Especialistas em estratégia militar garantem que a inteligência é a melhor arma para combater o inimigo. Essa “arma” tem sido levada a sério por diferentes órgãos do governo federal. Muito antes do Palácio do Planalto preparar o dossiê com contas sigilosas do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso e deflagrar a crise política do momento, a Infraero, estatal que administra os aeroportos brasileiros, criou uma sessão exclusiva para coletar, produzir, analisar e interpretar dados “necessários à tomada de decisões”. Servidores da empresa e pessoas ligadas ao setor temem estar sendo monitorados pela Assessoria Especial de Inteligência Empresarial, que funciona no mezanino do aeroporto de Brasília.
Para o comando do setor de inteligência foi escolhido um coronel da reserva da Aeronáutica, Hélcio Medeiros Ribeiro, há 10 anos na estatal. Foi o ex-presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, quem criou a Assessoria Especial de Inteligência, em 31 de maio do ano passado. Ele argumenta que a idéia inicial era colaborar com órgãos como a Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas, armas, carga, obter informações de pessoas nos aeroportos e também trabalhar com estatísticas e dados sobre o setor aéreo. O atual presidente da estatal, Sérgio Gaudenzi, manteve ativa a sessão de inteligência para, segundo a assessoria de imprensa da empresa, “garantir informações adequadas ao processo decisório, colaborar com o presidente da Infraero e com os diretores”.
O criador do setor de inteligência jura que nunca mandou confeccionar dossiês nem espionar a vida de ninguém. Mas diz não ser possível garantir se houve ou não arapongagem em nome da segurança da aviação civil. “Não ponho a mão no fogo por ninguém”, disse, ao Correio, José Carlos Pereira. Ele próprio já foi do setor de inteligência da Força Aérea e também da Junta Interamericana de Defesa. Dentro da Infraero, há quem arrisque a dizer que o setor foi criado para tentar proteger o brigadeiro dos ataques inimigos e identificar quem eram os funcionários que repassavam a jornalistas informações e documentos internos.
Caixa-preta
Um dia antes de assinar o ato administrativo nº 947/PR/2007 — que deu vida a unidade e criou nove cargos com salários de R$ 4,3 mil até R$ 11 mil — o brigadeiro José Carlos Pereira viu o tempo se fechar contra a Infraero no Congresso. Era o primeiro sinal de que as duas CPIs instaladas na Câmara e no Senado poderiam trazer à tona contratos suspeitos e muitos problemas envolvendo a manipulação da estatal em todas as suas gestões mais recentes.
Em 30 de maio do ano passado, com o voto de governistas e oposicionistas, foi aprovada na CPI do Apagão Aéreo da Câmara a convocação de Pereira, e de quatro ex-presidentes da estatal, incluindo o deputado federal Carlos Wilson (PT-PE), que colecionava acusações de corrupção durante a gestão na estatal. Nesse mesmo dia, o procurador junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) Lucas Furtado fazia uma afirmação explosiva aos parlamentares da CPI do Senado: “A Infraero é uma caixa-preta em todos os sentidos”.
O advogado Airton Soares, integrante do Conselho da Infraero, diz desconhecer ações de espionagem dentro da estatal. Mas acredita que já foi investigado, em especial no final de 2006, quando afirma ter incomodado muita gente ao apontar mais de um contrato suspeito firmado pela empresa que agora são alvo de investigação no Tribunal de Contas da União (TCU). “Devo ter sido bisbilhotado e seguido. Ouvido também”, afirma, emendando que só não sabe por quem. Garante que nunca viu nenhum dossiê contra ele.
Já Denise Abreu, a ex-diretora da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), recebeu em casa um dossiê anônimo. A Polícia Federal concluiu, em novembro do ano passado, ser falso o documento onde aparecia o nome de Denise como titular de contas bancárias no Uruguai. Segundo a assessoria da ex-diretora, ela nunca teve contas bancárias no exterior e nem cartões de crédito das bandeiras citadas no dossiê. O documento também trazia informações sobre Jorge Luiz Brito Velozo, ex-diretor da Anac, e José Anchieta Moreira Hélcias, diretor de Relações Governamentais do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias. Um inquérito foi aberto pela Polícia Civil de São Paulo para identificar quem confeccionou o documento.
Partilha de dados com Abin
A Infraero se preparou para fazer parte do Sistema Brasileiro de Inteligência. O objetivo é compartilhar dados e alimentar com informações sigilosas a Agência Brasileira de Informação (Abin), o serviço secreto brasileiro, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), dos centro de inteligência da Marinha, Aeronáutica e Exército e CGU.
“Seria bastante benéfico para a Infraero pois teria acesso ao cruzamento de informações entre o Sistema de Inteligência da Infraero e o Brasileiro de Inteligência”, escreveu o chefe da Assessoria Especial de Inteligência Empresarial, coronel Hélcio Medeiros Ribeiro, num ofício em agosto do ano passado (veja fac símiles acima). No documento, encaminhado logo depois de Sérgio Gaudenzi assumir o comando da Infraero, Hélcio colocou o cargo à disposição e aproveitou para informar os próprios objetivos no comando do Sistema de Inteligência da Infraero.
Ele revelou que chegou a dar uma palestra na Abin para o Conselho Consultivo do Sistema Brasileiro de Inteligência. Por meio de nota, a Infraero esclarece que “a atividade de Inteligência tem como foco principal a coleta, a análise e a consolidação dos conhecimentos de interesse da Segurança da Aviação Civil”. Informa ainda que os dados são difundidos mensalmente para a Anac, como subsídio para a Avaliação do Nível de Ameaça à Aviação Civil Brasileira, conforme prevê o Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil.
“As entidades e empresas públicas de administração aeroportuária poderão implementar um Setor de Inteligência e Segurança para tratamento de informações, envolvendo a Segurança da Aviação Civil”, afirma a Infraero, via assessoria de imprensa. Hoje, são oito empregados, sendo cinco orgânicos e três contratados, com experiência no setor e atuando na assessoria especial da estatal. Funcionários da Infraero vêem com desconfiança a sessão e arriscam a dizer que, para auxiliar o presidente a tomar decisões, como nomear cargos de confiança, o setor de inteligência fez levantamento de todo o histórico dos postulantes às vagas.
Manipulação
A declaração anual de bens de 151 ocupantes de função de confiança na Infraero, entregue anualmente por todos os funcionários em envelopes lacrados, foi digitalizada por solicitação do diretor de administração da empresa, Raimundo Miranda. Servidores da empresa questionam a legalidade da medida, oficializada na circular nº273 de outubro de 2007, porque não foram consultados sobre a manipulação de informações sigilosas.
Se dependesse da avaliação do ex-secretário da Receita Everardo Maciel não existiria nem mesmo a lei que obriga todo servidor entregar cópia da declaração de bens, para tomar posse e trabalhar em órgãos públicos. “Tentei acabar com essa lei. Ela ofende o código tributário”, salienta. Ele classifica como “estranho” o fato de um órgão pedir para digitalizar uma pequena parte do total de documentos entregues. “Conseguiram transformar o ruim em péssimo”, diz Everardo Maciel.
No documento assinado por Miranda e encaminhado a todas as superintendências da Infraero, o pedido é feito em caráter confidencial. O argumento: “Tendo em vista a necessidade de avaliação de diversos documentos por parte da empresa e dos órgãos fiscalizadores no que pertine aos processos em andamento no âmbito desses entes públicos”. O diretor solicitou a indicação de um profissional de “inteira confiança e responsabilidade” e diz que, ao término da digitalização, os formulários sigilosos deveriam ser encaminhados à Superintendência de Recursos Humanos em CDs lacrados sem mencionar o conteúdo do mesmo.
A Infraero justifica dizendo, por meio da assessoria de imprensa, que o “trabalho foi solicitado pela auditoria interna da Infraero, a partir de demanda da CGU (Controladoria-Geral da União)”. Quem definiu as categorias de servidores que teriam os documentos manipulados foi a CGU e o controle interno da estatal. Tratam-se dos cargos com salários mais elevados. A CGU esclarece que, por força de decreto, pode analisar, sempre que julgar necessário, a evolução patrimonial dos agentes públicos. Garante que esses dados são manejados apenas por um número restrito de servidores, especializados em segurança da informação. (FO)
Fonte: Fernanda Odilla (Correio Braziliense)