O escritor francês Jean Claude Boetsch conta como escapou de um avião em chamas
Era para ser um domingo inesquecível. Naquele ensolarado 26 de junho de 1988, um avião A320 da Air France decolou para um voo de demonstração no aeroporto de Habsheim, no norte da França. A bordo, 136 pessoas. O escritor Jean Claude Boetsch, 63 anos, estava entre elas. Ao fazer uma passagem rasante na pista, o avião não conseguiu arremeter e caiu no bosque à sua frente, explodindo em segundos. O erro foi atribuído aos pilotos, mas a hipótese mais provável é que os controles computadorizados da aeronave tenham feito uma leitura errada e impedido o aparelho de continuar no ar. Aquele domingo não foi mais esquecido porque três passageiros morreram - duas crianças e uma idosa. Boetsch escreveu um livro sobre o que viveu, "Le Crash de Habsheim" (A Queda de Habsheim), e se tornou o vice-presidente da associação das vítimas. Na entrevista a seguir, conta como sobreviveu e como se tornou um dos maiores críticos da "família Airbus".
ISTOÉ - O que o sr. pensou ao perceber que o avião estava caindo?
Jean Claude Boetsch - Levei um tempo para compreender que estávamos a ponto de espatifar. O que veio na minha cabeça foram aquelas imagens de aviões em chamas, em que o fogo penetra e avança pelo seu interior. Desejei intensamente que a fuselagem não se partisse - e foi justamente isso o que aconteceu. Senti um grande alívio, mas aí vi as chamas à direita. Pensei: é o fim, eu vou morrer queimado. Num sobressalto, reagi. Tinha que tentar sair dali, mesmo que dentro das labaredas. Foi um reflexo suicida. Mas nesses momentos não se age mais de forma racional.
"Vi as árvores e as folhas verdes. Tive um flash: não vou morrer, estou salvo"
ISTOÉ - Como o sr. se salvou?
Boetsch - Eu me precipitei em direção à porta e, como numa libertação, vi as árvores e as folhas verdes. Tive um flash: "Não vou morrer, estou salvo." Pulei e saí correndo sem sentir as dores no corpo. Só mais tarde um amigo me levou ao hospital.
ISTOÉ - Como a maioria das pessoas escapou?
Boetsch - Quando a asa direita se desprendeu, o combustível começou a vazar e o avião pegou fogo. Do lado esquerdo, aconteceu apenas um princípio de incêndio. Deu tempo de sair pelas duas portas dianteira e traseira no lado esquerdo da aeronave. Os tobogãs foram colocados entre as árvores e as pessoas se atiraram, umas sobre as outras. Foi nesse momento que os passageiros se feriram. Eu tive uma fratura na coluna vertebral.
ISTOÉ - Depois do acidente o sr. ficou com receio de voar?
Boetsch - Fico sempre apreensivo quando embarco num Airbus. Mesmo sabendo que esses aviões são seguros, não são os pilotos que os comandam. São os computadores. E eles podem ter um bug inesperado e incompreensível para o sistema.
ISTOÉ - O que o sr. pensa da tendência da Airbus em atribuir o erro aos pilotos?
Boetsch - Em 1988, um Airbus A320 tinha mais de 500 comandos. Na visão da empresa, se os erros no projeto do avião fossem assumidos depois do acidente, o mercado iria desmoronar. Então, em menos de 24 horas a Justiça e o ministro dos Transportes afirmaram que o avião era perfeito. Bernard Ziegler, um dos projetistas da aeronave, disse: "É o avião ou o piloto. Se o erro não é do avião, só pode ser do piloto."
DEPOIMENTO E CRÍTICA - No seu livro, Boetsch questiona a condução do caso pela Justiça
ISTOÉ - Isso tem sido uma constante?
Boetsch - Desde esse primeiro acidente, as pessoas puderam constatar que, em quase todas as quedas de Airbus, é sempre o erro humano que explica o acidente: Habsheim, Bangalore, Estrasburgo, Varsóvia, Nagoya, Toulouse, Paris, Bucareste, Taipé, Tailândia, Filipinas, Sotchi, São Paulo...
ISTOÉ - Quais são os problemas imediatos que os sobreviventes e as famílias das vítimas enfrentam?
Boetsch - Mesmo se as autoridades se mostram cuidadosas com as famílias piloe a imprensa acompanha tudo, como tem sido no caso do voo AF447, o esquecimento chega rápido. Os aborrecimentos, as preocupações, os processos, as dificuldades financeiras tornam-se habituais e são enfrentados de forma solitária. É esse infelizmente o destino de todos os sobreviventes e de todas as famílias de vítimas.
ISTOÉ - O sr. passou por tratamentos psicológicos depois do acidente?
Boetsch - Não, não e não. Naquela época não existia o chamado apoio psicológico. Cada um deveria se esforçar ele mesmo para se livrar do trauma. Nos encontros com a seguradora da Air France para tratar da indenização eu perguntei se seríamos recompensados pelos danos psicológicos. Eles responderam: não espere isso porque no futuro, diante de outro acidente, todas as vítimas vão reclamar indenizações desse tipo. Mas fomos adiante e a seguradora teve que pagar o equivalente a 10 mil francos, em 1990.
ISTOÉ - Como o sr. começou a voar novamente?
Boetsch - A Air France deu passagens gratuitas para que as vítimas se livrassem do medo de voar. Foi a primeira vez que isso aconteceu na aviação comercial. Consegui, então, como a maior parte dos sobreviventes, mas não todos, subir novamente em um avião. Os bilhetes oferecidos me permitiram fazer viagens longas aos EUA, ao Canadá e à Polinésia Francesa.
ISTOÉ - Quando possível, escolhe outro meio de transporte?
Boetsch - Fazendo as contas, o avião ainda é o meio mais prático de viajar. Além disso, me convenci de que as probabilidades de passar por um segundo acidente são mínimas. Ainda assim, escolho minha companhia e os aviões em que voo.
Fonte: Ivan Claudio (IstoÉ)