprio fato de Martinez, um analista de narcóticos de carreira que não falava o idioma nativo dos terroristas e não tinha nenhuma quer experiência em interrogatórios, ter se tornado uma peça crucial já demonstra a natureza direta do programa.
Oficiais reconhecem que o programa foi costurado sob enorme pressão em 2002, por uma agência praticamente desprovida de conhecimento em detenção e interrogação.
“Eu perguntei ‘O que vamos fazer com esses caras quando os pegarmos?’”, lembra A.B. Krongard, o oficial número 3 da CIA de março de 2001 até 2004. “Eu disse, ‘Nunca administramos uma prisão. Não temos os idiomas. Não temos os interrogadores.’”
Nessa confusão, a agência tomou a decisão momentânea de utilizar métodos duros há tempos condenados pelos Estados Unidos. Com pouca pesquisa ou reflexão, foram emprestadas técnicas de um programa americano de treinamento militar moldado pelo repertório de torturas da União Soviética e de outros adversários da Guerra Fria, uma linha de ação que viria a assombrar a agência.
A agência alocou principalmente suas cadeias de além-mar com bases nas quais oficiais estrangeiros de inteligência eram mais cooperativos, e correu para mover os prisioneiros quando vazava alguma informação sobre a localidade. Procurando por uma solução de longo-prazo, a CIA gastou milhões para construir uma prisão em um local desértico e remoto, de acordo com dois ex-funcionários da inteligência. A prisão, cuja existência nunca foi revelada, estava pronta — agora está, aparentemente, abandonada sem uso — quando o presidente Bush decidiu mover todos os prisioneiros para Guantánamo.
Até ali, talvez por medo de afogamento simulado, da paciente construção de confiança controlada por Martinez ou dos efeitos desmoralizantes do isolamento, Mohammed e alguns outros prisioneiros haviam se tornado bastante complacentes. Na verdade, de acordo com diversos oficiais, eles haviam se transformado em uma espécie de grupo de discussões terrorista, aconselhando seus captores sobre objetivos, ideologia e esquemas comerciais de seus companheiros extremistas.
Questionado, por exemplo, sobre como contrabandeava explosivos para dentro dos Estados Unidos, Mohammed contou a oficiais da CIA que ele poderia enviar um contêiner do Japão cheio de computadores, metade deles embalando materiais para bombas, segundo relato de um policial estrangeiro informado sobre o episódio.
Anistia Internacional instala réplica de cela de Guantánamo em Washington para denunciar supostas condições desumanas dos presos na baía cubana. (Foto: AFP)
“Era para entendermos a mente de um terrorista — como ele faria certas coisas”, disse o policial estrangeiro sobre as discussões de ataques hipotéticos. Dessa forma, o arquiteto do 11 de setembro se tornou efetivamente um consultor antiterrorismo — para o governo americano que ele professava desprezar.
Primeiro, Martinez testou sua habilidade interrogatória em Abu Zubaydah, especialista em logística da al-Qaeda, que se recusou a falar árabe com seus captores, mas utilizou um inglês passável. Também foi lá, conforme relatado anteriormente, que a CIA tentaria pela primeira vez o uso de pressão física para obter informação, incluindo o afogamento simulado.
Os métodos vieram do programa de treinamento militar de "sobrevivência, evasão, resistência e escape", que muitos dos próprios paramilitares da CIA haviam completado. Uma versão menor do treinamento era operada havia muito tempo no campo de treinamento da CIA na Virginia, conhecido como A Fazenda.
Oficiais graduados do FBI consideravam tais métodos desnecessários e ignorantes. Sem o uso da força, seus agentes fizeram Abu Zubaydah falar, e ele revelou a função central de Mohammed na trama do 11 de Setembro. Eles previram corretamente que os métodos violentos iriam obscurecer a reputação dos Estados Unidos e complicar futuras acusações. Muitos oficiais da CIA também tinham suas dúvidas, e a agência utilizou funcionários terceirizados com experiência militar para grande parte do trabalho.
Alguns oficiais da CIA estavam divididos, acreditando que o tratamento duro poderia ser efetivo. Alguns disseram ter compreendido só mais tarde o custo de adotar métodos há muito rechaçados pelo país.
Com o caso de Abu Zubaydah, o modelo estava definido. Com um novo prisioneiro, os interrogadores, como Martinez, abririam o questionamento. Em cerca de dois terços dos casos, segundo oficiais da CIA, nenhuma coerção foi utilizada.
Interrogar tornou-se a nova força de Martinez, primeiro com Abu Zubaydah; depois com Ramzi Binalshibh, o iemenita apontado como um intermediário entre os seqüestradores dos aviões do 11 de Setembro e os líderes da al-Qaeda, capturado em setembro de 2002; e então com Abd al-Rahim al-Nashiri, o saudita, capturado em novembro de 2002, acusado de planejar o atentado a bomba contra o destróier U.S. Cole em 2000.
Binalshibh cooperou rapidamente; Nashiri resistiu e foi sujeitado ao afogamento simulado, segundo relataram oficiais da inteligência.
A caça a Khaled Shaikh Mohammed envolveu toda a estrutura de inteligência dos Estados Unidos, com seus bilionários bancos de dados de satélites espiões e redes globais de informações. Mas a captura acabou acontecendo graças a uma simples mensagem de texto, enviada discretamente por um informante de um banheiro numa casa em Rawalpindi, perto da capital do Paquistão, Islamabad.
“Estou com K.S.M.", dizia a mensagem, de acordo com um oficial da inteligência informado sobre os detalhes do episódio. O time de captura esperou algumas horas antes de entrar, na noite de 1º de março de 2003, para nublar a conexão ao informante, um homem comum atraído pela recompensa de US$ 25 milhões. O informante foi enviado, com o seu dinheiro, para os Estados Unidos e hoje vive protegido sob uma nova identidade.
Mohammed encontrou seus captores inicialmente com um vaidoso desacato. Sua cooperação veio repentinamente, e interrogadores disseram acreditar que por vezes ele tenha passado desinformação. Mas ele falava mais livremente com Martinez.
A riqueza de detalhes obtidos de Mohammed, no final das contas, teve reflexo no relatório da comissão nacional do 11 de Setembro, cujas notas de rodapé se referem 60 vezes a seus interrogatórios ao citar fatos sobre a al-Qaeda e suas conspirações – enquanto também apontava que algumas asserções dele não eram “críveis.”
Em 5 de junho, Mohammed protagonizou uma volta teatral à atenção do público em sua acusação formal em Guantánamo, com uma longa barba grisalha e uma desafiadora insistência de que a comissão militar dos EUA não poderia fazer nada mais para ele do que realizar seu desejo: execução e martírio.
Seu interrogador também progrediu. Como muitos outros oficiais da CIA do boom de segurança pós-11 de Setembro, Martinez deixou a agência por um trabalho mais lucrativo com empresas contratadas pelo governo. Hoje ele trabalha para a Mitchell & Jessen Associates, uma empresa de consultoria dirigida por ex-psicólogos militares que aconselhavam a CIA sobre o uso de táticas violentas no programa secreto.
E seu novo empregador enviou Martinez direto de volta à agência. Por enquanto, o improvável interrogador do talvez maior responsável pelos horrores de 11 de Setembro ensina a outros analistas da CIA a misteriosa arte de rastrear terroristas.
Fonte: New York Times