Reinhard Mohr
Isto já se sabe: poucas capitais no mundo possuem um aeroporto localizado quase no meio da cidade. São necessários 15 minutos para se chegar de bicicleta do Aeroporto Tempelhof de Berlim até o cruzamento das duas vias mais importantes da cidade, Friedrichstrasse e Unter den Linden, e 20 minutos até o Portão de Brandenburgo e ao monumental Reichstag, que abriga o Parlamento alemão.
Do teto do enorme complexo semicircular do aeroporto, 1.230 metros de uma ponta a outra, o mar de prédios de Berlim parece situado no meio de uma vasta pradaria, a região plana que o primeiro chanceler da Alemanha Ocidental pós-guerra, Konrad Adenauer, famosamente apelidou de o início das estepes russas. Outros contemporâneos tinham uma idéia consideravelmente mais romântica deste senso de vastidão único. "O aeroporto em Tempelhof une as características de um mar interno com o anseio por lugares distantes", disse certa vez um observador encantado. Axel Schultes, o arquiteto que projetou a nova Chancelaria no distrito de Mitte da cidade, chegou até mesmo a descrever Tempelhof como um "aeroporto ícone".
Foto mostra avião do exército americano (último à dir.) no aeroporto Tempelholf em 1948
No domingo, os berlinenses votarão em um referendo sobre se Tempelhof, que sir Norman Foster chamou de "o pai de todos os aeroportos modernos", deve ser fechado no final do ano ou continuar existindo como um aeroporto comercial -pelo menos até que o novo aeroporto Internacional de Berlim-Brandenburgo (BBI) seja inaugurado em 2013 em Schönefeld, um distrito localizado longe do centro da cidade.
Nos últimos meses, uma disputa com as características de uma guerra religiosa irrompeu entre os defensores da manutenção de Tempelhof aberto e aqueles que concordam com a decisão controversa da prefeitura de fechá-lo. Todos os argumentos aparentemente racionais de lado -uma série de considerações legais, econômicas e ambientais, assim como preocupações de planejamento urbano- a verdadeira questão é uma idéia, um mito e uma lenda que cerca uma cidade que, nos últimos 100 anos, foi refeita mais de uma vez em conseqüência de sua história angustiante.
Duas guerras mundiais e uma meia revolução em 1968, os anos 20 "dourados", Hitler e o Holocausto, a devastação do período pós-guerra, o status de cidade ocupada por quatro potências segundo um acordo imposto pelos Aliados e a lendária (ponte aérea) Berlin Airlift, quando os bombardeiros americanos traziam alimentos e suprimentos para a cidade durante o bloqueio soviético a Berlim Ocidental em 1948, a construção do Muro de Berlim e a Guerra Fria. Para muitos, a questão de Tempelhof também toca na identidade de uma cidade que mudou rapidamente após a queda do Muro. Também levanta questões sobre o futuro de Berlim.
Um pasto de ovelhas no coração do Reich alemão
Inicialmente, Tempelhof era apenas uma grande campina na margem sul da velha Berlim, para onde pastores levavam suas ovelhas para pastar. Ele era conhecido como Campo de Tempelhof e posteriormente se tornou local de exercícios militares do exército prussiano. Grupos de soldados marchavam de um lado a outro de Tempelhof, um ponto de parada para as unidades de cavalaria e infantaria do exército. Até mesmo o kaiser Wilhelm 2º fazia uma aparição ocasional, como no verão de 1896, quando percorreu a área a cavalo, exibindo um enorme capacete emplumado.
Por volta da virada do século, a área de 282 hectares ainda era um destino popular para os moradores da cidade e suas caminhadas dominicais, quando deixavam suas moradias soturnas para trás por um dia em busca da luz solar, ar fresco e vistas distantes.
Em agosto de 1909, o pioneiro da aviação americano, Orville Wright, percorreu chacoalhando a campina em sua máquina voadora feita em casa, realizando o feito notável de permanecer suspenso no ar sobre Berlim por um minuto inteiro.
Em 1926, após a Primeira Guerra Mundial ter estimulado rápidos avanços na tecnologia da aviação e outros terem realizado seus próprios experimentos voadores aventureiros, o primeiro vôo marcado da Deutsche Luft Hansa decolou do Campo de Tempelhof, com destino a Zurique. A companhia aérea que posteriormente se transformaria na atual Lufthansa alemã decolou da pia batismal de Tempelhof. Apesar de já ser um aeroporto na época, Tempelhof consistia de apenas dois pequenos terminais e uma pista improvisada. Zeppelins partiam de Tempelhof, e o aeroporto já estava ligado ao metrô de Berlim em 1927.
Berlim estava passando por um boom e estava prestes a substituir Paris como cidade-chave da Europa. Em seu romance épico da virada do século "Berlin Alexanderplatz", Alfred Döblin escreveu que os cabarés e teatros em Friedrichstrasse prosperavam, enquanto a febre esportiva mais recente se espalhava rapidamente. Mais rápido, mais alto, mais longe -estas eram as palavras-chave da nova era. O texto de uma peça de propaganda de 1929 para a Convenção Mundial de Publicidade e Propaganda refletia o estilo expressionista da época: "A vida, a vida pulsante, está se movendo em velocidades vertiginosas em Berlim, o coração do Reich! Quatro milhões de pessoas em movimento, a décima quinta parte da população alemã em passos ligeiros! E enquanto tudo no solo está correndo e abrindo caminho pela cidade, o motor canta nos céus! Que vista esplêndida: o Aeroporto de Tempelhof!"
Uma criação nazista estragada, com uma marca americana
O estilo de vida pulsante da cidade teve um fim abrupto em janeiro de 1933, quando as tropas de assalto de Hitler marcharam pelas ruas de Berlim. Em 1935, o führer se envolveu pessoalmente nos planos de um "aeroporto mundial" em sua futura capital, que seria rebatizada de "Germânia", e exigiu que a nova arquitetura fosse "eterna" e "irresistível", até mesmo "esmagadora" e, acima de tudo, que atestasse a "grandeza de nossa fé".
O complexo simétrico, com seu terminal aparentemente interminável, foi construído em tempo recorde, apenas dois anos, sob a direção de Ernst Sagebiel, apelidado de "construtor mais veloz do Reich". Quando concluído, o complexo contava com 285 mil metros quadrados de espaço, divididos entre 49 prédios, 7 hangares e 9 mil escritórios. Os resultados foram impressionantes: linhas surpreendentemente limpas, com janelas estreitas na fachada do prédio principal, criando um efeito rítmico, como cascata, combinando com um toque sulista resultante do uso generoso de pedra calcária. Era um bastião teutônico com elementos de art déco.
Um fundo para Dietrich e Monroe
O fato da estrutura, que ao lado do Pentágono em Washington e do monstruoso prédio do Parlamento em Bucareste é um dos maiores prédios "free-standing" do mundo, não ter entrado para a história como uma criação nazista se deve em parte à sua qualidade estética inquestionável e em parte às influências americanas. Foram os americanos que concluíram o terminal de embarque, um prédio estranhamente fascinante até hoje, entre 1959 e 1962. Os nazistas, distraídos pela guerra, colocaram o projeto em espera. Eles estavam mais interessados em montar seus bombardeiros em um túnel ferroviário abandonado nas vastas catacumbas de Tempelhof.
Quando as tropas soviéticas foram as primeiras a chegar ao aeroporto em abril de 1945, elas invadiram as câmaras subterrâneas. Quando usaram granadas de mão para abrir as portas reforçadas, o bunker secreto de filmes e arquivos da Wehrmacht foi destruído pelas chamas. O celulóide valioso queimou por dias, e as paredes permanecem escurecidas até hoje.
Após travar uma disputa de poder com os russos que durou semanas, as Forças Armadas americanas tomaram Tempelhof em julho de 1945 e expandiram o complexo, que contava até mesmo com sua própria usina elétrica e sistema de água quente, o utilizando como base por décadas. Os últimos soldados americanos partiram apenas em 1993.
No último andar do prédio, onde os nazistas planejavam construir um grande restaurante, a Força Aérea americana instalou uma pista de boliche e uma quadra de basquete em um estilo clássico, que se tornou um marco protegido há muito tempo. O imenso "Salão da Glória", tão atemporal quanto excessivo, que os arquitetos nazistas projetaram originalmente como uma estrutura de cinco andares, nunca foi concluído. Dificilmente alguém atualmente imaginaria este "Salão da Glória" nazista por trás do letreiro simples "Aeroporto Central de Tempelhof", acima da entrada.
Os anos 60 marcaram o auge de Tempelhof. A viagem aérea crescia rapidamente e astros e diretores de cinema -Marlene Dietrich, Billy Wilder, Gary Cooper, Marilyn Monroe, Romy Schneider- gostavam de usar sua grande escala como pano de fundo para suas aparições públicas.
O começo do fim
Mas o aeroporto também começava a exibir desgastes, e o novo Aeroporto Tegel de Berlim foi inaugurado em 1975. Depois disso, veio o declínio, lento mas constante, para Tempelhof. O volume de passageiros diminuiu, em parte porque as pistas eram curtas demais para os novos jatos maiores. Quando a Lufthansa finalmente transferiu todas as suas operações para Tegel em 1994, muitas outras companhias aéreas fizeram o mesmo. Em 1996, o governo federal, a prefeitura de Berlim e o Estado de Brandenburgo chegaram a uma chamada decisão de consenso: o tráfego aéreo em Tempelhof teria que ser cancelado tão logo a aprovação oficial dos planos para o novo megaaeroporto da cidade, o BBI, se tornasse lei.
A construção do novo aeroporto em Schönefeld está em andamento há meses, mas a controvérsia em torno de Tempelhof ainda prossegue. Seus defensores querem que ele seja preservado como aeroporto comercial, argumentando que é a base ideal para aviação privada e recreativa, assim como para tarefas especiais nas instalações de serviço relacionadas. Os oponentes querem ver Tempelhof transformado em museu, juntamente com novos prédios residenciais em um ambiente semelhante a um parque.
Mas uma coisa Tempelhof continuará sendo: um monumento de outra época. A demolição do aeroporto não está nos planos, pois é protegido como patrimônio histórico.
Fonte: UOL Mídia Global